domingo, 11 de fevereiro de 2018

NELSON RODRIGUES

VIDA

 

 

INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

 

Nascido no Recife a 23 de agosto de 1912 e quarto dos quatorze filhos do jornalista Mário Rodrigues e de Maria Esther Falcão, aos quatro anos Nelson foi morar no Rio de Janeiro para onde seu pai se mudara para trabalhar no Correio da Manhã de Edmundo Bittencourt. Em suas Memórias ele diz que seu grande laboratório de escritor foi a infância vivida na Zona Norte. Dos anos passados na rua Alegre (atual Almirante João Cândido Brasil), bairro de Aldeia Campista, saíram para sua obra situações alimentadas pela moral da classe média dos primeiros anos do século XX. Sua infância foi marcada por este clima e pela personalidade retraída do menino que lia um romance atrás do outro. Nesta época ocorreu a descoberta do futebol, paixão que conservaria por toda a vida. Em 1925 Mário Rodrigues fundou A Manhã após romper com Edmundo Bittencourt e foi neste jornal que Nelson começou sua carreira jornalística como repórter policial, aos treze anos de idade. Os crimes passionais e pactos de amor e morte entre casais incendiavam a imaginação do adolescente romântico que utilizaria o cenário dessas histórias em suas peças. O poeta seria o criador da grande dramaturgia brasileira, mas sua obra fundamenta-se no drama bíblico que ele parodia ou parafraseia adaptando-o à realidade brasileira: não nos esqueçamos que para casar Mário Rodrigues teve de fazer-se pastor por imposição dos pais da noiva que eram batistas praticantes numa Recife dominada pelo catolicismo, daí a presença da religião na vida Nelson, questão à qual se refere quando em suas crônicas fala das tias católicas e protestantes que o obrigavam a frequentar igrejas e templos. Entretanto, desde criança seu gênio, ao qual nunca faltou o humor, resistiu a essa lavagem cerebral derrotando a visão reacionária do Evangelho para apresentá-lo de forma revolucionária em suas peças. Quando o pai de Nelson conseguiu atingir uma situação financeira confortável ele levou a família para Copacabana, então um arrabalde luxuoso da orla carioca. Apesar da bonança, Mário Rodrigues perderia para o sócio o controle acionário de A Manhã, porém em 1928 funda Crítica. Como cronista esportivo Nelson escreveu para este jornal textos antológicos sobre o Fluminense, seu clube do coração, embora a maioria tenha sido publicada no Jornal dos Sports de Mário Rodrigues Filho, o primogênito de Mário Rodrigues. Junto com ele Nelson foi fundamental para que o Fla-Flu conquistasse seu prestígio tornando-se um dos maiores clássicos do futebol brasileiro.

 

JUVENTUDE E MATURIDADE

Nelson seguiu seus irmãos Mário, Milton e Roberto integrando a redação de Crítica. Ali continuou a escrever na página de polícia, enquanto Mário cuidava dos esportes e Roberto, um talentoso desenhista, fazia as ilustrações. O jornal era um sucesso de vendas, misturando apaixonada cobertura política com relatos sensacionalistas de acontecimentos sociais. Em 26 de dezembro de 1929 a sua primeira página deu a manchete da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr. Ilustrada por Roberto e assinada pelo repórter Orestes Barbosa, a matéria provocou uma tragédia. Sentindo-se difamada, Sylvia invadiu a redação de Crítica armada de revolver para matar seu dono, mas como este não estivesse ela atirou no filho Roberto. Nelson testemunhou o crime e a agonia do irmão que morreu dias depois. Deprimido com a perda do filho, Mário Rodrigues faleceu poucos meses após a tragédia. Finalmente, durante a Revolução de 30 a gráfica e a redação do diário são empasteladas e ele deixa de existir. Sem seu chefe e sem fonte de sustento a família Rodrigues mergulha em decadência financeira. Foram anos de fome e dificuldades para todos. Pouco afinados com Getúlio Vargas os Rodrigues demorariam anos para se recuperarem. Ajudado por Mário Filho, amigo de Roberto Marinho, Nelson passa a trabalhar em O Globo, mas pouco tempo depois descobre que estava tuberculoso e para tratar-se passa longas temporadas no sanatório de Campos do Jordão. Seu tratamento é custeado por Marinho que, com isso, conquistou a eterna gratidão de Nelson. Recuperado, ele volta e assume a seção cultural do jornal passando a fazer crítica de ópera. Em 1940 casou-se com Elza Bretanha, sua colega de redação. A partir de 1941 Nelson divide-se entre o emprego em O Globo e a criação de peças teatrais. No final deste ano ele escreve A mulher sem pecado que estreou um ano depois no Teatro Carlos Gomes ficando em cartaz apenas três semanas. Em seguida a esse mal sucedido começo ele cria Vestido de noiva estreado com estrondoso sucesso no final de 1943 no Teatro Municipal sob a direção de Zimbinski. Em 1945 abandona O Globo passando a trabalhar nos Diários Associados. Em O Jornal, um dos veículos de propriedade de Assis Chateaubriand, começa a escrever Meu destino é pecar, seu primeiro folhetim que assinou como Susana Flag. O sucesso alavancou as vendas do jornal e estimulou o dramaturgo a escrever sua terceira peça, Álbum de família, que foi proibida pela censura e só liberada em 1965. Em 1946 criou Anjo negro que, após dura batalha com os censores, estreou dois anos depois lhe possibilitando adquirir sua casa do Andaraí. Em 1947 escreve Senhora dos afogados que só foi à cena nove anos depois, e Dorotéia em 1949 que estreou no ano seguinte unicamente porque escrita sob pseudômino. Em 1950 passa a trabalhar na Ultima Hora, jornal de Samuel Wainer, onde começa a escrever as crônicas de A vida como ela é..., seu maior sucesso jornalístico. De 1952 a 1957 tem um caso com Yolanda Camejo que lhe dá três filhos: Maria Lúcia, Sonia e Paulo César. Na década seguinte separa-se de Elza e vai morar com Lúcia Cruz e Lima com quem teria Daniela, nascida cega. Nelson trabalha na recém-fundada TV Globo participando da Grande Resenha Facit, primeira mesa-redonda sobre futebol da televisão brasileira e em 1967 passa a publicar suas Memórias no Correio da Manhã onde seu pai trabalhara cinquenta anos antes.

