terça-feira, 12 de agosto de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Vianninha conta o último combate do homem comum"

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Amarga reflexão sobre o capitalismo



Lionel Fischer



O que acontece quando um casal de idosos tem de deixar a casa em que moraram boa parte de suas vidas, em função de significativo aumento do preço do aluguel do imóvel? Se tem filhos, recorrem a eles: Souza vai morar com Cora em São Paulo e Lu fica com Jorge no Rio. Os outros filhos do casal são Neli (casada com um homem que, teoricamente, poderia ajudar, mas se recusa sob alegações não muito consistentes) e Beto (indivíduo cujo passatempo predileto é disparar sarcásticas e derrotistas ironias). Mas a solução é temporária e o casal de idosos acaba tendo que se separar: Souza vai morar com sua filha Mariazinha, em Brasília, e Lu é encaminhada para um asilo no Rio.

Eis, em resumo, o contexto em que se dá "Vianninha e o último combate do homem comum", em cartaz no Teatro Poeira. Já encenada em 1970 com o título "Em família", a peça de Oduvaldo Vianna Filho chega à cena com direção de Aderbal Freire-Filho e elenco formado por Ana Barroso (Anita, mulher de Jorge), Ana Velloso (Cora), Luisa Arraes (Suzana, filha de Anita), Beth Lamas (Neli), Cândido Damm (Souza), Gilray Coutinho (Afonsinho, aposentado que se torna amigo de Souza), Isio Ghelman (Jorge), Kadu Garcia (Mestre de Cerimônias, Aparecida, Patrão e Médico), Paulo Giardini (Beto) e Vera Novello (Lu).

Dramaturgo sempre focado em questões sociais e políticas, aqui Vianninha nos apresenta um quadro amargo: após trabalhar dignamente a vida inteira e conseguir criar seus filhos, o funcionário público Souza simplesmente não tem mais condições de continuar morando em sua casa. O aluguel estaria defasado? Talvez. Poderia ser tentado um reajuste minimamente compatível? Certamente. Mas os herdeiros do falecido proprietário do imóvel desconhecem leis humanas, e só priorizam as do mercado. Não é isso que o capitalismo nos ensina? Pois bem: se não podem pagar o que é exigido, que os velhos vão para onde puderem. E se não tiverem alguém que os acolha, a rua pode ser uma excelente opção.

Mas há outra questão que merece ser destacada: a difícil convivência entre pais e filhos após anos de afastamento. Se os filhos de Souza e Lu fossem ricos, ou os hospedariam em um quarto qualquer de suas mansões ou, o que é mais provável, os mandariam para um asilo de luxo, que só visitariam quando assediados pelo sentimento de culpa. Mas como pertencem à classe média baixa (ou próximo disto), tudo vira problema: o espaço é exíguo, a comida não é farta, os horários se atropelam e a mútua paciência se esgota rapidamente. O que fazer? Aguardar o inevitável, como o demonstra este texto maravilhoso, estruturado em cima de sólidos personagens e de uma ação de avassaladora dimensão trágica.

Com relação ao espetáculo, Aderbal Freire-Filho talvez seja nosso encenador mais preparado para extrair o máximo desta obra implacável, não apenas por seu enorme talento, mas também por sua mais do que conhecida solidariedade para com aqueles que dá vida só conhecem seu lado mais amargo. Assim, em nada me surpreende que tenha conseguido materializar na cena, de forma irretocável, todos os conflitos e contradições de um sistema que só atende as necessidades dos detentores do poder, cabendo aos demais, quando muito, reles migalhas de uma festa para a qual jamais serão convidados. 

No tocante ao elenco, quase sempre detalho minhas opiniões sobre cada intérprete. Mas aqui, em face da força do conjunto, opto por estender a todos minha admiração, respeito e gratidão pela maravilhosa noite que me proporcionaram. E torço para que este espetáculo tão significativo fique muito tempo em cartaz, pois andam escassas as montagens cariocas capazes de produzir uma reflexão tão pertinente sobre a realidade de nosso país.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Fernando Mello da Costa (cenário), Ney Madeira e Dani Vidal (figurino), Tato Taborda (direção musical e trilha sonora), Paulo César Medeiros (iluminação) e Cacau Gondomar (programação visual).

VIANNINHA CONTA O ÚLTIMO COMBATE DO HOMEM COMUM - Texto de Oduvaldo Vianna Filho. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Ana Barroso, Ana Velloso, Luisa Arraes, Beth Lamas, Cândido Damm, Gilray Coutinho, Isio Ghelman, Kadu Garcia, Paulo Giardini e Vera Novello. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h. 


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