terça-feira, 9 de maio de 2017

ASPECTOS POÉTICOS E PEDAGÓGICOS NAS CRIAÇÕES TEATRAIS DE PETER BROOK E ARIANE MNOUCHKINE 

Gabriela P. Fregoneis 1 Luciana Paula Castilho Barone2 
Perspectiva, 20O Mosaico – Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.2, p.1-10, jul./dez. 2009 1 

RESUMO: Este artigo aborda um estudo comparativo entre os procedimentos teatrais do diretor inglês Peter Brook, fundador do Centro Internacional de Pesquisa Teatral, e da francesa Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, a partir da interculturalidade, dos processos de criação (e sua condução pedagógica) e da atualização de Shakespeare – analisando as diferenças entre as abordagens dos encenadores em cada um destes aspectos. PALAVRAS-CHAVE: Processos criativos; Pedagogia; Poética. 

ATUALIZAÇÃO DE SHAKESPEARE 


Quando comecei a trabalhar com Shakespeare, acreditava até certo ponto na possibilidade de uma música clássica das palavras, onde cada verso possuía seu som correto, apenas com leves variações, depois, a experiência prática me ensinou que isso era absolutamente falso. Quanto mais musical for a sua abordagem musical de Shakespeare – ou seja, quanto mais sensível você for à música-, tanto mais verá que não existe maneira, a não ser por puro pedantismo, de fixar a música a um verso. (BROOK, 1995, p.132) 

Outro ponto relevante para o diretor é a presença concomitante de poesia e prosa que os textos do dramaturgo oferecem, já que os versos livres dão grande margem à criação teatral. Para Brook, a temática das peças de Shakespeare é simples e complexa, humana e universal, fazendo com que elas ultrapassem a barreira do tempo, tornando-as eternamente contemporâneas. Essa riqueza em suas obras, faz com que encontremos personagens literários na vida cotidiana. Ele explica que “podemos ouvir o ritmo peculiar de sua fala (personagem), pelos quais nós o reconheceríamos de imediato como uma personagem da vida real, com um nome, como se a encontrássemos na rua.” (BROOK, 1995, p.119). 

Segundo o diretor, Shakespeare consegue desmascarar a sociedade e entregar mazelas humanas de maneira espetacular. Isso ocorre com maestria na peça A tempestade, última obra do escritor. Mas quando vemos que nada na peça é o que aparenta ser, como ela acontece em uma ilha e não numa ilha, de dia e não de dia, com uma tempestade que gera uma série de acontecimentos que ainda estão numa tempestade mesmo quando o temporal acabou, que a encantadora pastoral para crianças naturalmente abrange estupro, assassínio, conspiração e violência, quando começamos a exumar os temas que Shakespeare enterrou com tanto cuidado, verificamos que se trata da sua declaração derradeira e que abrange toda a condição humana. (BROOK, 1970, p.99).

Já para Ariane Mnouchkine, a importância de Shakespeare está na abordagem social e política de seus textos, pois sabemos que o dramaturgo escreveu muitas peças que relatavam fatos históricos e a sociedade em que eles estavam inseridos. Sendo assim, Ariane explorou essa forma dramatúrgica no Ciclo de Shakespeare, montado pelo Théâtre du Soleil no início da década de 80. “Shakespeare estava sendo visto como um modo de descobrir técnicas sobre relatos políticos e históricos, e a companhia começou a pesquisar a relação da história da Inglaterra com o texto de Ricardo II”. 

Outro ponto relevante diz respeito às temáticas abordadas em suas obras, a exemplo de Ricardo II (primeira encenação do Ciclo de Shakespeare). A estrutura dos textos serviu de base para descobrir formas dramatúrgicas que abordam relatos políticos e históricos. A companhia estabeleceu relações entre o texto Ricardo II e a história da Inglaterra para posteriormente relacionar esse texto com a cultura oriental, mais especificamente a japonesa. Assim surgiu o Ciclo que contou com mais duas peças: Noite de Reis (1982), que se apropriou de formas teatrais da Índia e Pérsia e Henrique IV (1984), também montado dentro das bases formais do teatro asiático. 