 

VELHICE

Nos anos 70, consagrado como poeta dramático e jornalista, a saúde de Nélson começa a baquear. Durante a ditadura militar, que só retoricamente apoiou porque na verdade usou seu prestígio para proteger e libertar vários perseguidos pelo regime, seu filho Nelson Rodrigues Filho torna-se militante clandestino sendo preso e torturado. Depois do fim de seu casamento com Lúcia, Nelson ainda manteve rápido caso com sua secretária Helena Maria antes de reatar com Elza. O maior poeta dramático de língua portuguesa, ao lado do renascentista luso Gil Vicente, faleceu de complicações cardíacas e respiratóliras aos 68 anos numa manhã do domingo de 21 de dezembro de 1980. Dois meses depois, Elza atendia ao pedido do marido de ainda em vida gravar seu nome ao lado do dele na lápide de seu túmulo no cemitério São João Batista: Unidos para além da vida e da morte.


OBRA


TEATRO

A mulher sem pecado de 1941 estreia no ano seguinte
Vestido de noiva de 1943 estreia no mesmo ano
Álbum de família de 1945 estreia vinte anos depois
Anjo negro de 1946 estreia dois anos depois
Senhora dos Afogados de 1947 estreia nove anos depois
Dorotéia de 1949 estreia no ano seguinte
Valsa nº 6 de 1951 estreia no mesmo ano
A falecida de 1953 estreia no ano seguinte
Perdoa-me por me traíres de 1957 estreia no mesmo ano
Viúva, porém honesta de 1957 estreia no ano seguinte
Os sete gatinhos de 1958 estreia no ano seguinte
Boca de ouro de 1959 estreia no ano seguinte
O beijo no asfalto 1960 estreia no ano seguinte
Bonitinha, mas ordinária de 1962 estreia no mesmo ano
Toda nudez será castigada de 1965 estreia no mesmo ano
Anti-Nélson Rodrigues de 1974 estreia no ano seguinte
A serpente de 1978 estreia dois anos depois


ROMANCES

Meu destino é pecar - 1944

Minha vida - 1944
A mentira - 1953
O casamento - 1966

CONTOS

Cem contos escolhidos - 1972

Pouco amor não é amor – 2002


CRÔNICAS

Memórias de Nelson Rodrigues - 1967

A pátria em chuteiras - Novas Crônicas de Futebol - 1992
A menina sem estrela - memórias - 1992
À sombra das chuteiras imortais - Crônicas de Futebol - 1992
Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo – 2002


TELENOVELAS

A morta sem espelho - TV Rio 1963

Sonho de amor - TV Rio 1964

O desconhecido - TV Rio 1964

O homem proibido - TV Globo 1982 (baseada na obra de Nelson)

Meu destino é pecar - TV Globo 1984 (idem)

Engraçadinha, seus amores e seus pecados - TV Globo 1995 (idem)

A Vida como ela é - TV Globo 1996 (idem)


FILMES (baseados na obra de Nelson)

