quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Um bonde chamado desejo"

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Excelente versão de obra-prima



Lionel Fischer



"Arruinada financeiramente e já evidenciando sintomas que mais tarde a levariam à completa loucura, a sonhadora Blanche Dubois busca refúgio na casa da irmã mais velha Stella, casada com Stanley Kowalski. E logo uma fortíssima tensão se estabelece entre ambos, já que a bestial carnalidade de Stanley é diametralmente oposta ao etéreo espírito de Blanche, daí resultando a mais pungente e bela metáfora do duelo entre o sonho e a realidade, entre a alma e o corpo, que o teatro já produziu".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Um bonde chamado desejo", de autoria de Tennessee Williams. Após cumprir longa e bem sucedida temporada em São Paulo, a montagem está em cartaz no antigo Teatro do Jockey, ora inteiramente reformado e rebatizado de Teatro XP. Rafael Gomes assina a tradução e direção, estando o elenco formado por Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes.  

Por tratar-se de uma das mais brilhantes peças escritas no século XX, e já analisada por especialistas certamente bem mais capazes do que eu, pouparei o leitor de minhas singelas impressões, limitando-me a declarar minha irrestrita paixão pelo texto. Vamos, então, ao espetáculo.

Na montagem original na Broadway, em 1947, assim como no filme de 1951, que recebeu o título de "Uma rua chamada pecado", o realismo imperava. Ou seja: a cenografia reproduzia um cortiço miserável, de apenas dois cômodos (o que inviabilizava qualquer possibilidade de uma maior privacidade) e o insuportável calor do verão contribuía para acirrar os ânimos - dentre outros aspectos, evidentemente.

Na presente versão, o realismo foi completamente banido. O cenógrafo André Cortez criou uma estrutura de madeira que é permanentemente modificada, possibilitando que as ações transcorram nos poucos ambientes da casa - tal solução, além de extremamente inventiva, permite a suposição de que o cenógrafo possa ter objetivado sugerir algum parentesco entre o cortiço em questão e um chiqueiro. Circundando essa estrutura, existe um trilho sobre o qual, em alguns momentos, um carrinho desliza, conduzindo um personagem - e aqui também me parece que a ideia seria a de aprisionamento, como se fosse impossível escapar daquele contexto.  

Isto posto, cabe a pergunta: a renúncia ao realismo compromete ou minimiza os conteúdos propostos pelo autor? Em minha opinião, não, pois caso esse tipo de respeito devesse ser perpetuado, então os intérpretes das tragédias gregas teriam necessariamente que vestir túnicas, os de Shakespeare portar capas e espadas, e a cenografia, em ambos os casos, teria que reproduzir fielmente um anfiteatro ou o palco elizabetano. 

Ou seja: releituras dos grandes clássicos estariam fadadas a serem condenadas e o fenômeno teatral se veria reduzido à mera reprodução de modelos que, em muitos casos, ninguém sabe exatamente como se materializaram - ou será que existe entre nós alguns privilegiados que assistiram a montagens de textos de Sófocles ou de Shakespeare, feitas em suas respectivas épocas,  para reivindicar que os mesmos só comportam uma maneira de levá-los à cena?

Não acredito que o diretor Rafael Gomes tenha pretendido afrontar  Tennessee Williams ao propor uma versão não realista desta obra-prima. Acredito, sim, que tenha objetivado materializar uma dinâmica cênica que privilegia a virulenta exposição dos conflitos em jogo, o que implica na inevitável renúncia aos meios-tons e  algumas nuances. Mas será que tal renúncia minimiza efetivamente a obra? 

Em minha opinião, não. Trata-se apenas e tão somente de um novo olhar, que agradará a uns e desagradará a outros. A mim, particularmente, gerou profundo impacto e não menos profundo encantamento. E portanto parabenizo o jovem encenador com total entusiasmo, fazendo questão de ressaltar a expressividade de muitas de suas marcações, em especial a que encerra o espetáculo - não a detalho pois isso privaria o leitor de usufruir o impacto de um momento sublime que ele jamais esquecerá.

Com relação ao elenco, Maria Luisa Mendonça exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Possuidora de excelente voz, impecável trabalho corporal, grande carisma e fortíssima presença cênica, a atriz se entrega de forma tão visceral à personagem que não hesito em afirmar que, se vivo fosse, o autor a aplaudiria de pé, a respiração ofegante e o rosto banhado de lágrimas. Sob todos os pontos de vista, uma das atuações mais impactantes da atual temporada.  

Quanto a Du Moscovis, imagino que possa estar sendo vítima de inócuas comparações, no presente caso com a performance de Marlon Brando, que fez Stanley no já citado filme. Então, vamos por partes. Além de ter sido um dos melhores e mais sedutores atores de todos os tempos, possuidor de uma beleza e de um magnetismo difíceis de serem descritos em palavras, quando fez o filme Marlon Brando tinha 27 anos. Estava, portanto, em seu apogeu físico. 

Ao que me consta, Du Moscovis está perto de completar 50 anos e, ainda que belo e excelente ator, e muitíssimo bem conservado para sua idade, nem ele e tampouco qualquer outro intérprete reuniria condições de rivalizar com os já mencionados predicados de Brando. Isto posto, considero de excelente nível a performance de Moscovis, que em meu entendimento consegue materializar as principais características do dificílimo personagem que encarna.

Quanto aos demais intérpretes, todos exibem atuações seguras e dignas, em especial Virgínia Buckowski, atriz que interpreta Stella,  e cuja contracena com Blanche gera na plateia, em várias passagens, profunda emoção.

No complemento da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Wagner Antonio (iluminação), Fause Haten (figurinos) e Rafael Gomes (seleção musical e tradução).

UM BONDE CHAMADO DESEJO - Texto de Tennessee Williams. Direção de Rafael Gomes. Com Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes. Teatro XP. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.



  

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