Ariane tratou este paralelo relacionando duas formas em constante amadurecimento: os textos de Shakespeare, que abordam temas inesgotáveis e têm uma dramaturgia rica (unindo prosa e verso) e o teatro asiático, que preserva uma teatralidade, apoiada em convenções e codificações, na transformação da realidade por meio de uma estética não realista. Patrice Pavis, em seu livro O teatro no cruzamento de culturas, distingue a visão dos dois encenadores frente às obras de Shakespeare, ressaltando que Brook vê nele um autor muito próximo e imediato, um “contemporâneo”, e já Mnouchkine está impressionada preferencialmente pela forma poética de sua escritura e pela mistura de proximidade e distância, de individualidade e coletividade. Focando o processo de criação dos espetáculos e sua condução pedagógica, iniciaremos analisando o trabalho desenvolvido por Peter Brook dentro de sua companhia. 

Antes de estudar os processos que envolvem especificamente espetáculos, destacaremos a trajetória do encenador pela busca da compreensão dos elementos que formam a ação cênica. Em 1971, o encenador viaja para o Irã com o intuito de estudar a força da linguagem na encenação, sendo que a maioria das improvisações era realizada em um gramelô. Essa pesquisa concretizou-se com a montagem da peça Orghast de Ted Hughes. 

Em dezembro de 1972, Brook viaja para a África com um grupo de 30 pessoas, para descobrir as condições reais para se formar uma platéia, qual o melhor jeito de chamar o público, qual o melhor período do dia, o que fazer quando há um pingo de gente (BROOK, 1995, p.157). Foi montada a peça A Conferência dos Pássaros para compreender com mais plenitude os vínculos existentes entre a verdade de uma forma e a qualidade daquilo que o público recebe. 

"Em 1973 apresentamos três versões diferentes. A apresentação das 20 horas poderia ser classificada como teatro bruto: vulgar, cômica, cheia de vida. A da meia-noite aproximou-se de uma busca do sagrado: profunda, sussurrada, à luz de velas. A versão final iniciou-se no escuro, às cinco da manhã, e terminou com o raiar do dia – assumiu a forma de um coral, e tudo aconteceu através do canto improvisado". (BROOK, 1995, p.207) 

Partindo para os processos de criação, o ator japonês Yoshi Oida em seu livro Um Ator Errante descreve procedimentos utilizados frequentemente pelo diretor em suas montagens, podendo destacar a não determinação de papéis na peça, sendo que os atores realizavam improvisações sobre todos os personagens, até o momento em que ele descobre, entre as múltiplas construções, a melhor. 

No começo dos ensaios, ele explica ao conjunto da equipe, incluindo cenógrafo, músicos, etc. qual a ideia do todo. Cada um parte para seu próprio trabalho criador, segundo a própria visão. Brook não interfere, a não ser que haja distanciamento da orientação de base. (OIDA, 1999, p.33) Objetivaremos agora processos de criação que permeiam algumas de suas montagens, iniciando com Orghast do inglês Ted Hughes. 

A peça conta as histórias de Prometeu, Hércules e Édipo, por meio de um texto escrito em uma língua fictícia, já destinada a uma companhia plurinacional, mesclando esperanto, grego arcaico, latim e avesta. A peça não conta com nenhum cenário nem figurino, apenas com uma necrópole em ruína. Nesta fase do trabalho, Brook direciona suas investigações para o Teatro sagrado, buscando trabalhar na preparação dos atores principalmente a sonoridade e intenção do texto e não o seu significado propriamente dito. 

Passado um tempo, nota-se que a peça estava focada apenas na sonoridade, carecendo dos movimentos do corpo. Logo, Brook levou seus atores para se apresentarem em uma escola de crianças surdas, para perceberem a vivacidade, eloqüência e rapidez de suas linguagens corporais. O objetivo de Brook era investigar o que acontece quando gesto e som tornam-se palavras. (BROOK, 1995, p.150). 

Processo semelhante acontece com a peça A tempestade, de Shakespeare, na qual Brook apresenta peças em escolas infantis, pois sabe que a espontaneidade das crianças (expressa por suas reações) indica os fatores mais relevantes da encenação. Os atores se adequam ao lugar (geralmente um porão velho e apertado) e aos objetos que os alunos possuem na sala de aula. É a partir dessas experiências que ele dá  continuidade a seu processo de criação, iniciado anteriormente com exercícios diários de improvisação, sem partir de idéias preconcebidas, realizando experimentações e análise racional do texto, para posteriormente apresentar às pessoas fora da companhia (BROOK, 2002, p.62). 