Somos dois de 1950, direção de Milton Rodrigues
Meu destino é pecar de 1952, direção de Manuel Pelufo
Mulheres e milhões de 1961, direção de Jorge Ileli
Meu nome é Pelé de 1963, direção de Carlos Hugo Christensen
Bonitinha, mas ordinária de 1963, direção de J.P. de Carvalho
Asfalto selvagem de 1964, direção de J.B. Tanko
A falecida de 1965, direção de Leon Hirzman
O beijo de 1966, direção de Flávio Tambellini
O casamento de 1975, direção de Arnaldo Jabor
A dama do lotação de 1978, direção de Neville d'Almeida
Os sete gatinhos de 1980, direção de Neville d'Almeida
O beijo no asfalto de 1980, direção de Bruno Barreto
Bonitinha, mas ordinária de 1981, direção de Braz Chediak
Álbum de família de 1981, direção de Braz Chediak
Engraçadinha de 1981, direção de Haroldo Marinho Barbosa
Boca de ouro de 1990, direção de Walter Avancini
Gêmeas de 1999, direção de Andrucha Waddington
Vestido de noiva de 2006, direção de Joffre Rodrigues


TEATRO DE NELSON RODRIGUES.
Francisco Carneiro da Cunha
All Print Editora, São Paulo, 2009.

RESUMO DO TEXTO
Meditações.
O que me assombra, realmente me assombra, é que Deus não seja visto a toda hora em toda parte por todo mundo.
Consciência criadora
Isso a que se chama vida é o que se representa no palco e não o que se vive cá fora.
Mais importantes são os ovários da alma. Os verdadeiros órgãos genitais estão na alma.
Eis o que tragicamente ignoramos
Acho que o meu negócio com o teatro é mediúnico, coisa tão extraordinária que se pode pensar em milagre, um mistério total da personalidade.
Mas transe totalmente lúcido
A ficção para ser purificadora deve ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. E no teatro que é mais plástico, direto e de um impacto tão mais puro esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia é preciso encher o palco de assassinos, adúlteros e insanos, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros íntimos dos quais eventualmente nos libertamos para em seguida recriá-los em cena.
O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face de nossa crueldade.
É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer e amar a própria hediondez.
        Meus personagens movem-se na sombra e na luz parecendo possessos, não se sabe se possuídos de Deus ou do diabo. Faço psicologia em profundidade, psicologia abissal.
      As senhoras me dizem: “Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo”. E não ocorre a ninguém que meus personagens são como todo mundo, daí a repulsa que provocam. Ninguém gosta de ver no palco suas íntimas chagas e inconfessas abjeções.
Somente a leitura e a releitura de todas minhas peças permitem compreensão justa e sem distorções do que digo pela boca de meus personagens, seres aparentemente obcecados e possessos, mas na realidade portadores de defeitos e qualidades cotidianos. Sempre me propus uma síntese do homem quando dei vida dramática a esses personagens. Por isso digo e repito: eles valem, são mais reais que nós mesmos.
Continuarei trabalhando com monstros. Digo monstros no sentido que superam a moral prática cotidiana. Quando escrevo para teatro, as coisas atrozes e não atrozes não me assustam. Escolho meus personagens com a maior calma e jamais os condeno. Quando se trata de operar dramaticamente não vejo em que o bom seja melhor que o mau.
 A alegria não pertence ao teatro, nem o otimismo. O teatro é desespero ou não é teatro, é um pátio de expiação. Devíamos assisti-lo não sentados, mas atônitos e de joelhos. Na verdade, o que ocorre no palco é o julgamento do mundo, o nosso próprio julgamento, e grande teatro é aquele que faz o espectador crispar-se na cadeira numa angústia de condenado.
Minhas peças são obras morais. Devem ser adotadas no primário e nos seminários.
         A indignação de um elenco não é fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representa meus textos com o maior desprazer e humilhação.
Há trinta anos os críticos mantêm uma coerência burra sobre o meu teatro.
No meio de meus colegas de teatro eu me sinto só, tão só como um Robinson Crusoé.
         Nunca li nada sobre teatro que valesse a pena. Curiosíssima arte que não admite nenhuma meditação inteligente.
Eu me nego a acreditar que mesmo o mais doce político tenha senso moral.
O povo é débil mental. Digo isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim eternamente.
Toda unanimidade é burra.
Eu quero que a história vá para o diabo que a carregue.
Na vida, o importante é fracassar.

Quem tem medo de Nelson Rodrigues?

Há no texto uma compaixão quase insuportável, uma profunda e dilacerada piedade. Realmente, nunca tive tanta pena de meus personagens.
Amor a monstros, a salvação do homem.

Num mundo infeliz e doente como o nosso é quase dever e obrigação ser também infeliz e doente.

Nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Precisamos ter continuamente a consciência, o sentimento, a constatação dessa dor. Sei que nenhum de nós gosta de se aborrecer. Mais importante, porém, que o nosso frívolo conforto, que o nosso alvar egoísmo é o dever de participar do sofrimento dos outros.
Sem tal solidariedade não há criação

Numa de minhas peças diz um personagem que usamos na Terra um falso nome e uma falsa cara. Vejam bem, nem a cara ou o nome têm a ver com a nossa identidade profunda. E quase sempre o homem nasce, vive e morre sem nunca ter contemplado o seu verdadeiro rosto, sem jamais ter conhecido o seu nome eterno.

