terça-feira, 15 de setembro de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt"



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Ótimo texto em bela versão



Lionel Fischer



Pelo menos três homens marcaram profundamente a vida da pensadora alemã de origem judaica Hanna Arendt (1906-1975): o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que foi seu professor e seu amante; Heinrich Blucher (1899-1970), com quem esteve casada por 30 anos; e Adolf Eichmann (1906-1962), carrasco nazista executado em Israel. E os três ocupam significativo espaço em "Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt", em cartaz no Teatro I do CCBB. Marcia Zanelatto responde pela dramaturgia e Isaac Bernat pela direção, estando o elenco formado por Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robin.

Martin Heidegger foi certamente um dos principais mentores de Hanna, além de, como dito no texto, possuir mãos capazes de realizar prodígios - lamentavelmente tais prodígios não são explicitados. Heinrich Blucher foi o grande companheiro e a correspondência entre ambos é deliciosa. Finalmente, Adolf Eichmann. Hanna Arendt acompanhou seu julgamento para o jornal New Yorker e provavelmente imaginou que se depararia com uma besta assassina. No entanto, concluiu que o homem em questão era muito menos significativo do que o sistema que o gerara, e o que estaria em causa era a banalidade do mal - foi o bastante para ser execrada pela comunidade judaica, que reagiu como se ela estivesse absolvendo o réu por sua monstruosidade.

Trata-se, sem dúvida, de uma questão crucial: o indivíduo é sempre responsável por seus atos? Ou seria lícito admitir que, em determinadas circunstâncias - históricas, sociais, econômicas etc. - ele poderia fazer escolhas que jamais faria desde que inexistissem essas tais circunstâncias? Recentemente, como todos sabemos, um trem no Rio de Janeiro passou lentamente por cima do cadáver de um homem. E isso nos horrorizou. Mas a quem deveríamos dirigir nossa indignação? Em princípio, ao dito maquinista, que obviamente poderia ter freado. 

No entanto, ele alegou apenas ter cumprido uma determinação superior, exatamente como fez Eichmann!?. Ou seja: no primeiro caso, a tal determinação superior preconiza (ao que tudo indica) que o fluxo de uma composição ferroviária não deve ser interrompido, exista ou não um cadáver sobre a linha férrea; no segundo, considera inadiável e imprescindível a eliminação de todos aqueles que supostamente possam constituir algum entrave à implantação de um regime totalitário. 

Então, cabe a pergunta: existiria alguma diferença essencial entre a atitude tomada pelo maquinista e a adotada pelo carrasco nazista, se conseguimos esquecer por um momento que o primeiro apenas passou por cima de um cadáver e o segundo gerou milhares? Em minha opinião, nenhuma, embora entenda perfeitamente o que Hanna Arendt sustenta - ainda que ela, nunca é demais recordar, e como é dito na peça, jamais tenha defendido a absolvição de Eichmann e proposto a condenação do sistema que o gerou, o que, convenhamos, haveria de ser um tanto problemático...

Mas voltemos à peça e ao espetáculo, com um pedido explícito de desculpas pela um tanto longa (e não sei se pertinente) digressão. Marcia Zanelatto escreveu um ótimo texto, sem nenhuma preocupação cronológica, e que faculta ao espectador uma visão abrangente da vida e do pensamento da importantíssima pensadora, materializando tanto o seu humor quanto a sua veemente indignação diante de alguns fatos. E tal material recebeu excelente versão cênica de Isaac Bernat. Impondo à montagem uma dinâmica precisa, limpa e vigorosa, e muitas vezes impregnada de grande lirismo, o encenador consegue valorizar ao máximo o ótimo texto de Zanelatto.

Quanto ao elenco, Kelzy Ecard (Hanna Arendt) exibe uma vez mais seu enorme talento. Trata-se de uma atriz que, dentre seus muitos atributos, possui o de jamais desperdiçar uma frase, o alcance de um gesto ou a expressividade de uma pausa. Tudo no trabalho desta atriz é bem acabado e consequente, o que a torna no palco uma presença sempre fascinante e poderosa. Carolina Ferman faz muito bem suas duas personagens, Mary McCarthy - escritora americana muito amiga de Hanna - e uma jovem meio hiponga que se encontra com a filósofa em um trem. Nesta última cena, por sinal, Ferman demonstra porque é uma das melhores atrizes de sua geração, conseguindo passar de uma composição propositadamente desleixada para uma outra, tensa e indignada, quando o diálogo assim o exige. 

Vivendo vários personagens, inclusive Heidegger e Blucher, Michel Robim convence em todos eles, cabendo destacar as passagens em que, na pele de um homem indecifrável, executa belíssimas coreografias. Na última, por sinal, e que encerra o espetáculo, esse homem parece querer retirar de si o melhor que possui e em seguida faz essa oferta ao público; no lado oposto do palco, Kelzy e Carolina estão de mãos dadas, após suas personagens se entenderem, e contemplam a plateia com vigorosa serenidade. Uma cena belíssima.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos neta mais do que oportuna empreitada teatral - Doris Rolemberg (cenografia), Aurélio de Simoni (iluminação), Desirée Bastos (figurinos), Alfredo Del-Penho (direção musical) e Marcelle Sampaio (direção de movimento).

POR AMOR AO MUNDO - UM ENCONTRO COM HANNA ARENDT - Dramaturgia de Marcia Zanelatto. Direção de Isaac Bernat. Com Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robim. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.









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