quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A farsa do mancebo
que casou com a mulher geniosa

                                                                                                              de Alejandro Casona
                                                                                                              tradução de Walmir Ayala


PERSONAGENS

Patrônio
Mancebo
Pai do Mancebo
Moça
Pai da Moça
Mãe da Moça
Músicos e Dançarinos


PRÓLOGO

(Patrônio, diante da cortina, fala com a platéia)

Patrônio – Minhas senhoras, meus senhores, um momento de atenção. Quereis divertir-vos com uma antiga história? Apresento-me: sou Patrônio, criado e conselheiro do muito ilustre Conde Lucanor, o qual costuma consultar-me toda vez que uma dúvida o assalta. A dúvida desta vez é que a um criado prepararam casamento com uma moça muito mais rica do que ele, e de alta linhagem. É um bom negócio, direis. Mas meu amo não se atreve a levá-lo adiante, por um receio que tem. Acontece que a tal moça é a mais violenta e geniosa coisa que há no mundo. De tão mau gênio que certamente não haveria marido que possa com ela. Por isso eu, Patrônio, conselheiro fiel, quero levar à cena hoje, neste palco, esta história, para que sirva de exemplo a vós todos e a meu prezado amo. Esta é, pois, a “História do mancebo que casou com a mulher geniosa” e das artimanhas que usou para dominá-la desde o dia em que se casaram. Escutai a história que está escrita num famoso livro, primeiro dos livros de contos que em terras de Espanha se escreveram. E contribua o prazer e a reflexão que vos cause, para a maior glória de seu autor, o infante Dom João Emanuel, que há 600 anos foi em Castela cortesão discreto, poeta de “cantares” e autor de livros de caçada e de sabedoria. (Patrônio se retira e sobem ao palco o Mancebo e o Pai do Mancebo)

CENA 1

Pai – Aconselho-te, meu filho, que penses melhor antes de bater nesta porta. A tal donzela que pretendes é muito mais rica do que nós e da mais alta linhagem. Não é bom que a mulher supere em dotes e fortuna a seu marido.
Mancebo – Sei disso. Mas pensai também, meu pai, que sois pobre e nada tendes para me dar que me possibilite viver honradamente. Assim sendo, se não colaborais para que este casamento se realize, serei forçado a viver com privações ou ir-me desta terra em busca de melhor sorte.
Pai – Fico espantado de teu intento e ousadia. Sois tão diferentes um do outro. Tu és pobre e ela é rica e tem mais terras do que poderias percorrer a cavalo num dia e andando a trote.
Mancebo – Não deis tanta importância a isto. Se ela tem fortuna eu a aumentarei com meu esforço. Se tem tantas terras que não se pode percorrer num dia andando a trote, andarei a galope.
Pai – Não é só isto. O quanto tens tu de boas maneiras tem essa moça de más e arrevesadas.
Mancebo – Eu vos asseguro, pai, que não há mula falsa onde for bom o cavaleiro. E que saberei manter firme a rédea desde o princípio.
Pai – Olha, rapaz, que seu pai nunca pôde dominá-la. E tem tal gênio que não há homem no mundo, a não ser tu, que queira casar com tal demônio.
Mancebo – Podeis bater na porta, pai. A moça é brava? Seja! Mas com braveza e tudo é de meu gosto. Se o seu pai consentir no casamento eu saberei como se passarão as coisas em minha casa desde o primeiro dia. Batei sem medo.
Pai – Já que insistes. Não digais depois que não te avisei em tempo. Peçamos a mão da moça e queira Deus que não no-la concedam. (Bate com o cajado) Ó de casa! Descerra-se a cortina aparecendo a casa da moça. O pai da pretendida, que está só, levanta-se a ver os vizinhos)