Divulgar o óbvio entre meus semelhantes foi minha única missão na Terra.
Na obra do poeta está o óbvio: nossos verdadeiros rostos e nomes eternos

Eis a verdade: imaginei-me Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.
No começo de sua vida

Escrevo à noite. Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é essa vigília e nós somos eternamente seus pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores, na sua vigília docemente infinita. Uma noite Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto de nossa agonia e entenderá nossa última lágrima de vida.
No fim de sua vida

O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.
Ponto final

Obra.

A criação teatral de Nelson fundamenta-se na poesia bíblica, especialmente o Evangelho que ele parodia ou parafraseia (a paródia ironiza um texto clássico, a paráfrase o endossa), inclusive em sua vida de teatrólogo: para estrear como tal esperou fazer 29 anos, idade com que o herói da saga palestina é batizado; sua primeira peça foi ao palco quando acabara de fazer 30 anos, idade com que o arquétipo inicia vida pública; para inventar sua obra magna, que desde criança desejara escrever, aguardou estar findando seus 33 anos, idade com que Jesus Cristo satanás suicida seu ego. O poeta glosou a trajetória do personagem evangélico que antes de morrer atinge o máximo de sua popularidade (Vestido de noiva), em seguida deixa-se matar e desce ao inferno para salvar os mortos (peças da segunda metade dos anos quarenta), ressuscita (Valsa nº 6) para salvar os vivos (peças dos anos cinqüenta a setenta), sobe aos céus em sua glória de maior poeta dramático de língua portuguesa, ao lado do renascentista luso Gil Vicente (nos 20 anos seguintes à sua morte não houve temporada teatral no Brasil em que mais de uma peça sua não fosse encenada, verdadeira apoteose). Nelson guiou-se pelo Mito de Cristo para, com genial amor por seus personagens, redimir a si e aos homens das paixões que os escravizam nos reconciliando com nossos pais eternos e universais.

Antecedentes históricos

Tragédia grega: Ésquilo, Sófocles, Eurípides. Drama palestino: Mateus, Marcos, Lucas, João. Mistério medieval: Anônimos. Gênio renascentista: Gil Vicente, Commedia dell’Arte, Goldoni, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Racine, Molière, Shakespeare. Drama burguês: a partir do iluminismo e da era das revoluções o teatro ocidental passa a pintar a nossa solidão sem Deus.

Primeira fase

A mulher sem pecado (1941): O título significa A Imaculada ou Virgem Maria, mãe do filho de Deus.
Escrito logo após haver feito 29 anos, este primeiro poema dramático baseia-se na Anunciação (Lucas, cena 1; Mateus, cena 1) em que o Arcanjo Gabriel (intuição) santifica a descrente Maria (sensação) e o enciumado José (pensamento) para que se tornem pais de Jesus (instinto) Cristo (intuição sentimental).
A paródia está no fato do casal do poeta, o ciumento Olegário (Poderoso) e a sofrida Lídia (Irmã, Atos, cena 16), não ter filho porque despreza o anjo de Deus (Coxo da Colombo), ela foge com o demoníaco chofer da casa (Umberto) e ele se mata.
Vestido de noiva (1943): A protagonista é Alaíde (Nobre)/Clessi (Prostituta).
A paráfrase está no fato da heroína cumprir a mesma trajetória do herói evangélico que suicida sua personalidade profana (Crucificação) para preservar a sagrada individualidade, desce ao inferno para dar vida aos mortos (Evangelho de Nicodemus), renasce ao terceiro dia (Madalena no sepulcro) para salvar os vivos (Pentecostes), sobe ao céu (Ascensão) para juntar-se a nossos pais eternos e universais.
Álbum de família (1945): Os protagonistas são Jonas (Pomba, Jonas, cena 1) e Senhorinha (Nossa Senhora).
Profeta JonasProfeta Daniel segundo Aleijadinho 
Antes de iniciar carreira de dramaturgo o anjo pornográfico conheceu os profetas de Aleijadinho que inspiraram sua obra tanto quanto, desde a infância, o Drama do Calvário. Depois do sucesso de Vestido ele parte ao seu ciclo bíblico-greco. No adro do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (São José de Colgonhas na peça), o genial escultor colocou Jonas ao lado de Daniel (Deus é meu juiz). Deus determina ao profeta que vá converter a imoral Nínive, mas ele foge à pacífica Tarsis e durante a viagem tempestade faz com que os marinheiros o acordem: “Dorme? Acorda e invoca teu deus pra gente não morrer”. Jonas confessa seu pecado, é jogado ao mar e engolido pela baleia, símbolo do inconsciente, porém três dias depois se arrepende, escapa ao ventre do animal e vai à cidade corrupta para impor a lei divina.

