terça-feira, 7 de julho de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Caranguejo Overdrive"

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Virulenta e hilariante reflexão



Lionel Fischer



"Ele é um homem, ou um caranguejo, ou um soldado, ou um operário. Mergulhado na guerra, sofre um colapso; de volta à cidade onde nasceu, encontra um Rio de Janeiro em convulsões urbanísticas - uma cidade, para ele, irreconhecível e com sabor de exílio. Cosme, ex-combatente da Guerra do Paraguai, dispensado por ter enlouquecido na batalha, volta nos anos 1870 ao Rio. Procura o Mangue - a parte da cidade então chamada Rocio Pequeno, hoje Praça 11 - e se emprega na construção do canal que representou a primeira grande obra de saneamento do Rio. Mais uma vez sofre uma crise - abandona tudo, vaga pela noite, mergulha no delírio. Apanhado por uma dessas tempestades tão conhecidas dos cariocas, torna-se enfim um caranguejo".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima contextualiza "Caranguejo Overdrive", em cartaz na Sala Mezanino do Espaço Sesc. De autoria de Pedro Kosovski, o texto chega à cena com direção de Marco André Nunes, estando o elenco formado por Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques e Matheus Macena, que dividem a cena com os músicos Felipe Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski. Esta montagem integra a Ocupação Aquela Cia - 10 anos.

Tendo como referências o Manguebeat, de Chico Science (uma fusão de música eletrônica e tambores de maracatu) e o trabalho do geógrafo Josué de Castro, "Caranguejo Overdrive" nos mostra a trajetória de um homem que da vida só conheceu o seu lado mais amargo. Miserável no início, vivendo na lama e do que dela extrai, termina no mesmo lugar, só que metaforicamente convertido no mesmo artrópode invertebrado que no passado lhe garantiu a sobrevivência e que agora, muito provavelmente, servirá de alimento para um novo Cosme.

Ao mesmo tempo, o texto possibilita uma pertinente e angustiante reflexão (ainda que eventualmente muito engraçada) sobre a relação que temos com o espaço que habitamos. Será que as transformações efetivadas visam o nosso bem? Será que levam em consideração nossas necessidades essenciais? Ou será que, em maior ou menor grau, acabamos sendo convertidos em espectadores de um espetáculo para o qual não fomos efetivamente convidados? Caso esta última hipótese seja verdadeira, só nos restariam duas alternativas: ou nos tornamos caranguejos - ou insetos (Kafka), ou rinocerontes (Ionesco) - ou nos insurgimos contra um destino que não escolhemos e que execramos. Cosme se torna um caranguejo. E quanto a nós? O que nos tornaremos?

Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação (não linear, fragmentada) que prende a atenção do espectador desde o início, "Caranguejo Overdrive" exibe mais uma excelente direção de Marco André Nunes. Lançando mão de uma estética propositadamente virulenta e suja, perfeitamente integrada a sons impregnados de desconforto e fúria, ao mesmo tempo o encenador também consegue extrair irresistível humor de algumas passagens, sobretudo aquelas que envolvem a prostituta paraguaia e a delirante cientista. Sob todos os aspectos, estamos diante de uma das montagens mais instigantes da atual temporada.

Com relação ao elenco, Alex Nader, Eduardo Speroni e Fellipe Marques exibem seguras participações nos vários personagens que interpretam. Na pele do protagonista, Matheus Macena é uma gratíssima revelação. Possuidor de ótima voz e de um trabalho corporal da mais alta expressividade, assim como de uma visceral capacidade de entrega, o jovem ator reúne todas as condições para se tornar um grande intérprete - desde que não perca a humildade e continue estudando sempre e cada vez mais. Quanto a Carolina Virguez, a atriz exibe aqui uma das melhores performances de sua sólida carreira. Muito engraçada na pele da prostituta paraguaia e absolutamente hilariante vivendo a tresloucada cientista, a atriz demonstra uma vez mais seus vastos recursos expressivos e uma notável inteligência cênica, fruto de escolhas que jamais se valem de soluções previsíveis. Sem dúvida, um dos melhores trabalhos de atriz de 2015.

Na equipe técnica, Felipe Storino assina impecável direção musical, sendo igualmente irrepreensível sua performance como guitarrista - Maurício Chiari e Pedro Kosovski o acompanham no mesmo nível. Renato Machado responde por soturna e claustrofóbica iluminação, cabendo ainda mencionar a ótima instalação cênica de Marco André Nunes e a ideia original de Maurício Chiari.   

CARANGUEJO OVERDRIVE - Texto de Pedro Kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques e Matheus Macena. Sala Mezanino do Espaço Sesc. Terças e quartas, 21h. Sábado, 17h.


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