terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

UMA RELEITURA ANTROPOLÓGICA ESTRUTURAL DA
HISTÓRIA DA LOUCURA DE MICHEL FOUCAULT

ADRIANO MARTINS SOLER1

RESUMO:

O presente artigo tem como intuito traçar uma análise estrutural da História da Loucura de Michel Foucault, buscando apresentar o diálogo entre a concepção de loucura com o sujeito dentro do seu pensamento. Procuramos abordar todo o processo histórico que o
autor nos mostra da sociedade, que tira o caráter de uma certa epistemologia que a loucura poderia proporcionar para torná-la segregação, primeiro social depois patológica. Tal releitura tem por base uma interpretação antropológica em uma visão ontológica.
Palavras chave: Foucault – antropologia – história da loucura

1. Introdução panorâmica da obra

A obra em questão foi publicada com o título Histoire de la folie à l’Âge Classique no ano  de 1961 em Paris e traz em sua essência a contraposição ao termo “loucura”, bem como do seu 1 Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Metodologia de Ensino de Filosofia e Sociologia. Graduado em Filosofia, Direito, Pedagogia e Teologia. Atualmente é Professor de Filosofia na Faculdade de Educação, Ciências e Letras Don Domênico – Guarujá/SP e na Rede Estadual de Ensino
do Estado de São Paulo.

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tratamento por meio de internação a partir da maneira como a História apresenta as diversas concepções sobre o assunto.
O autor inicia seu texto abordando o esvaziamento dos leprosários no final da Idade Média na Europa, devido à crescente queda do número de pessoas infectadas pela doença. A despeito da queda da doença, a imagem do leproso na sociedade permanece presente, sendo substituída primeiramente pelos portadores de doenças venéreas e, posteriormente, pela visão Renascentista2. A loucura na Renascença era apresentada como uma linha tênue entre o homem e a verdade que ele tem de si.

A criticidade passa a dominar no século XVI e Foucault (1961) interpreta tal acontecimento como a valorização da razão. Evidentemente, ao destacar a razão, a loucura se torna sua antagonista e seu fundamento passa a ser visto como algo natural por parte da sociedade. Em meados do século XVII, o autor observa alguns casos de prisão relacionados à loucura. São analisados os mecanismos para que houvesse a compreensão do sentido real do internamento, apresentando, assim, algo além de discurso histórico ou filosófico visto anteriormente. Ainda no século XVII, cabe mencionar que o internamento estava além de uma questão relacionada à saúde, mas sim, a uma visão econômica e jurídica, visto que se tratava de um período em que os Estados estavam tornando-se cada vez mais fortes e necessitavam de um crescimento econômico. 

Nesse sentido, os ociosos e desempregados que pudessem causar alguma desordem passaram a ser detidos e internados.  O número de internações aumentava em tempos de crise para evitar revoltas. É nesse ponto que aqueles que tinham problemas mentais se uniam a outra população (ociosa), dando outro sentido ao termo louco. No mesmo local, poderiam estar internados, loucos, enfermos, libertinos, criminosos, ociosos, sem que houvessem quaisquer diferenças entre eles. Somente a partir do século XVIII, o conceito de loucura passa a ser associado à concepção de doença. Desta forma, a loucura é, finalmente, relacionada à medicina, tornando-se precursora de uma divisão que ocorreria no século seguinte entre doenças físicas e psicológicas.

2 Foucault passa a analisar tal visão a partir da Nau dos Loucos que faz parte de uma composição literária de cunho realístico, pois existiam barcos, nos rios da Renânia e nos canais flamengos que levavam os loucos que eram expulsos das cidades.

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Observemos que, ao passo que no século XVII as pessoas viam a loucura como um desvario, no século XIX ela passa a ser vista como uma questão física, biológica e psicológica. Essa nova maneira de ver, relaciona-se ao surgimento da indústria, pois anteriormente, aquele que tivesse capacidade física e mental para o trabalho e permanecesse ocioso era nocivo ao Estado. Desta forma, para endossar a mão de obra barata necessária ao crescimento das indústrias e assim da riqueza, surge a mudança do conceito de loucura, uma vez que a pobreza passa a ser necessária ao capitalismo industrial.

Com essa reestruturação política, social e interna das casas de internação, surgem os asilos, a psiquiatria e a psicologia que passam a dar forças e tornar natural a união entre loucura e a internação no século XIX. É a partir das teorias médicas e psicológicas que surge o louco do mundo moderno, que tem as características do homem comum, mas que é dono de sua própria verdade, ou seja, uma verdade que se encontra, nele, oculta. A medicina passa a auxiliar o homem louco na busca por essa verdade, sendo, para isso, necessário levá-lo ao confinamento.
Foucault (1961) apresenta sua obra mais como uma história do surgimento da psicologia que como uma história da loucura. Por fim, conclui seu texto contestando a função da psicologia para a sociedade.

2. O sujeito

O sujeito possui três fases na visão de Foucault (1961). Essas fases são contínuas e simultâneas, isto é, complementares.