A paródia está no fato do Jonas do poeta morrer em pecado porque foge ao sagrado incesto, ato de amor ao qual se entregam a esposa e o filho caçula Nonô, daí o final feliz da tragédia: Recebe, Senhor, com a tua misericórdia o teu servo no reino da esperança para a sua salvação, amém. Salva, Senhor, a alma de teu servo do perigo do inferno, da armadilha do pecado e de toda tribulação, amém. Livra, Senhor, a alma de teu servo da morte terrena assim como dela livrastes Enoc e Elias, amém.
Anjo negro (1946): Os protagonistas são Ismael (Deus ouve, Gênesis, cena 25), Virgínia (Virgem Maria), Elias (Jeová é Deus, Reis I, cena 18) e Ana Maria (Senhora cheia de graça).

Ismael é primogênito de Abraão com a criada egípcia Agar (Estrangeira), mas após Sara dar à luz Isaac eles são expulsos ao deserto onde o anjo de Deus lhes revela a fonte salvadora. Chegam ao seu destino, o rapaz cresce, se casa e tem filhos dando origem aos povos árabes e africanos, os ismaelitas ou muçulmanos. Essa fonte aparece na peça de Nelson, mas agora como local de escárnio da tia e primas da heroína.
A paráfrase está no fato do Ismael do poeta tornar-se pai igual ao seu homônimo bíblico já que, fecundado ao baixar do pano, o seu quarto filho viverá (os três primeiros foram mortos pela mãe com o conivência do pai) graças ao sacrifício criador da enteada Ana Maria (filha de Elias e Virgínia) em seu túmulo de vidro após o encantado beijo do padrasto: tal uma Branca de Neve ajoelhada de braços abertos ela garante a descendência de Ismael e Virgínia. Belíssimo desenlace à obra máxima de Nelson, escrita quando ele findava seus 33 anos, a data mais importante na vida do Salvador.

Senhora dos afogados (1947): Os protagonistas são Misael (Semelhante a Deus, Daniel, cena 1) e a filha Moema (Exausta).
O personagen bíblico administra o Templo de Davi e Salomão e pelo anjo de Deus é salvo da morte junto aos leões de Nabucodonosor.
A paródia está no fato do Misael do poeta ser incapaz de administrar sua própria casa e morrer no regaço da selvagem filha Moema.

Dorotéia (1949): Os protagonistas são Dorotéia (Oferenda de Deus) e sua tia Flávia.
A virgem cristã é morta pelo despótico imperador Diocleciano.
O misto de paródia e paráfrase está no fato de que nesta farsa irresponsável do poeta sua Dorotéia ser uma mariposa que acaba apodrecendo junto à tirânica tia Flávia.

Intermezzo
Valsa nº 6 (1951)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico: o poeta renasce

Segunda fase
A falecida (1953)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
Perdoa-me por me traíres (1957)
Paródia à trajetória do herói evangélico
Viúva, porém honesta (1957)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Os sete gatinhos (1958)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Boca de ouro (1959)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
O beijo no asfalto (1960)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico.
Otto Lara Rezende ou bonitinha, mas ordinária (1962)
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
Toda nudez será castigada (1965)
Paródia à trajetória da Madalena evangélica
Anti-Nelson Rodrigues (1973).                                     
Paráfrase à trajetória do herói evangélico
A serpente (1978)
Paráfrase à Queda do homem do Gênesis

Salvo seu melhor amigo Hélio Pellegrino, ninguém até hoje (2011) abordou a poesia dramática de Nelson à luz da matriz que o inspirou, justificando sua frase: só os profetas enxergam o óbvio. Nelson recria à nossa época o Mito de Cristo que há mais de dois mil anos é fundamento moral e cultural da civilização ocidental impondo sua visão e modos de agir ao planeta. Degenerada há muito tempo, como a fênix essa perene verdade renasce aos trancos e barrancos entre os homens de hoje augurando o salto de qualidade da consciência coletiva para oferecer de si novas imagens e outros nomes de acordo com a cultura global de nossos dias. A função e o sentido da poesia dramática que o mito é são nos ensinar quem somos e como nos criarmos a nós mesmos colocando o instinto sob o poder da intuição casada ao sentimento, ou seja, Jesus sob o poder do Cristo. São esses o sentido e a função do teatro do poeta. A inspirada recriação da poesia bíblica, em especial os quatro poemas do ciclo bíblico-greco, derrisoriamente chamado teatro desagradável por Nelson, evidencia o fato de que aquilo que ontem foi possível ao homem há muitos séculos deixou de sê-lo. Se expressivo número de nossos semelhantes dos primórdios da cristandade vivenciava diariamente o seu poder criador, a quase unanimidade da presente humanidade come do pão que o diabo amassou no fermento de nosso orgulhoso e patético vazio criador.


 DRAMAS BÍBLICO E RODRIGUIANO.
Francisco Carneiro da Cunha

A criação teatral do poeta inspira-se nos textos bíblicos, especialmente o Drama do Calvário que fundamenta moral e culturalmente nossa civilização. Como genial paródia ou paráfrase do drama bíblico essa obra regenera toda degeneração da verdade original levada a cabo pelo civilizado sob a liderança de suas igrejas e seus governos. A justa compreensão e a corajosa vivência da obra do maior dramaturgo de língua portuguesa equivalem à melhor escola de teatro.
Isso a que se chama vida é o que se representa no palco e não o que se vive cá fora. Mais importantes são os ovários da alma, os verdadeiros órgãos genitais estão na alma (NR).