CENA 2

Pai Rico – Olá, senhor vizinho!Bons ventos o trazem! Em que lhe posso ser útil?
Pai Pobre – É um pedido que vos venho fazer para este meu filho...
Pai Rico – Posso saber do que se trata?
Pai Pobre – Amigo e senhor, tendes uma filha única...
Pai Rico – Uma única, é certo, mas que me preocupa como se fossem duzentas.
Pai Pobre – E eu só tenho este filho. Em outros tempos, quando éramos pobres os dois, unimos nossa amizade. Hoje venho pedir-vos, se for de vosso gosto, que unamos também nossos filhos.
Pai Rico – Será que estou ouvindo bem, vizinho? É de casamento que me falais?
Pai Pobre – Já adverti o rapaz de vossa riqueza e da nossa humildade. Mas ele insiste...
Pai Rico (Avançando, cheio de assombro, para o Mancebo) Então este moço quer casar com minha filha?
Mancebo (Humilde)Se for de vosso gosto...
Pai Rico – É inteiramente de meu gosto. Deus te abençoe, meu filho. Que peso me tiras das costas.
Pai Pobre – Então, está concedida a noiva?
Pai Rico – Já está entregue. Mas nunca aconteceu que homem algum quisesse carregar com ela de minha casa. Antes porém, por Deus, eu seria um falso amigo, se não vos avisasse do que pode acarretar essa decisão. Somos amigos e tendes um ótimo filho, seria grande maldade consentir em sua desgraça. Certamente sabeis que minha filha é áspera e geniosa como uma megera, e se o rapaz chegar a casar com ela mais lhe valeria uma boa hora de morte do que tão difícil vida.
Pai Pobre – Tranqüilize-se, senhor. Quanto a isso podeis ficar descansado. O rapaz bem sabe do temperamento da noiva e mesmo assim deseja casar-se. Não foi enganado.
Pai Rico – Então não se fala mais. Se assim é eu a entrego de bom grado, meu filho. E que o céu te auxilie nesta empresa. (Ouve-se de dentro da casa grande ruído de gritos e pratos quebrados) Não se espantem: é a moça que discute amigavelmente com sua mãe. (Chama) Olá, menina! Senhora minha mulher! Vinde aqui! Temos grandes novidades! (Saem mãe e filha, muito furiosas, em grande discussão, disputando um pano que ambas puxam cada uma para si) Mas que é isso, senhora? Filha indomável! Assim apareceis? Não vedes que temos visitas?
Moça (Atrevida, olhando-os de alto a baixo) E que visitas são estas?
Pai Rico – Este rapaz, minha filha, é teu futuro marido.
Moça – Meu marido? Este? (O Mancebo faz uma reverência. A Moça ri às gargalhadas) Não me pudeste encontrar coisa melhor na feira, meu pai?
Mãe – Muito me espantaria, marido, se fizésseis alguma coisa usando a cabeça. Então, com o mais esfarrapado da cidade haveria de se arruinar nossa filha?
Pai Rico – Calai, senhora, e não retruqueis mais. É de minha vontade e está decidido. Amanhã será o casamento.
Mãe – Vossa vontade! E que vontade é a vossa, seu frouxo? Ai, minha filha, minha pobre filha...
Pai Rico (Confidencialmente para o vizinho) – A mãe não é menos tirana, amigo. Mas esta já não há quem me tire de casa. (Fecha a cortina e volta a aparecer Patrônio)

CENA 3

Patrônio – Assim começa a nossa história. Logo veremos como prossegue e termina. Forte é a moça e bem decidido o mancebo. O que resultou desta união logo sabereis. Eu me retiro, que o cortejo está por chegar, e só vim aqui para vos avisar que o casamento se fez e já trazem a noiva à casa de seu marido. (Saúda o cortejo que vem pelo meio da praça e sai. O cortejo desfila diante do público e sobre no palco, tocando gaitas, tambores e pandeiros. Em seguida, o Pai Rico e a Mãe. Atrás os noivos e os pares de moços e moças coroadas de grinaldas em flor. Cantam e dançam “Um romance de bodas”)

Cortejo – Maio em flor vos traz
                gentis atavios
                os alegres campos,
                as fontes e os rios.
                Erguem a cabeça
                salgueiros bravios,
                e as verdes espadas
                de onde apontam lírios (Dançam e repetem cantando a primeira estrofe)

Pai Rico (Chamando a Moça à parte) – Estás casada, minha filha, ouve agora meu conselho: obedece e serve a teu marido, que há mais sossego em obedecer do que em mandar.
Mãe (Tomando a Moça pela mão e levando-a para o outro lado) – Estás casada, minha filha, ouve agora um conselho: não te deixes abrandar nem por bem nem por mal; que ao que lambe as mãos, a este dão pancadas.
Pai Rico – Ei, senhores. Retire-se agora o cortejo. Que fiquem sós os noivos. Até outro dia. (Despedem-se entre risos e abraços e saem todos cantando. O Mancebo descerra a cortina e entra coma noiva em sua casa. Está posta a mesa e sobre ela um candelabro aceso. Ao fundo, por uma janela, vê-se a cabeça de um cavalo ruminando no curral. Enquanto a noiva retira a grinalda e os enfeites, ouve-se cantar o cortejo, distante).  

