segunda-feira, 10 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Tom na fazenda"

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Arrebatador e imperdível encontro



Lionel Fischer



"Após a morte de seu companheiro, o publicitário Tom vai à fazenda da família para o funeral. Ao chegar, ele descobre que a sogra nunca tinha ouvido falar dele e tampouco sabia que o filho era gay. Nesse ambiente rural austero, Tom é envolvido numa trama de mentiras criada pelo truculento irmão do falecido, estabelecendo com aquela família relações de complicada dependência. A fazenda, aos poucos, vira cenário de um jogo perigoso, onde quanto mais os personagens se aproximam, maior a sombra de suas contradições".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pelas assessoras de imprensa Bianca Senna e Paula Catunda, o trecho acima sintetiza o enredo de "Tom na fazenda" (Oi Futuro Flamengo), de autoria do super premiado autor canadense Michel Marc Bouchard, pela primeira vez encenado no Brasil. Rodrigo Portella responde pela direção do espetáculo, que tem elenco formado por Kelzy Ecard, Armando Babaioff, Camila Nhary e Gustavo Vaz.

Ao chegar à fazenda, em estado de total desamparo, Tom - como dito no parágrafo inicial - constata que a mãe de seu companheiro desconhecia sua existência e muito menos que seu filho era gay. Mas a esta imprevista surpresa se segue uma outra, bem mais contundente e que impulsiona a trama: Francis, irmão do falecido, sabia que ele era gay e, de forma truculenta, intima Tom a proferir, no funeral a realizar-se no dia seguinte, palavras elogiosas sobre seu irmão, apresentando-se apenas como um colega de trabalho. Perto do final, surge uma jovem que deveria se fazer passar por algo que efetivamente não é, o que enfatiza ainda mais um dos principais temas do texto: a mentira.

Como sabemos, a humanidade mente desde sempre. Mas há mentiras e mentiras, algumas bobas e inofensivas, que não geram maiores consequências, enquanto outras objetivam ocultar fatos que em nenhuma hipótese devem vir à tona. E por que não podem ser revelados? São muitas as variantes, evidentemente, mas uma delas diz respeito à necessidade de se preservar a moral vigente, o que implica no permanente exercício da hipocrisia. E aqueles que ousam revelar-se como realmente são, em geral estão fadados a amagar penosas consequências impostas pelo poder dominante.  

Não sei se, como apregoa o ditado popular, a mentira tem perna curta. Pode ser que sim, mas aqui o que importa é que a imposição de uma mentira acaba por funcionar de forma inversa, ou seja, vai aos poucos fazendo aflorar imprevistas e inusitadas verdades. Uma delas, talvez a principal, diz respeito ao homofóbico e truculento Francis, que, embora adorando o irmão e sabedor de sua homossexualidade, não admite que ninguém tome conhecimento dela, e muito menos sua mãe. 

No entanto, ao longo da trama, o espectador vai se dando conta de que nem tudo é efetivamente o que parece ser - e aqui me abstenho de revelar maiores detalhes, pois isso privaria o espectador de usufruir as surpreendentes reviravoltas desta peça absolutamente extraordinária.

Além da mentira, o autor explora de forma magnífica uma série de outros temas, como sentimentos dúbios e obscuros, a necessidade que temos de refrear grande parte de nossos impulsos, a obrigatoriedade de convivermos com os outros expondo apenas o que é ou parece ser conveniente, e assim por diante. 

Afora isto, cumpre destacar o recurso utilizado com o personagem Tom, que mescla os próprios pensamentos às palavras que profere diretamente às pessoas com quem está dialogando. E, finalmente, uma arrebatada admiração no tocante à capacidade de Bouchard de criar personagens maravilhosamente estruturados e diálogos de uma potência teatral digna de um autor de exceção.  

Com relação ao espetáculo, Rodrigo Portella impõe à cena uma dinâmica que, renunciando ao realismo, converte o palco em uma espécie de ringue, empoeirado e lamacento, belíssima metáfora da existência humana, já que parecemos condenados a chafurdar em meio aos abjetos detritos que nossa covardia impede de banir. Além disso, o encenador merece o crédito suplementar de haver extraído deslumbrantes atuações do elenco.

Na pele de Tom, Armando Babaioff (idealizador do projeto e responsável pela ótima tradução) exibe a melhor performance de sua carreira, conseguindo materializar todas as sutilezas de uma personalidade amorosa e delicada que, com o transcorrer da peça, vai aos poucos se deixando tomar pela loucura e virulência inerentes ao contexto desta ensandecida fazenda. Gustavo Vaz está irretocável vivendo o truculento Francis, cabendo salientar a sensibilidade e sutileza com que trabalha as mudanças que vão ocorrendo com seu personagem. 

Kelzy Ecard, como não me canso e jamais me cansarei de repetir, é uma atriz que se entrega de forma visceral às personagens que interpreta, e portanto em nada me surpreende que nos brinde com mais uma atuação de altíssimo nível. Em papel de menores oportunidades, ainda assim Camila Nhary convence plenamente como a jovem encarregada de protagonizar uma farsa, valorizando com igual competência tanto os momentos mais dramáticos quanto aqueles em que o humor predomina.  

Na equipe técnica, destaco com o mesmo e incontido entusiasmo as preciosas colaborações de Aurora dos Campos (cenografia), Tomás Ribas (iluminação), Bruno Perlatto (figurinos) Marcello H. (concepção sonora) e Lu Brites (preparação corporal).

TOM NA FAZENDA - Texto de Michel Marc Bouchard. Direção de Rodrigo Portella. Com Kelzy Ecard, Armando Babaioff, Camila Nhary e Gustavo Vaz. Oi Futuro Flamengo. Quinta a domingo, 20h.









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