Tão importante quanto os ovários da alma é o poder espiritual que a engravida.
Eternos e infinitos, os verdadeiros órgãos genitais estão na alma e no espírito dos homens.

Somos filhos da Terra e por isso estamos impregnados de sua energia que o instinto é, mas do Cosmo haurimos a energia da intuição que àquela fecunda nos fazendo plenamente conscientes ou humanos. É criador de personagens, seus outros egos, quem permite a esses dois magnos poderes comungarem amorosamente em seu ser, ordenando dramaticamente sensação, pensamento e sentimento para, todos juntos, colocarem a personalidade cidadã a serviço do ato criador que nos humaniza, da mesma forma que aos expectadores sensíveis ao único milagre que nos é dado praticar garantindo nossa completa saúde física, mental e espiritual, isto é, nossa inteira harmonia e felicidade.

Todo dia tal ritual criador deve acontecer coletivamente entre os homens sob pena de continuarmos patinando na barbárie que vem sendo nossa marca registrada desde que o civilizado surgiu no planeta, salvo nos períodos de renascimento da civilização dentre os quais três se destacam no Ocidente: Grécia de 2500 anos passados, Palestina de 2000 anos atrás, Europa de há 500 anos.
Na cena inicial do Drama do Calvário a divina alma é fertilizada pelo santo espírito, enviado à Terra pelo Criador para dar vida plena à humana criatura. O verdadeiro nome para religião é criação.

Personagens evangélicos na linguagem contemporânea

José é como os poetas dramáticos evangélicos representam o homem intelectual. Mas quando obedece à palavra de Deus, comunicada a ele em sonho pelo mensageiro Gabriel (gabri em hebraico significa varão e el, divino), esse esposo maduro passa a São José ou Homem criador. Esclarecido pelo arcanjo o quarentão aceita ser pai de Jesus Cristo.
Maria é como os poetas dramáticos judeus e grego simbolizam o homem sensual. Mas quando assume a ordem de Deus, a ela comunicada numa visão pelo mesmo Gabriel da espada de fogo, o falo sagrado que a fertiliza, a esposa adolescente torna-se Virgem Maria ou Homem criador. Iluminada pelo arcanjo a donzela acata ser mãe do Salvador.
Arcanjo Gabriel ou Espírito Santo é como os dramaturgos palestinos figuram a intuição.
Jesus ou Segundo Adão é como os dramaturgos antigos pintam o instinto.
Cristo é como os quatro dramaturgos canônicos caracterizam a intuição sentimental.
Satanás é como as dezenas de dramaturgos apócrifos denominam o pensamento sensual. Para que o milagre da criação aconteça é preciso que o adversário (satã em hebraico) seja posto em seu lugar: vade retro satanas! Morre a consciência egoísta da pessoa ávida de poder, dinheiro e fama para que seu corpo, psicologia e emoções passem a servir o personagem criado.
Jesus Cristo satanás é como os evangelistas nomeiam o andrógino Homem criador.
A identidade dos personagens evangélicos com os de Nelson é completa, mas para a maioria de seus leitores e espectadores ela não é compreendida nem aceita mercê da confusão do mundo atual imerso em calamitoso fim. Ao passo que a obra de seus colegas de antigamente esteve logo clara para multidões graças à época em que foi concebida, a do renascimento da genial arte dramática grega fenecida durante o helenismo e entre romanos, e graças ao local onde ela foi representada, a Palestina como especial ponto de encontro humanista e cultural entre Ocidente e Oriente.

Personagens evangélicos na linguagem rodrigueana

José é Olegário em A mulher sem pecado, dentre outros José de outras peças do poeta.
Maria é Lídia em A mulher sem pecado, dentre outras Maria de outras peças do poeta.
São José é Gilberto em Perdoa-me por me traíres, dentre outros São José de outras peças do poeta.
Virgem Maria é Senhorinha em Álbum de família, dentre outras Virgens Maria de outras peças do poeta.
Arcanjo Gabriel é o Coxo da Colombo em A mulher sem pecado, dentre outros arcanjos de outras peças.
Jesus é Nonô em Álbum de família, dentre outros Jesus de outras peças do poeta.
Cristo é Elias em Anjo negro, dentre outros Cristos de outras peças do poeta.
Satanás é Lúcia em Vestido de noiva, dentre outros satanases de outras peças do poeta.
Jesus Cristo satanás é Ana Maria em Anjo negro, dentre outros JC satanases de outras peças do poeta.