 I Arqueológica (dec. 60): Análises puramente arqueológicas que tratam das práticas médicas e constituição do sujeito como objeto de estudo. Ex: Constituição da psiquiatria na fase contemporânea. Obras: História da Loucura.

II Genealógicas (dec. 70) Em 1972, Foucault dá sua primeira aula e analisa como o saber e as práticas se constituíram determinando os tipos de sujeito. O filósofo analisa a relação da constituição entre saberes e poderes, ou seja, o homem sobre o homem através de um estudo formado por meio de práticas confessionais (psicanálise) e normativas relacionadas à tecnologia do poder que visam a normalidade. Ex: Vigiar e Punir.

III Ética: Questão ética e estética, ex: “A história da sexualidade vol. II”

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Na década de 80, Foucault, influenciado por uma geração rica da década de 20, compartilha a visão do sujeito greco-romano e apresenta a possibilidade da resistência à formação moderna. Ex: Derrida, Lévi-Strauss, Lacan, etc.

 3. Sobre a História da Loucura

As três fases mencionadas no item anterior se complementam e constituem o sujeito como partes de si, fazendo a história de alguns saberes que formam o homem a partir dessas ciências humanas. Há, então, uma crítica ao humanismo (humanismo aqui não é renascentista é um humanismo no sentido de o homem ser o centro  das ciências humanas) que é cúmplice ou é até aquele que causa a atual condição humana. Chega-se a isso por meio de análises   históricas, uma vez que o pensamento crítico de Foucault (1961) é a investigação da constituição humana que considera esses saberes perigosos.

Posteriormente, o teórico questiona as evidências dos saberes a partir de uma análise histórica, com o objetivo de realizar na modernidade (período após Kant até os dias atuais) uma investigação antropológica para saber como esses saberes se constituíram através de um recuo no tempo. Foucault (1961) acredita que toda constituição dos saberes poderia ser diferente, pois nada é necessário e sempre temos uma escolha. Os saberes atuais podem desaparecer e dar lugar a outros, é na contingência dos saberes que ele pode apontar novos caminhos e ações, novas formas de pensar e de viver.

Encontramos dentro do pensamento de Foucault (1961) uma ideia sobre a história da psiquiatria na modernidade composta por análises históricas de como e por que a psiquiatria se constituiu como um saber do estudo do louco. Essa ciência não se limita ao discurso da loucura, mas sim, investiga o tratamento, a inserção política, econômica e social do louco, considerado aqui como doente mental.

Voltando à História da Loucura, percebemos que o referido autor é centrado na época clássica e estabelece três épocas históricas:

a) Renascimento
b) Clássica (pós-renascimento e pré-Kant)

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c) Modernidade (Kant para frente): o livro é focado na modernidade que estuda a loucura como a psiquiatria e algumas psicologias. Na modernidade a loucura diz respeito à psiquiatria.
A argumentação apresenta não somente a psiquiatria, mas também o que vem antes e depois. A psiquiatria é seu principal foco e faz parte da ciência recente, é a intervenção médica na loucura como doença mental. Cabe ressaltar que, foi somente no final do século XVIII que teve início a visão da loucura como patologia juntamente com o nascimento do humanismo, fazendo disso um processo histórico.

Esse processo não é a descoberta da essência da loucura e sim uma progressiva dominação e integração da loucura na ordem da razão. O livro permite os objetivos efetivos, isso é um caminho que a psiquiatria traça para tornar um louco um doente mental, mostrando assim como a psiquiatria cura o louco conforme sua verdade.
Através da história, Foucault (1961) mostra como a loucura foi dominada pela razão, sendo a história da loucura uma história sobre os saberes da loucura. O saber psiquiátrico não foi necessariamente sistemático ao longo da história, pois, há saberes práticos e vinculados a convenções que dizem respeito à loucura.
Foucault (1961) inicia sua análise epistemológica da loucura com vistas à formação do sujeito em si. A experiência moderna da loucura é antropológica, sendo ela objetivada por práticas do conhecimento científico (no sentido da loucura possuir uma verdade).

Com o fim da lepra na Idade Média, os leprosários (local onde o sujeito era isolado) ficam vazios. Na renascença a loucura começa a circular – no sentido dos loucos serem embarcados para outros lugares e viajarem pelo mundo. O louco tem uma espécie de natureza errante e embarcar um louco é estabelecer um limite (fronteiras), permitindo, assim, que o louco ficasse aberto a outros mundos. É uma experiência trágica e seria a figura cósmica, porque a loucura do renascimento é realista, afinal o louco revela algo que no mundo as pessoas não observam.

Ainda no período renascentista, tais conceitos passam a ser esquecidos, abrindo portas ao período clássico e moderno à consciência trágica (pictóricas), o que proporciona uma visão crítica (discurso). Neste momento, a loucura já é dada no mundo e se inicia com a razão. A loucura será a experiência limite.

