sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Clarice Lispector e eu: o mundo não é chato"

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Delicioso encontro com Clarice Elmôr



Lionel Fischer


"Sempre que um intérprete dá vida a uma pessoa conhecida, a primeira expectativa é a de que se pareça com o modelo. No presente caso, Rita Elmôr lembra muito Clarice jovem. Mas esse detalhe é o que menos importa, pois de nada serviria se a atriz, de apenas 24 anos, não conseguisse personificar as principais características da escritora. E ela o faz de forma irretocável, com uma serenidade que, ao que parece, Clarice sempre exibia, mesmo quando acossada por graves inquietações. Cabe também ressaltar o esmerado universo gestual utilizado, invariavelmente elegante e expressivo. Sem dúvida, Rita Elmôr é uma revelação, cuja trajetória merece ser com toda a atenção". 

Antes que se instale algum engano, cumpre ressaltar que o trecho acima consta da crítica do espetáculo "Que mistérios tem Clarice", feita por mim e publicada no jornal Tribuna da Imprensa em 20/08/1998. A montagem, salvo engano de minha parte, marcava a auspiciosa estreia profissional de Rita Elmôr. E é de fato uma delícia revê-la novamente imersa no mundo de Clarice Lispector, e mais ainda porque, agora, o universo da atriz se mescla ao da escritora. Através de 36 recortes de textos de ambas, "Clarice Lispector e eu - o mundo não é chato" oferece ao público uma imperdível oportunidade de constatar a curiosa simbiose entre um mito da literatura e uma atriz de tão refinado talento, que aqui também responde pela dramaturgia. Rubens Camelo assina a direção do espetáculo, em cartaz no Teatro Poeirinha. 

Conheço, como não poderia deixar de conhecer, algumas particularidades da personalidade de Clarice Lispector. Quanto às de Rita Elmôr, as desconheço todas, pois ao longo de todos esses anos nosso contato foi sempre breve e esporádico. Ainda assim, o texto deixa implícito que ambas têm em comum o fino humor, a timidez e o "desencaixe" na relações. Aliás, cumpre ressaltar que, dentre as particularidades mencionadas, o "desencaixe" é a que mais me seduz, posto que me parece literalmente impossível que alguém "encaixado" produza algo que valha a pena no mundo da arte.

Leve e divertido, sensível e comovente, o material dramatúrgico lida o tempo todo com situações cotidianas, que todos nós vivemos (em maior ou menor grau) e que por isso contribuem para nos aproximar da montagem, até porque a atriz nos trata como amigos, como convidados a partilhar com ela, ou melhor, com elas, muitas das inquietações inerentes ao ato de viver - mas sem nenhuma angústia, que fique bem claro.

Com relação ao espetáculo, Rubens Camelo impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto. Tudo transcorre de forma leve, delicada, bem humorada e elegante. E mesmo sendo o tom geral o de uma conversa com a plateia, nem por isso a montagem carece de teatralidade - são muitas as passagens em que as marcações exibem grande expressividade, além de irretocável precisão rítmica.

No tocante a Rita Elmôr, julgo primoroso seu trabalho dramatúrgico, já que os textos de ambas as artistas se mesclam de forma surpreendente e irretocável. E no que se refere à sua performance, acho que basta afirmar que considero Rita Elmôr uma das melhores atrizes de sua geração, tanto no que diz respeito a elementos puramente técnicos (voz, expressividade corporal etc.) como a algo que os transcende: a inteligência cênica, só passível de ser detectada em intérpretes que deixam marcas inesquecíveis tanto nos palcos como em nossos corações.

Na equipe técnica, Rita Elmôr assina ótima trilha sonora, a mesma excelência presente nas contribuições de Paulo Denizot (cenário, luz e vídeo mapping), Mel Akerman (figurino), Daniel Mattar (fotos), Ricardo Chereen (direção de vídeos e edição) e Caio Garcia Grandi (edição e finalização).

CLARICE E EU - O MUNDO NÃO É CHATO - Textos de Clarice Lispector e Rita Elmôr. Direção de Rubens Camelo. Com Rita Elmôr. Teatro Poeirinha. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.






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