Cenas a serem representadas diariamente entre o povo

Peça: Gênesis (Origens)
Autor: Cortesã de Salomão (segundo Harold Bloom)
Cena: Primeira (Queda do Paraíso: Homem primitivo civiliza-se afirmando seu ego)
Cenário: Jardim do Éden.
Personagens: Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Jeová, Adão, Eva, Serpente, Animais
Peça: Drama do Calvário
Autores: Lucas e Mateus
Cenas: Primeira e Primeira (Anunciação: Homem criador é concebido)
Cenário: Casa de José e Maria em Nazaré
Personagens: Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Maria, José
Peça: Paixão de Cristo
Autores: Mateus e Lucas
Cenas: Segunda e Segunda (Nascimento: Homem criador vem ao mundo)
Cenário: Manjedoura em Belém
Personagens: Estrela do Oriente (E. Santo), Homem criador, Reis Magos, São José, Virgem Maria, Animais
Peça: Evangelho
Autor: Mateus
Cena: Segunda (Massacre dos inocentes: Homem criador escapa da morte)
Cenário: Judéia
Personagens: Anjo (Espírito Santo), Homem Criador, São José, Virgem Maria, Herodes, Soldados, Crianças
Peça: Boa Nova
Autor: Lucas
Cena: Segunda (No templo: Homem criador ensina criação ao Sinédrio)
Cenário: Templo de Jerusalém
Personagens: Homem criador, burocratas religiosos
Peça: Drama do Calvário
Autores: Mateus e Marcos.
Cenas: Terceira e Primeira (Batismo: Homem criador é ungido antes de iniciar vida pública)
Cenário: Rio Jordão
Personagens: Pomba (Espírito Santo), Homem criador, João Batista, Povo
Peça: Paixão de Cristo
Autor: Mateus
Cenas 5, 6 e 7 (Sermão da montanha: Homem criador ensina criação ao povo)
Cenário: Montanha em Jerusalém
Personagens: E. Santo (surgido ao final da cena 4, ele preside o Sermão), Homem criador, Apóstolos, Povo


Peça: Evangelho
Autor: Lucas
Cena: Vinte e Dois (Solidão do herói: Homem criador assume sua missão)
Cenário: Horto das Oliveiras
Personagens: Homem criador, Apóstolos, Soldados
Peça: Boa Nova
Autor: Mateus
Cena: Vinte e sete (Crucificação: Homem criador suicida seu ego)
Cenário: Calvário em Jerusalém
Personagens: Pomba (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, M. Madalena, João, Soldados, Povo
Peça: Drama do Calvário
Autor: Nicodemus
Cena: Segunda parte (Descida ao inferno: Homem criador dá vida aos mortos)
Cenário: Inferno
Personagens: Homem criador, satanás e outros
Peça: Paixão de Cristo
Autor: Mateus
Cena: Vinte e oito (Renascimento: Homem criador vence a morte)
Cenário: Sepulcro em Jerusalém
Personagens: Arcanjo Gabriel (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, Maria Madalena
Peça: Evangelho
Autor: Mateus.
Cena: Vinte e oito (Pentecostes: Homem criador converte seus seguidores)
Cenário: Cenáculo em Jerusalém
Personagens: Línguas de Fogo (Espírito Santo), Homem criador, Virgem Maria, Maria Madalena, Apóstolos
Peça: Boa Nova
Autor: Marcos
Cena: Dezesseis (Ascensão: Homem criador entra em sua glória)
Cenário: Etéreo e Céu.                                                            
Personagens: Anjos (Espírito Santo), Homem criador, Deus

ANJO NEGRO
Francisco Carneiro da Cunha
Abaixo a barbárie civilizada, viva o homem criador!

A obra teatral de Nelson Rodrigues está em cartaz desde dezembro de 1942 quando A mulher sem pecado estreou no Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro. Depois de sua morte em 1980 e pelos próximos vinte anos encenações de suas peças tornaram-se obrigatórias em todas as temporadas e festivais teatrais no Brasil. Como as de Shakespeare na Inglaterra, Molière na França, etc. O autor já é um clássico fazendo parte de nosso currículo escolar, tem o respaldo do público e é cada vez mais conhecido no exterior. Raro fenômeno cultural.

Em crônica do livro A menina sem estrela o poeta conta que desde menino desejara escrever Anjo Negro, texto criado em 1946 quando findavam seus 33 anos, idade com que o herói evangélico deixa-se matar para salvar a humanidade, personagem que durante toda a vida foi seu modelo inspirador. Mas essa magna obra, deixada como legado ao seu primogênito, de todas suas dezessete peças é a que o público menos viu porque até hoje somente quatro vezes levada profissionalmente à cena. Flagrante injustiça.

Anjo Negro é belíssimo painel sobre a trágica união entre pensamento e sensação personalistas tiranizando o instinto, o primeiro rejeitando o inconsciente pela eliminação da intuição criadora, a segunda rejeitando a consciência criadora pelo sufoco do sentimento materno, ambos matando em seu nascedouro as criações do homem: o orgulhoso negro Ismael de consciência petrificada, simbolizada em seu terno de linho branco engomado, em guerra com a bela Virgínia branca de consciência culpada, representada em seu vestido negro de luto fechado. Nessa epopéia de amor e morte, em cujo final o casal está virtualmente liberto, destaca-se o coro das senhoras negras descalças que, invisível aos outros personagens, representa o sábio e atemporal inconsciente da humanidade ao mesmo tempo em que a milenar consciência esquizofrênica do civilizado, cristã e burguesa desde muitos séculos.

