quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Teatro/CRÍTICA

"O beijo no asfalto - O Musical"

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Surpreendente e oportuna montagem



Lionel Fischer



Um dos melhores e mais encenados textos de Nelson Rodrigues, "O beijo no asfalto" parte de um fato um tanto inusitado. Casado - e bem casado - com Selminha, Arandir está com o sogro Aprígio na Praça da Bandeira quando um lotação (na época, 1960, os ônibus eram assim chamados) atropela um homem. Arandir corre para socorrê-lo e o homem, já agonizante, lhe pede um beijo, ao que parece na boca. Arandir atende esse desejo. Só que o fato é testemunhado por Amado Ribeiro, repórter sem nenhum caráter que escreve para um jornal sensacionalista. A partir daí, e graças à perversa manipulação do ocorrido pelo repórter, a vida de Arandir e de toda a sua família entre em total colapso.

Eis, em resumo, o enredo da presente obra, aqui convertida em musical. Contando com direção de João Fonseca, "O beijo no asfalto - O Musical" está em cartaz no Teatro das Artes, após cumprir temporada no Teatro Sesc Ginástico. Idealizador do projeto e responsável pelas canções originais, às quais se mesclam outras muito conhecidas, Claudio Lins integra o elenco ao lado de Laila Garin, Gracindo Jr., Yasmin Gomlevsky, Thelmo Fernandes, Claudio Tovar, Jorge Maya, Janaína Azevedo, Gabriel Stauffer, Pablo Áscoli, Juliane Bodini, Ricardo Souzedo e Juliana Marins.

Muitos e relevantes são os temas aqui tratados por Nelson Rodrigues. Vamos a dois deles, começando pela ética jornalística. Do que vive Amado Ribeiro? De notícias. Mas como escreve em um jornal sensacionalista, notícias comuns não satisfazem o voraz apetite dos seus leitores, não vendem jornal, como ele próprio afirma. Então, ele não hesita em converter um ato de aparente misericórdia em algo capaz de destruir a vida de Arandir - e aqui cumpre ressaltar que, tanto naquela época como hoje, dois homens se beijando em público (mesmo que um esteja agonizando) constitui gravíssima ofensa à moral e aos bons costumes. 

Outra questão interessante diz respeito à hipocrisia. Por mais abjetos que sejam nossos impulsos, por mais espúrios que sejam nossos desejos, nada disso parece ter a menor importância se conseguimos simular que detemos o monopólio de todas as virtudes. Se conseguimos sugerir que somos como a límpida superfície de um lago, pouco importa que em sua profundeza se acumulem vastas camadas de lodo. O essencial é que este lodo jamais venha à tona. E caso venha, que se dê em âmbito privado, sem nenhuma possibilidade de se tornar público. Podemos estar com lama até o pescoço, mas se conseguimos manter limpas as unhas nas pontas dos dedos...são os dedos que todos enxergam. A alma, jamais - ou quase nunca.  

Obra impecável do ponto de vista dramatúrgico, exibindo personagens maravilhosamente construídos, diálogos brilhantes e uma ação que prende a atenção do espectador desde o início, "O beijo no asfalto " não perdeu nenhuma de suas muitas qualidades ao ser transformada em musical. São excelentes as composições de Claudio Lins e muito apropriadas as inserções de outras tantas canções muito conhecidas.

Com relação ao espetáculo, em sua maior parte a direção de João Fonseca exibe alguns dos muitos predicados do ótimo encenador - marcas diversificadas e criativas, precisão dos tempos rítmicos e grande comunicação com a plateia. Minha única ressalva diz respeito não ao humor com que são trabalhadas muitas passagens - afinal, estamos diante de uma tragicomédia -, mas a uma deslocada visão humorística de algumas cenas inegavelmente dramáticas. Vamos apenas a dois exemplos.    

