terça-feira, 7 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA


"O jornal - The Rolling Stone"

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Dilacerado brado contra a intolerância



Lionel Fischer




"Após a morte do pai, três irmãos - Joe, Dembe e Wummie - precisam reconstruir suas vidas. Joe se prepara para ser reverendo, enquanto Dembe e Wummie estudam para progredir diante da desigualdade. Mas o destino seria fatal: Dembe conhece Sam e eles acabam se apaixonando. Condenados pela lei, pela sociedade e pela religião, eles terão de optar entre se separar ou arriscar a própria vida para viver esse amor. Inspirada em fatos reais, a peça faz alusão ao periódico ugandense The Rolling Stone que, em 2010, publicou uma lista com 100 nomes de homossexuais e incitou seus leitores a enforcar os mencionados".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "O jornal - The Rolling Stone", de autoria do jovem dramaturgo britânico Chris Urch. Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem tem direção assinada por Kiko Mascarenhas (codireção de Lázaro Ramos), estando o elenco formado por André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam).

Como todos sabemos, o famigerado Adolf Hitler cultivava uma crença - a da superioridade da raça ariana - e tinha como principal objetivo dominar o mundo. Mas para tanto, além de criar uma aparentemente invencível máquina de guerra, também julgou essencial  exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E aqui, visando não me estender em demasia, me detenho apenas na questão da homossexualidade. Por que será que, exceção feita à Grécia Antiga - quando as mulheres pouco ou nada significavam e os homens mais brilhantes tinham rapazes como amantes - os homossexuais são alvo de tão brutal e permanente perseguição?

Muitos poderão argumentar que, hoje em dia, as coisas já não ocorrem como antigamente, e que homossexuais de ambos os sexos estão sendo cada vez mais aceitos e respeitados. E isso não deixa de ser verdade. No entanto, tal aceitação e respeito não me parecem fruto de uma nova e libertária  consciência no que diz respeito ao legítimo direito que cada um possui de dirigir seus afetos como bem entender. Pelo contrário: a batalha contra o preconceito continua sendo travada, e deve ter como alvo principal aqueles que procuram disfarçar sua intolerância sob a abominável máscara da hipocrisia. 

No presente caso, o autor nos coloca diante de um fato real, ocorrido há poucos anos. E esse fato se dá em um país regido por leis (?) que em tudo se assemelham às das mais tirânicas sociedades medievais. Mas será que só em Uganda os homossexuais são perseguidos e mortos? No Brasil não existe, ao menos que eu saiba, um jornal que estimule seus leitores a enforcar homossexuais. E no entanto, e dados estatísticos comprovam, nosso país é um dos líderes nesse tipo de crime. Portanto, e por mais deplorável que seja, Brasil e Uganda evidenciam macabro parentesco. E caso o neguemos, só estaremos contribuindo para a perpetuação de crimes para os quais não existe qualquer possibilidade de redenção.  

Digressões feitas, e admitindo que tenham sido um tanto longas, voltemos ao imperdível evento teatral em cartaz no Poeira. Bem escrito, contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e abordando questões da mais alta pertinência, o texto de Chris Urch recebeu maravilhosa versão cênica de Kiko Mascarenhas, certamente muito auxiliado por Lázaro Ramos. Exibindo marcas imprevistas e criativas, plenas de densidade e impregnadas de dilacerada poesia, a montagem tem o mérito suplementar de colocar no palco intérpretes que merecem estar nele. 

Ou seja: profissionais que, além de evidenciarem notáveis predicados artísticos, entregam-se visceralmente aos personagens que interpretam e exibem aquele tipo de contracena só passível de acontecer quando a confiança é mútua e todos acreditam totalmente na validade das questões abordadas. Assim, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço o inesquecível encontro que me proporcionaram.

Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros assina uma das mais expressivas iluminações de sua brilhante carreira, contribuindo decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos conteúdos em jogo, com a mesma eficiência presente nas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Diego Teza (tradução), José Carlos Arandiba (direção de movimento), Edi Montecchi (preparação vocal), Wladimir Pinheiro (trilha sonora original), Mauro Vicente Ferreira (cenografia e adereços), Tereza Nabuco (figurinos) e os cantores (vozes em off) Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone e Wladimir Pinheiro.

O JORNAL - THE ROLLING STONE - Texto de Chris Urch. Direção de Kiko Mascarenhas. Codireção de Lázaro Ramos. Com André Luiz Miranda, Danilo Ferreira, Heloísa Jorge, Indira Nascimento, Marcella Gobatti e Marcos Guian. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.











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