Para a montagem do espetáculo The Man Who, peça baseada no livro de Oliver Sacks O homem que confundiu sua mulher com seu chapéu, que trata de problemas neurológicos, o primeiro passo foi estudar os distúrbios mentais e visitar um hospital neurológico para observar e conversar com pacientes, para só posteriormente iniciar o trabalho com o texto. (OIDA, 2001, p.82). 

Uma peça que teve um processo criativo singular foi Os iks - representação sobre o modo de vida de um vilarejo africano ao norte da Uganda. Para a preparação dos atores, foi convidada Monika Pagneux, da escola Lecoq, para auxiliar nas construções corporais. Juntamente com o trabalho de corpo, foram vistos documentários e fotos sobre os iks, observando a maneira que eles sentavam, caminhavam... depois eram imitadas as posições de corpos e expressões faciais. O andar leve, o controle dos movimentos era experimentado pelos atores, já que os iks tinham esses comportamentos devido à fome. Só foi realizado o estudo de texto na última etapa, quando as características físicas e psicológicas das personagens já estavam bem fixadas. 

A concepção deste espetáculo foi trabalhada dentro do modelo realista de representação, pois houve uma tentativa de reprodução fiel à da realidade de Uganda. Destacaremos duas peças que partiram de um ponto em comum: a montagem de A Tempestade de Brook (já citada acima) e L’Age D’Or de Mnouchkine, sendo que ambos voltaram-se para a visão de crianças e adolescentes para melhor estruturação das peças. 

Ariane Mnouchkine, quando estava montando seu espetáculo L’Age D’Or (que relata episódios publicados cronologicamente desde a epidemia da cólera em 1973 em Naples até a morte de 42 mineradores no Norte da França em 1974), foi a uma escola para conversar com adolescentes sobre problemas familiares e drogas. A peça, enfatizando temas humanos, traz à tona brigas, injustiças e fatalidades nas indústrias e no comércio, prisões, repressões governamentais, racismo, dentre outros. Logo, a diretora buscou as figuras reais da sociedade como trabalhadores, mineradores, pessoas que trabalham em hospitais e escolas para ajudar a enriquecer a dramaturgia da peça. 

Apesar de partir de um ponto comum, é importante ressaltar que Brook focou-se na pedagogia do ator dentro deste processo de criação e já Ariane centrou-se na construção de uma dramaturgia tendo como suporte o contexto social. Quanto aos processos criativos de Ariane Mnouchkine, reunimos alguns de seus aspectos encontrados na escassa bibliografia sobre a diretora a que tivemos acesso. 

Ariane ressalta que todas as atitudes que dizem respeito ao futuro da companhia são tomadas coletivamente, sendo que o trabalho dela é executar essas decisões. Existem algumas regras que devem ser seguidas como pontualidade, igualdade salarial, não fumar durante as apresentações, etc. Os figurinos são criados coletivamente e JeanClaude Barriera refaz o que foi criado nos ensaios. Partindo para as montagens, explicitaremos Ricardo II, de Shakespeare. Mnouchkine afirma a influência que o Théâtre du Soleil sofre de Artaud, no que diz respeito à ênfase corporal que ele destaca no teatro balinês (KIERNANDER, 2008, p.5). 

Baseada nesta perspectiva, Ariane busca um treinamento atlético e fortemente físico para a montagem de Ricardo II, todavia não foi possível identificar a pedagogia aplicada à formação de seus atores para esta montagem. Para concluir este tópico, citaremos a comparação entre a pedagogia teatral utilizada pelos dois encenadores feita por Pavis: "A preparação dos atores no Soleil não está centrada no aprendizado de técnicas indianas nem sobre a sua universalização, como em Brook. Ela parte da pesquisa de personagem, graças a uma impregnação das técnicas corporais de diferentes grupos étnicos e religiosos".

No que se refere ao trabalho de interculturalidade, pode-se afirmar que Brook se dedica intensamente à análise daquilo que dá vida própria a uma forma de cultura, não estudando a cultura em si mesma, mas o que está por trás dela, o que é essencial ao ser humano. Para isso, o ator tem de tentar despir-se de sua própria cultura e, sobretudo de seus estereótipos. Conhece-se o gosto de Brook pelos textos e símbolos que não são legíveis para uma cultura em particular, mas que são uma parte da cultura da humanidade e, portanto, acessível a qualquer um. 