Selminha é levada à força pelo policial Aruba para uma casa obscura. Ali é interrogada com virulência por Amado Ribeiro e pelo delegado Cunha, que dela pretendem obter a confirmação de algo que lhes interessa. Pois bem: lá pelas tantas, o excelente ator Jorge Maya, que interpreta Aruba, reaparece do nada vestido como uma espécie de entidade em delírio carnavalesco. A plateia ri, naturalmente. Mas tal riso esvazia por completo a dramaticidade desta passagem, que culmina com a humilhação imposta por Amado e Cunha a Selminha, obrigada a ficar nua e ameaçada, como mais tarde fica-se sabendo, de ter os seios queimados com cigarro. 

Outro momento de discutível humor - aí não sei se proposital ou por ter sido mal concebido - ocorre durante uma tensa discussão entre Arandir e Selminha, já perto do final. Tentando demonstrar a pureza de sua atitude, Arandir evoca a cena do beijo; nesse momento entra Pablo Áscoli, que já interpretara o Morto, e se atira aos pés de Arandir. Mas a maneira como o ator entra e em seguida se joga ao solo (evidentemente que aprovadas pela direção) provocam intenso riso na plateia, esvaziando por completo a dramaticidade da cena. 

Com relação ao elenco, Claudio Lins trabalha muito bem as principais características de Arandir, que são sua pureza e integridade. Laila Garin vive de forma intensa a apaixonada e frágil Selminha. Na pele de Aprígio, Gracindo Jr. exibe desempenho sóbrio e extremamente digno. Yasmin Gomlevsky torna verossímel a intensa paixão de Dália pelo cunhado Arandir. Amado Ribeiro tem a abjeção de seu caráter extremamente valorizada por Thelmo Fernandes. Na pele do delegado Cunha, Claudio Tovar exibe bons momentos, mas acredito que o personagem, de uma maneira geral, devesse expressar mais virulência do que humor. 

Jorge Maya, por razões que desconheço, impõe comicidade a praticamente todas as suas intervenções - algumas se justificam, mas não todas. Janaína Azevedo está irrepreensível na pele da alcoviteira vizinha D. Matilde. Gabriel Stauffer (Werneck), Pablo Áscoli (o Morto e outras participações bem realizadas), Juliane Bodini (Viúva), Ricardo Souzedo (Pimentel e Comissário Barros) e Juliana Marins (D. Judith e Vizinha) colaboram de forma eficiente para o bom êxito do espetáculo.

No que diz respeito ao canto, todos se saem muito bem neste quesito, mas torna-se impossível não conferir especial destaque a Laila Garin (impecável tanto nas canções mais apaixonadas quanto naquelas em que a dramaticidade predomina), Janaína Azevedo (brilhante ao interpretar a canção da vizinha fofoqueira) e, creio que para surpresa geral da nação, Gracindo Jr (o ator exibe não apenas bela voz, mas interpretações em total sintonia com as canções escolhidas para o personagem).

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta surpreendente e oportuna empreitada teatral - Claudio Lins (trilha original), Délia Fischer (direção musical), Claudio Tovar (figurinos), Nello Marrese (cenografia), Luiz Paulo Nenén (iluminação), Sueli Guerra (direção de movimento), Carlos Esteves (engenheiro de som), Heberth Souza (programações eletrônicas e orquestrações), Augusto Ordine (arranjos vocais), Janaína Azevedo (preparação vocal) e Marcia Elias (visagismo). 

Com relação aos excelentes músicos, cito a todos, pois não sei particularizar os que tocaram na sessão de ontem - Evelyne Garcia/Heberth Souza (piano e regência), Matias Correa/Pedro Aune (baixo), Claudio Lima (bateria e percussão), Wanderson Cunha/Bebeto Germano (trombone) e Alex Freitas/Raphael Nocchi (sax, clarinete e flauta).

O BEIJO NO ASFALTO - O MUSICAL - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de João Fonseca. Com Claudio Lins, Layla Garin e grande elenco. Teatro das Artes. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.



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