sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Teatro/CRÍTICA

"Deixa que eu te ame"

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Texto maravilhoso em belíssima versão



Lionel Fischer



"Após brilhar em uma palestra para financistas, o economista Bernardo convida para jantar o irmão Thomaz, médico de hospital público. Eles mantêm forte elo afetivo, apesar do iluminado êxito de Bernardo contrastar com a competência ignorada de Thomaz. Com eles, as esposas: a ex-jornalista Cecília, e a ex-pianista Helena. No nostálgico restaurante, a inesperada noite de surpresas e revelações traz à tona sentimentos velados ao longo dos anos, além de um desfecho surpreendente".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Deixa que eu te ame", texto inédito do pensador, escritor e dramaturgo Alcione Araújo, falecido no ano passado. Aderbal Freire-Filho assina a direção da montagem, em cartaz no Teatro Eva Herz. No elenco, Solange Badim, Isabel Lobo, Bella Camero, Paulo Tiefenthaler, Paulo Giardini, Cândido Damm e Oscar Saraiva.

Como implícito no parágrafo original, tudo levava a crer que o encontro dos casais no restaurante haveria de ser feliz, dado o sucesso de Bernardo em sua palestra. No entanto, já na primeira cena intuímos o contrário: Bernardo e Helena, que foram namorados no passado, chegam primeiro e ela manifesta seu desejo por ele com desvairada urgência. Ele tenta refreá-la com exasperante cinismo, mas sem deixar de estimulá-la. Assim, quando Cecília e Thomaz aparecem, a expectativa do público cresce, e uma pergunta se impõe: como farão Bernardo e Helena para ocultar o que acabaram de viver e assim não comprometer um encontro que deveria ser festivo e fraterno?

Pouco a pouco, e exibindo notável carpintaria teatral, o autor conduz a ação de forma tal que todas as máscaras acabam caindo e revelando a verdadeira face dos personagens. E não apenas no tocante à atração de Bernardo e Helena, mas também no que diz respeito ao passado, a tudo o que levou os personagens a se tornarem o que são. E neste processo de revelação, forçado pelas circunstâncias, Alcione Araújo aproveita as características pessoais dos protagonistas para empreender aguda reflexão sobre vários temas, em especial sobre a ética.

Além disso, em termos de estrutura narrativa, o autor cria momentos solo dos personagens que, dirigindo-se diretamente à plateia, explicitam com absoluta sinceridade todas as motivações que os levaram a trilhar determinados caminhos e que em público não ousam revelar. Essa quebra da quarta parede causa, inicialmente, uma certa estranheza, mas logo a percebemos como um recurso de grande teatralidade.

Contendo ótimos diálogos, personagens maravilhosamente estruturados, pertinentes reflexões e uma ação que prende a atenção do espectador desde o início, "Deixa que eu te ame" recebeu irretocável versão cênica de Aderbal Freire-Filho. A começar por sua opção de reforçar a tragicidade e sensualidade do texto com uma movimentação muitas vezes dançada ao som das deslumbrantes melodias criadas por Edu Lobo, com predominância pelo tango. 

Sem querer me estender muito sobre o tema, ainda assim julgo oportuno salientar que, segundo alguns, "o tango é um pensamento triste que se pode dançar". Mas no geral todos concordam que, além da tristeza que lhe é inerente, o tango mescla o drama, a paixão e a agressividade, cabendo também ressaltar que a mulher é sempre submissa. 

Isso posto, não sei se partiu de Aderbal ou de Edu Lobo a ideia de pontuar grande parte das cenas com tangos, mas o fato é que as mesmas adquirem uma dimensão ainda mais expressiva em função desta escolha. Afora isso, o encenador exibe aqui os já conhecidos predicados que o elevaram à categoria de um dos maiores encenadores deste país: marcações originais e sempre imprevistas, total domínio dos tempos rítmicos e notável capacidade de extrair o máximo dos intérpretes que dirige.

Na pele de Helena, Solange Badim exibe performance irretocável, extraindo tudo que é possível de uma personagem obrigada a conviver com sentimentos tão opostos quanto paixão e resignação. Paulo Tiefenthaler também faz muito bem o típico homem de sucesso de nosso tempo, que prioriza os objetivos a serem alcançados sem jamais levar em conta valores éticos. Isabel Lobo encarna com segurança a mulher que se vende totalmente ao sistema, com Paulo Giardini valorizando com grande sensibilidade um personagem que insiste em se manter íntegro. 

Cândido Damm está hilariante no papel do garçom, cabendo registrar a sensibilidade do ator quando atua em silêncio. A jovem Bella Camero convence plenamente na pele da adolescente (filha de Cecília) que se junta ao traficante vivido por Oscar Saraiva - este é um dos atores mais "despudorados" do teatro carioca, no sentido mais sublime do termo: entrega-se visceralmente a tudo que faz e tudo realiza sem o menor medo de errar ou incorrer em excessos; sua performance, aqui, merece ser considerada brilhante. 

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - afora o já mencionado Edu Lobo (direção musical), Fernando Mello da Costa (cenografia), Ticiana Passos (figurinos), Luis Paulo Nenen (expressiva iluminação) e Marcia Rubin (não tenho a menor dúvida em afirmar que sua direção de movimento foi decisiva para o inegável êxito da montagem).

DEIXA QUE EU TE AME - Texto de Alcione Araújo. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Solange Badim, Isabel Lobo, Bella Camero, Paulo Tiefenthaler, Paulo Giardini, Cândido Damm e Oscar Saraiva. Teatro Eva Herz. Terça a sábado, 19h30.






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