CENA 4

Mancebo – Digo-te, mulher, que não se cumpre conosco o costume desta terra, de servir a ceia dos noivos sem que lhes falte nada.
Moça – Mas não vês aí tudo?
Mancebo – Não vejo onde está a bacia da água para lavar as mãos.
Moça – Água para lavar as mãos! Essa é boa, marido. Contenta-te em comer e calar, que em tua casa certamente não te davas ao luxo dos lavabos.
Mancebo – Te enganas. Sempre fui pobre, porém limpo. E quero me lavar. (Pausa. Ela não liga importância. Ele dá um soco na mesa, erguendo o tom de voz) Quero me lavar, ouviste? (Olhando em volta de si) Ei, tu, dom cachorro, dá-me água para as mãos! (Outra pausa. Espera) Como! Não ouviste, cão traidor? Eu te ordenei que me trouxesses água para as mãos. Ah, calais? Não me obedeces? Não perdes por esperar. (Sai furioso para trás das cortinas e dá punhaladas no cachorro, que late espantado)
Moça – O que fizeste, marido? Mataste o pobre cão. Olhem que tipo de homem é esse...
Mancebo – Mandei que trouxesse água e não me obedeceu...(Limpa o punhal na toalha da mesa e torna a olhar ao redor de si, contrariado. Dirige-se a um suposto gato, do outro lado da cortina) E tu, dom gato, me traz água para as mãos!
Moça – Falas com o gato, marido?
Mancebo (Sem dar atenção à mulher) – Como? Tu também calas? Traidor! Não viste o que aconteceu ao cão por não me obedecer? Aviso que se insistes em teimar comigo terás o mesmo fim. Dá-me água para as mãos agora mesmo!
Moça – Mas marido, como queres que o pobre gato entenda de bacias d’água?
Mancebo (Impõe silêncio com um gesto, secamente) O quê? Nem te mexes apesar de tudo? Ah, gato traidor...Espera, espera e já verás! (Sai entre as cortinas. Ouve-se um miado estridente. O mancebo volta com um gato espetado na espada. Joga-o ao pé da moça)
Moça – Ai, pobre gatinho! (Ergue o bichano tristemente pelo rabo comprovando que está morto)
Mancebo – E agora tu, dom cavalo. Traz-me água para as mãos! Vamos!
Moça – Isso não! Pensa, marido, que cachorros e gatos há muitos, mas cavalos tens apenas este.
Mancebo – Ora, mulher, pensas que por não ter outro cavalo este vai se livrar de mim se não me atender? Que cuide de não me aborrecer, do contrário terá tão negra morte quanto os outros. (Voltando-se para ela, que retrocede assustada) E não haverá viva alma nesta casa a quem não faça o mesmo. (Para fora) Ei, dom cavalo! Ouviste? Dá-me água para lavar as mãos!
Moça (Perturbada) – Enlouqueceu! (O Mancebo puxa da pistola e dispara em direção ao cavalo. O animal cai pesadamente) Deus nos valha, marido! Mataste o cavalo!
Mancebo – E daí? Pensas que admitirei dar uma ordem em minha casa e não ser obedecido? (Dá um ponta-pé na cadeira. Volta a olhar para os lados com fúria. Fixa o olhar na Moça e se aproxima. Fala calculada e lentamente) Mulher, dá-me água para lavar as mãos.
Moça (Tremendo) – Água? Agora mesmo! Por que não pediste antes, marido? (Corre para dentro e volta com uma pequena bacia d’água e uma toalha) Espera! Não te canses! Eu mesma te lavarei!
Mancebo – Menos mal. Agora serve a ceia.
Moça – Sim, sim...agora mesmo...É só mandar, marido. (Serve, prodigalizando-lhe sorrisos. Fica em pé enquanto ele come)
Mancebo – Ah, como agradeço aos céus por teres obedecido prontamente. Caso contrário, com o tédio que tenho, faria contigo o mesmo que fiz com o cavalo.
Moça – E como não haveria de te obedecer, marido? Sei muito bem que não há qualidade que assente tão bem numa mulher como a de servir e honrar ao senhor de sua casa. Mande-me o quanto quiser. Eu juro...
Mancebo (Interrompendo) – Cala-te! Chega!
Moça – Sim, sim...perdão.
Mancebo – A ceia não esteve satisfatória. Que isso não torne a acontecer.
Moça – Não te preocupes. Amanhã eu mesma a prepararei...
Mancebo – Bem, agora eu vou ao leito. Cuidado, mulher, que nada me perturbe o sono. Com a raiva que tive esta noite nem sei se poderei dormir. Esta cadeira...
Moça – Sim, sim...(Apressa-se em pôr a cadeira no lugar)
Mancebo – Ilumina o caminho!
Moça – Sim, sim... (Acompanha-o com o candelabro, cedendo-lhe a dianteira com uma reverência. Sai o mancebo. Fora recomeça o romance de bodas. A Moça volta e corre até a janela) Loucos! Que fazeis? Psiu...Não perturbeis meu marido senão seremos todos mortos! (Cessa a música. Ela impõe silêncio ao público, na ponta dos pés) Silêncio, silêncio todos, por Deus. Meu amo está dormindo...(Fecha as cortinas levando um dedo ao lábio. Mudança de luz. Sai o pai da moça. Escuta levando a mão à orelha)