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A relação loucura e razão será radicalizada quando a loucura for caracterizada como a ausência de razão. Em Descartes (1641) - na primeira meditação da dúvida que afeta o pensamento -, Foucault (1961) descobrirá que a loucura é excluída do pensamento, pois pensar é a recusa da loucura tornando, dessa forma, uma espécie de não ser. Essa negativa é a experiência clássica da loucura, os loucos serão, então, enclausurados. 

A teoria médica clássica não dá conta da loucura, justamente, porque ela é o não ser (nada). A experiência social da prisão é uma questão ética e um discurso médico que se concretiza em gestos de segregação para eliminar a desordem social e dominar o mundo sem razão. Os lugares onde os presos ficavam segregados não eram institutos médicos, mas sim, sociais e administrativos, que atendiam a valores assistencialistas cristãos e do regramento econômico para burgueses (desempregados também eram encaminhados). Era um local de exclusão das pessoas que fugiam da moral vigente, transgressores do trabalho e da moral burguesa: miseráveis, desempregados e ociosos que eram internados na época clássica. 

Havia, também, transgressores sexuais, religiosos e especulativos (libertinos). A imaginação fazia parte da loucura e isso dificultava a ordem teórica que é excluída da ordem social e passa a ser nada, culminando na percepção ética e não médica do assunto. O internamento não era psiquiátrico e a visita médica acontecia apenas por uma questão de conservação pública.

Por meio da experiência antropológica, na qual o sujeito é objetivado e a loucura é doença mental, percebemos que a experiência da loucura é uma alucinação das verdades do homem.
O século XVIII surge com o objetivo de evitar epidemias, ao mesmo tempo em que há o medo da loucura como perda da natureza através das mediações naturais. Isso implica na reclusão de estabelecimentos exclusivos. A Revolução Francesa começa a ser mais criteriosa na exclusão, mas o louco se mantém preso.
O internato passa a ser o lugar no qual se revela a loucura. É esse o espaço que permite a medicalização da loucura e passa a ser encerrada nesse conceito de doença mental e a loucura encontra sua verdade através do olhar médico.

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O conhecimento do homem moderno pressupõe a ideia de louco. O normal se coloca através do louco. É a experiência moderna de loucura que constitui no homem a psiquiatria e psicologia.
Conclui-se que há uma dependência entre experiências modernas da loucura que é a condição para o surgimento das ciências psicológicas e psiquiátricas. Dessa forma se questiona a positividade dessas ciências.

Para Foucault (1961), o contemporâneo ainda não chegou, pois, ainda não houve o rompimento com a modernidade. Para o teórico, a modernidade só chegará quando houver um pensamento que retire o homem da posição de objeto.

4. Considerações Finais

A análise do pensamento foucaultiano na obra História da Loucura nos remete à percepção de uma divisão sistemática e precisa do pensamento histórico acerca da loucura, desde sua visão como desatino até ser identificada como patologia. O autor “passeia” pela história apontando como a loucura é vista a partir do perfil da sociedade de cada época. 

Temos, no entanto, certa reserva com relação a sua interpretação da visão existencialista no pensamento cartesiano que o levaria à conclusão do ser como nada, pois, o louco não pensaria e por não pensar não existiria. Ora, como o próprio autor percebe mais a frente, o louco tem uma verdade que está oculta de si mesmo, por isso a mediação médica. Poderíamos concordar caso houvesse uma comprovação de que o louco não se percebe como ser. Nesse sentido teríamos uma animalização do louco, como aquele que não teria consciência de sua própria existência.

Outro ponto que merece nossa consideração é a de que a loucura é uma alucinação das verdades do homem. Entendemos alucinar como um desvio da verdade. Assim, a loucura é um rompimento com o normal, rompimento com o que é considerado certo, padronizando assim, algo como correto, como certo, pois, se temos uma quebra da verdade, significa que há uma verdade.
Concluímos, portanto, que ao homem é necessária uma busca pela emancipação de si mesmo. É preciso que o homem abandone a normatividade que busca estabelecer certo padrão de
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normalidade que, se não for seguida, deverá ser coibida. Perdemos algo na Renascença que via o louco como um detentor de um saber diferente e não conseguimos resgatar, marginalizando a loucura que rompe com o que chamamos de normal. O que rompe com o normal é anormal, necessitando assim, ser reconduzido à normalidade. Trata-se de um pensamento cíclico que segrega e, além de “coisificar” o homem, não considera suas variações.

5. Referências
BRANCO, G.C. in Os Filósofos. org. Pecoraro. R. Ed. Vozes, 2009, Rio de Janeiro.
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. Ed. Martins Fontes, 2005. São Paulo.
DREYFUS, H.L. RABINOW, P. Michel Foucault, Uma Trajetória Filosófica. Para além do Estruturalismo e da Hermenêutica. Forense Universitária. 1995, Rio de Janeiro.
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. Ed. Perspectiva, 2010, São Paulo.
LOBO, R. H. História da Loucura de Michel Foucault como uma “História do Outro” Revista Veritas. Nº 2. Abril/junho 2008.
VIEIRA, P.P. Reflexões sobre a História da Loucura de Michel Foucault. Revista Aulas. Nº 3. Dezembro 2006/março 2007.
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