sábado, 8 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Gisberta"

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Emocionado e oportuno tributo

Lionel Fischer


Eram sete os filhos de uma família paulistana quando surgiu o oitavo, nomeado Gisberto Salce Junior. Mas ainda na primeira infância, o menino tomou consciência de que nascera no corpo errado. Sentia-se uma menina e agia como uma menina. Já adolescente, quem desconhecia sua história não hesitava em considerá-la uma mulher. 

Passou a frequentar noite, fez shows em bares e boates e vivia acompanhada por duas amigas, a exemplo dela transexuais. Mas depois que ambas foram assassinadas, mudou-se para Paris e mais adiante radicou-se em Portugal, na cidade do Porto, onde deu prosseguimento à sua carreira por 25 anos. 

No entanto, acabou se envolvendo com drogas, contraiu Aids, e já completamente destituída de recursos financeiros, foi morar em um prédio abandonado. Descoberta por um grupo de psicopatas com idades variando de 12 a 16 anos, foi impiedosamente torturada durante muitos dias, e finalmente atirada, ainda viva, em um poço. Tinha apenas 44 anos a mulher que atravessara um oceano em busca da felicidade e que, por umas dessas trágicas ironias do destino, terminaria por morrer afogada.

Eis, em resumo, a trajetória desta mulher de admirável coragem e inabalável determinação, brutalmente assassinada em fevereiro de 2006. E o presente espetáculo presta comovente tributo a ela. Em cartaz no Teatro III do CCBB, "Gisberta" tem dramaturgia assinada por Rafael Souza-Ribeiro, estando a direção a cargo de Renato Carrera. Luis Lobianco protagoniza o monólogo, no qual interpreta vários personagens e também atua como narrador. O ator divide a cena com os músicos Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarineta e voz).

Em sua primeira metade, o texto nos dá a conhecer a infância e adolescência da personagem, seja quando Lobianco encarna alguns familiares de Gisberta como nas passagens em que conversa diretamente com a plateia. Até aqui, tudo transcorre de forma deliciosa, sendo excelente o texto do autor. 

No entanto, a partir do momento em que vai se tornando evidente que uma tragédia se avizinha, o autor interrompe a tensão já estabelecida e retorna ao passado da personagem, priorizando a leveza, a ternura e o humor já competentemente explorados. E isso acontece não uma, mas várias vezes. Então, cabe a pergunta: será que, ao lançar mão deste recurso, Rafael Souza-Ribeiro teve algum receio de que a narrativa, a partir de um certo ponto, se tornasse pesada demais, sendo conveniente suavizá-la? Se foi isto que aconteceu, cabe nova pergunta: por que suavizar uma história que, como já dito, a partir de um certo ponto se encaminha para um trágico desfecho?

Outra questão diz respeito ao final. Há uma passagem em que Lobianco encarna um juiz e este explicita os fatos ocorridos e profere a absurda e indulgente sentença. Trata-se de um momento de fortíssima potência teatral, que mantém a plateia no mais absoluto e perplexo silêncio. Pois bem: por que o espetáculo não termina aqui? Qual a necessidade de, logo em seguida, Lobianco cantar, sorridente e sedutor, uma bela canção, envolto por apaziguante luz rosa? Será que o objetivo foi o de passar a subjacente mensagem de que, apesar desta ou de todas as tragédias, a vida continua e o melhor a fazer é tentar usufrui-la da forma mais leve possível? Enfim...

Com relação ao espetáculo, Renato Carrera impõe uma dinâmica cênica em total sintonia com o material dramatúrgico, trabalhando com a mesma competência tanto as passagens mais engraçadas quanto aquelas em que o drama prevalece. E também merece o crédito suplementar de haver extraído segura e sensível atuação de Luis Lobianco, que mantém a plateia magnetizada ao longo de toda a montagem. 

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Lúcio Zandonati (trilha sonora e músicas compostas), Renato Machado (iluminação), Mina Quental (cenografia), Gilda Midani (figurino), Simone Mazzer (preparação vocal) e Marcia Rubin (direção de movimento). Cabe também destacar a excelência dos músicos Lúcio Zandonadi, Danielly Sousa e Rrafael Bezerra.

GISBERTA - Texto de Rafael Souza-Ribeiro. Direção de Renato Carrera. Com Luis Lobianco. Teatro III do CCBB. Quinta a domingo, 19h30.      
















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