quinta-feira, 6 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"O olho de vidro"

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Metafórica e encantadora nudez



Lionel Fischer



"A peça, na primeira pessoa, é um relato sobre infância, relação com avô, descoberta da sexualidade, relação de opressão com o pai e de amor incondicional pela mãe. As histórias do livro e da vida de Charles se misturam numa criação poética, ficcional e documental. Não existe um limite entre ficção e realidade. O ator começa seu depoimento acreditando que foi sempre pela metade e passou a vida buscando ser inteiro. É através dessa busca que vamos conhecer suas memórias de infância, suas relações familiares delicadas, suas descobertas de vida até chegar no que se tornou hoje".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o que nos é apresentado em "O olho de vidro", texto de Renata Mizrahi livremente inspirado no livro "O olho de vidro do meu avô", de Bartolomeu Campos de Queiroz, e em depoimentos de Charles Asevedo. Em cartaz no Centro Cultural Correios, o espetáculo tem direção assinada por Vera Holtz, Guilherme Leme e Flávia Pucci, estando a interpretação do monólogo a cargo de Charles Asevedo, também idealizador do projeto.

Dizem os que conhecem a vida - se é que possível conhecê-la - que certos encontros tornam-se definitivos. A ser verdadeira tal assertiva, não resta a menor dúvida de que o ator Charles Asevedo teve um belíssimo encontro com o escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queiros, inicialmente numa viagem que fez a Belo Horizonte, e mais adiante ao ler a já mencionada obra, que o encorajou a idealizar um projeto teatral em estreita ligação com sua vida.   

Como não li o livro, não tenho condições de avaliá-lo. Mas a julgar pela ótima adaptação feita por Renata Mizrahi, certamente se trata de uma obra de primeira grandeza, tanto pela sensibilidade com que aborda as em geral complexas relações familiares, quanto pela coragem de explicitar questões que normalmente optamos por manter ocultas. 

Em certo sentido, estamos diante de um homem que se despe em público. E sua metafórica nudez gera não apenas um profundo encantamento, mas também inegável identificação - mesmo que os fatos mencionados não sejam exatamente iguais aos que vivemos, é impossível não termos passado por situações no mínimo semelhantes às evocadas na cena.

Com relação ao espetáculo, este lança mão de pouquíssimos elementos: uma mesa, uma cadeira e, ao fundo, um quadro negro, onde o ator faz alguns desenhos com giz. Mas é o suficiente, nada mais se faz necessário para contar, com elegância e sensibilidade, uma história tão comovente e não raro impregnada de irresistível humor. Além disso, os diretores exibem o mérito suplementar de haver extraído excelente performance de Charles Asevedo.

Possuidor de ótima voz, forte presença cênica e grande carisma, Asevedo exibe ainda uma coragem um tanto rara nos tempos atuais, seja na vida como no teatro, e que consiste basicamente em permitir que suas emoções aflorem sem nenhum temor de que possam parecer inadequadas ou excessivas. E aqui me permito reproduzir um breve diálogo que tive com uma senhorinha ao final do espetáculo. 

Ela caminhava um pouco à minha frente, acompanhada por outra senhorinha. E a escutei dizendo: "O ator é ótimo, mas você não acha meio esquisito um homem desse tamanho (Asevedo tem 1,95) chorar tanto?". Como se a pergunta tivesse sido dirigida a mim, retruquei: "Desculpe, mas que tamanho a senhora acha que um homem deve ter para que possa chorar quando quiser?". E ela, erguendo de forma curiosa e um tanto intempestiva a sobrancelha esquerda: "Eu estava falando com a minha amiga. O senhor é quem?" E eu: "Alguém que chora muito menos do que deveria". E apressei o passo, temendo que a dita senhorinha me desse uma cacetada com seu desgracioso guarda-chuva...

Com relação à equipe técnica, a mesma sobriedade, elegância e sensibilidade se fazem presentes nas ótimas contribuições de Tomas Ribas (iluminação), Aurora dos Campos (cenografia) e Marcelo H (trilha sonora).

O OLHO DE VIDRO - Dramaturgia de Renata Mizrahi. Direção de Vera Holtz, Guilherme Leme e Flávia Pucci. Com Charles Asevedo. Centro Cultural Correios. Quinta a domingo, 19h.









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