Por meio de seu carisma fruto da violência amorosa com que foi dado à luz, e da conseqüente catarse que nos humaniza, Anjo Negro é arma indispensável na luta contra a violência do ódio nos desumanizando cuja causa é nossa patética ignorância do inconsciente, a face oculta de Deus em nós, garantia de nossa liberdade que só pode ser conquistada por meio da imaginação criadora expressa em símbolos e metáforas poéticos a serem criados no palco por atores lúcidos e viscerais. Por isso exige ser levado à cena como grandioso musical sacro a ser vivenciado por platéias mais numerosas e diversas que as tradicionais, público de espaços abertos como o Vale do Anhangabaú em São Paulo ou a Rocinha no Rio, público de penitenciárias e febens, favelas e periferias.

Ainda outro dia alguém me perguntava: Por que você fez Anjo Negro? Aí está uma peça que continua me fascinando. Tenho de cor passagens inteiras. Quase posso dizer que ela nasceu comigo. Eu não sabia ler nem escrever e já percebera uma verdade que até hoje escapa a Gilberto Freyre: não gostamos do negro. Para mim era tão apaixonante o nosso problema racial que Anjo Negro ia ser minha primeira peça.
Crônica de Nelson em A menina sem estrela.

De fato, não gostamos do negro, a face oculta de Deus em nós, realidade que o poeta focaliza em sua peça e a psicologia chama de inconsciente, o instinto animal que o primitivo manifestava livremente e o civilizado reprime. Seu símbolo é a treva noturna da mesma forma que o sol o da consciência criadora, ao passo que a luz baça da lua representa a consciência somente produtora. Entretanto, não gostar do negro não significa não gostar de negro, homem que o sociólogo citado estudou em seus livros. Ignorância e conhecimento do sagrado são condições indispensáveis para nos unirmos a nossos pais eternos nos tornando seres livres porque criadores. Como não podemos ferir a divina negritude conformando nosso íntimo ser, ferimos o homem negro nosso irmão como o bode expiatório de nossa rejeição ao Criador e à criação.

É voz corrente que nosso maior medo é da morte física, falecimento inerente ao viver desde que concebidos por nossos pais carnais. Mas não é verdade, pois o maior medo é da morte simbólica da pessoa social que estamos no mundo, personalidade calcada em ambição de riqueza, poder e fama que preencham nosso vazio criador, algo que família, escola, religião, política e ideologias nos forçam a assumir do berço ao túmulo, sendo somente essa ilusória consciência que nos impede conquistar a suprema beleza e harmonia da eterna e universal individualidade. Para que a criação do personagem nos redima de tão ruinosa neurose decorrente de atávica insegurança existencial, fruto de nosso rompimento com a Natureza desde que civilizados, é indispensável que o eu morra em sua empáfia e orgulho deixando de ser o tresloucado tirano de nossas vidas para tornar-se humilde servidor do Eu que, somente ele, sabe governar em paz dramática o cidadão. Algo apenas possível se todos os dias vivenciarmos simultaneamente, com amor e verdade, a energia cósmica e a terrena devendo nos conformar, pois só a primeira nos liberta da servidão que a segunda impõe.

Quando atacamos o homem negro (a ocasião faz o ladrão!), o que de fato atacamos é o divino em nós, pois o civilizado só admite sua mundana pessoa cidadã. Ao negarmos o inconsciente negamos consciência e imaginação criadoras que só existem para lhe dar vida, dando vida ao personagem. Vivemos sob a tacanha e criminosa ditadura do ego. Todo preconceito ao homem negro da parte de negros e brancos ou amarelos e vermelhos, mas estes somente se já civilizados, tem origem na guerra cega que movemos contra a Natureza e o inconsciente, realidades que nossa consciência personalista não aceita porque pretende tudo saber e conhecer unicamente por meio do pensamento e sentidos sufocando o instinto, desprezando o sentimento, rejeitando a intuição. Mas graças ao sacrifício de Ana Maria, senhora cheia de graça, a salvação de Ismael e Virgínia concebendo em seu leito de amor e morte um novo anjo negro, desta vez para viver, é a do ser humano que representam.

A alegria nem o otimismo pertencem ao teatro. Ele é desespero ou não é teatro. Deveríamos assisti-lo não sentados, mas atônitos e de joelhos. Na verdade, o que ocorre no palco é o julgamento do mundo, o nosso próprio julgamento. E grande teatro é aquele que faz o espectador crispar-se na cadeira numa angústia de condenado.
Entrevista de Nelson a Austregésilo de Athayde em 1947












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