terça-feira, 12 de maio de 2015

Teatro/CRÍTICA

"O acompanhamento"

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Amizade e loucura no Eva Herz



Lionel Fischer



"O metalúrgico Tuco, pouco antes de sua aposentadoria, abandona o trabalho para viver seu grande sonho: tornar-se cantor. Ridicularizado pelos amigos em função de uma fracassada apresentação que fizera - segundo ele, os músicos que o acompanharam não foram capazes de acertar o tom - e pressionado pela família, Tuco se tranca em um porão. Nesse refúgio ele ensaia sozinho enquanto aguarda a chegada dos violonistas, o acompanhamento prometido por um conhecido. Mas quem bate à porta é Sebastian, um velho amigo cuja missão é trazê-lo de volta à razão".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima explicita o contexto de "O acompanhamento", de autoria de Carlos Gorostiza. Escrita em 1981 e considerada uma das obras argentinas mais relevantes sobre o tema da amizade, a peça chega à cena (Teatro Eva Herz) com tradução e adaptação de Daniel Archangelo e Wilmar Amaral, direção de Archangelo e elenco formado por Wilmar Amaral (Tuco) e Roberto Frota (Sebastian).

Muitas são as razões que podem levar alguém a perder progressivamente a razão. No caso de Tuco, além do mencionado fracasso artístico, há também que se levar em consideração o fato de não mais suportar seu trabalho em uma fábrica. E como um conhecido lhe diz (por piedade ou galhofa, jamais se chega a saber) que enviará à sua casa violonistas competentes, o contexto alienante se materializa e Tuco passa realmente a acreditar que sua desforra artística se resume tão somente a uma questão de tempo.

A chegada de Sebastian sugere que esse amargo quadro pode ser alterado, pois ele se empenha com toda a potência de seu amor e amizade para convencer o amigo de que os violonistas não virão e de que ele precisa retomar sua atividades normais. Mas é tudo inútil e finalmente Sebastian se convence de que nada lhe resta a não ser simular que acredita no delírio de Tuco - este momento, que não julgo adequado revelar aqui, se dá de uma forma absolutamente singela e lírica, e por isso mesmo profundamente comovente. 

Bem escrito, contendo ótimos personagens e pleno de amor e humanidade, "O acompanhamento" recebeu excelente versão cênica de Daniel Archangelo. Priorizando o trabalho dos intérpretes, que é o que mais importa em textos dessa natureza, o encenador criou uma dinâmica que valoriza ao extremo as sutilezas, os silêncios, os encontros e desencontros de Tuco e Sebastian, sempre valendo-se de marcas simples, mas nem por isso pouco expressivas. Afora isso, o diretor exibe o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações dos atores.

Na pele de Tuco, Wilmar Amaral constrói uma figura patética, impregnada de lirismo e dor, tão convincente em seus momentos de delírio quanto naqueles em que parece recuperar momentaneamente sua lucidez. Há que se destacar também sua visceral capacidade de entrega, sua ótima voz e impecável trabalho corporal. Quanto a Roberto Frota, acredito que o ator exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira. Alternando paciência e rigor, doses equivalentes de bom senso e sincera esperança, Frota converte seu personagem na perfeita materialização da amizade - mas também julgo imperioso destacar a engraçadíssima passagem em que narra a visita de uma senhora à sua loja e que, inicialmente suave e polida, converte-se aos poucos em incontido furor.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta belíssima e comovente empreitada teatral - Daniel Archangelo e Wilmar Amaral (tradução), Carlos Augusto Campos (cenografia), Ricardo Rocha (figurino) e Daniel Archangelo (iluminação).

O ACOMPANHAMENTO - Texto de Carlos Gorostiza. Direção de Daniel Archangelo. Com Wilmar Amaral e Roberto Frota. Teatro Eva Herz. Quinta a sábado, 19h30.


  





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