Desse modo, na Conferência dos Pássaros, o pássaro é um símbolo acessível a todos, mesmo que ele permaneça ao mesmo tempo inexplicável. "O pássaro pertence aos símbolos que não estão ligados a qualquer cultura em particular. Por certo, cada cultura, provavelmente por essa mesma razão, tem um mito do pássaro profundamente enraizado nela. Porém, o pássaro, enquanto tal, é uma parte da cultura da humanidade e um símbolo da humanidade; é a coisa mais simples que tem efeito em qualquer criança, mas que igualmente é difícil de ser compreendido ou apreendido”. 

Não podemos tratar o interculturalismo sem relacioná-lo com alguns procedimentos pedagógicos utilizados na companhia. A ideia de sonorização das palavras (aprendidas com os textos de Shakespeare) foi aplicada no primeiro dia de trabalho no Centro Internacional de Pesquisas Teatrais (CIPT), com os atores de diversas nacionalidades, já que não havia uma língua em comum para que houvesse uma comunicação. Os atores fechavam os olhos e descobriam o espaço e seus amigos através do toque e emissão de sons que retratassem a sensação que sentiam naquele momento, até que se unissem em um só grupo. 

Um outro exercício realizado foi a troca de injúrias, na qual cada ator dizia palavrões na sua língua de origem, como aho (imbecil), baka (cretino), cunt (idiota), etc, visando a expressão através de uma pura matéria sonora (OIDA, 1999, p.63-64). "Trocávamos movimentos de dança de várias tradições, praticávamos palavras e sílabas das línguas de cada um, deixávamos que gritos simples se desenvolvessem gradualmente em padrões rítmicos, depois em canções de uma só nota, deixávamos nossas vozes vibrarem juntas harmoniosamente ou em dissonância deliberada, até que se tornassem verdadeiramente perturbadoras, usávamos varas de bambu para fazer geometrias silenciosas no ar. Convidávamos crianças surdas, e a seguir adultos surdos, para unirem-se a nós, improvisando juntos, como se com eles o motivo da comunicação viesse não da arte, mas da necessidade instantânea". (BROOK, 2000, p.232).

Já Mnouchkine busca meios teatrais, não naturalistas e não psicológicos, direcionando suas investigações para a composição de diferentes “formas” teatrais. Foi a partir dessa busca estética que a encenadora francesa começou a estudar mais profundamente o teatro asiático, já que para ela, esse é o teatro que mais preservou sua forma artística. Percebemos que a importância do interculturalismo em seu trabalho não se encontra na essência de cada cultura, ou seja, não há uma busca pelo entendimento do que é particular a cada tradição, e sim um interesse frenético por entender técnicas do corpo, voz, música, texto, figurino, cenografias que são singulares a cada cultura. 

Um aspecto importante para ser explicitado como exemplo de interculturalidade, é o fato de os membros do grupo escolherem os cardápios da cozinha do Soleil, e como existem pessoas de muitos países diferentes, a comida acaba refletindo o caráter internacional do grupo. Pode-se concluir, a partir dos elementos em comum encontrados nos trabalhos de Peter Brook e de Ariane Mnouchkine, que suas diferentes abordagens conduzem a poéticas singulares; a de Brook, pautada pela busca da “essência” e a de Mnouchkine, por uma “forma” que valorize a teatralidade. Logo, por meio deste Projeto, foi possível fazer um estudo comparado e aprofundado sobre estes dois grandes encenadores do teatro atual. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROOK, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. Fios do tempo: memórias. Rio de Janeiro: Bertrand. 2000. ______. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais 1946- 1987. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1995. ______. O Teatro e seu Espaço. Rio de Janeiro: Vozes. 1970 KIERNANDER, Adrian. Ariane Mnouchkine and the Théâtre du Soleil. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. O Mosaico – Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.2, p.1-10, jul./dez. 2009 10 NEUSCHÄFER, Anne. Jacques Copeau et Le Théâtre du Soleil. [Jacques Copeau e O Teatro do Sol], p. 225-231, In PAVIS, Patrice & THOMASSEAU, Jean-Marie (org.) Copeau l´Éveilleur [Copeau, aquele que desperta]. Tradução de José Ronaldo FALEIRO Lectoure: Bouffonneries, n.34, 1995. OIDA, Yoshi. O Ator invisível. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001. ______. Um Ator Errante. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo: 
08. WILLIAMS, David. The Théâtre du Soleil Sourcebook.Londres: Routledge, 1999.

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