CENA 5

(Diante da cortina)

Pai Rico – Não se ouve nada...que se terá passado aqui? (Chama) Meu genro! Ó meu genro! (Sai o Mancebo) Então?
Mancebo – Já está mansa...
Pai Rico – Mansa? Minha filha?
Mancebo – Mansa como uma ovelha.
Pai Rico – Mas isto é maravilhoso! Conta-me como te arranjaste para conseguir tal milagre?
Mancebo – Puxando forte a rédea desde o princípio. Mandei o cão trazer água, como não obedeceu, matei-o a punhaladas diante dela. Fiz o mesmo com o gato e depois com o cavalo. Assim, que quando ordenei-lhe que me trouxesse água, obedeceu voando por medo de sofrer igual castigo. Eu vos garanto que de hoje em diante vossa filha será a mulher mais bem mandada do mundo. E juntos teremos uma vida muito feliz.
Pai Rico – Por todos os diabos, rapaz...Que grande idéia me estás dando...se eu puder fazer o mesmo com a mãe, que também é uma tirana!
Mancebo – Não sei o que dizer, meu sogro. Mas penso que nunca os segundos tempos foram bons...Lembrai-vos daqueles versos de Lucanor: “Se no início não mostras que és capaz, não poderás mostrá-lo nunca mais”. Cuidado, aí vem vossa mulher...
Pai Rico – Por tua alma, rapaz! Deixa comigo esta espada.
Mancebo – Aqui está. Que o céu vos ajude...Adeus, meu sogro. (Sai o mancebo. Descerra-se a cortina outra vez e entra a Mãe)

CENA 6

Mãe – Que fazeis aqui, marido, tão cedo e com uma espada na mão?
Pai – E quem sois para perguntar-me alguma coisa, senhora?
Mãe – Hein? Perguntais quem sou?
Pai – Falai quando fordes mandada e muito cuidado para não me aborrecer. (Ouve-se de dentro o canto de um galo)
Mãe – Com que então essa é a nova fala vossa, hein, marido?
Pai Rico – E antes de replicar mais uma palavra, olhai bem o que vou fazer. Ei, tu, dom galo, traz-me água para lavar as mãos!
Mãe – Mas o que fazeis, dom fulano? É com o galo essa conversa?
Pai Rico – Silêncio! E fique de olho no que se vai passar aqui! (Para o suposto galo) Não ouviste que te pedi água para as mãos? (Pausa) O quê? Não me obedeces? Espera, espera! (Sai furioso)
Mãe – pelo que vejo hoje a festa é completa...(Volta o Pai, trazendo o galo morto pelo pescoço)
Pai Rico – Viste o que aconteceu com este galo por não me obedecer?
Mãe – Vejo muito bem, marido. Porém tarde demais vos lembrastes de tal providência. Isto deveria ter começado há trinta anos. Agora tão bem já nos conhecemos que nada disso me convenceria, ainda que matásseis cem cavalos...(Arrebatando o galo da mão do marido e agredindo-o com ele) Vamos, vamos! Para dentro, toleirão! Já! Não há galo morto que te salve! Vamos, vamos!

F     I     M


                                               
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