quarta-feira, 17 de abril de 2013

A Montanha Mágica,
de Thomas Mann
(1875-1955)


por Manuel Cardoso


          Desengane-se quem foi vítima do mito: este não é um livro difícil de ler nem um livro chato. É uma obra-prima absolutamente notável. Na minha modesta opinião, um dos melhores livros da história da humanidade, capaz de ombrear, em qualidade literária com D. Quixote de Cervantes, Os Irmãos Karamazov de Dostoievski ou Guerra e Paz de Tolstoi. Se tivesse de fazer um top ten dos melhores livros que li até hoje, este teria de lá figurar. A profundidade dos assuntos tratados e toda a riqueza de conteúdo desta obra monumental levam-me a dividir o meu comentário em três partes:


1 - A magia da montanha

          Lá em cima, no topo de uma montanha suiça, há um sanatório onde tudo é relativo, a começar pelo tempo. Hans Castorp esperava demorar 3 semanas, esperando o primo, Joachim. Mas lá o tempo passa mais devagar. O tempo é uma noção vaga, subjetiva. Da mesma forma o espaço: as montanhas que impressionam Hans são vulgares para Joachim. Os contrastes culminam com a atitude perante a morte: trivial para um, estranha para o outro. Morrer naquelas montanhas era, afinal, o mais comum.

          Hospedado numa cama que fora leito de morte no dia anterior, Hans resiste ao drama reagindo com humor à desgraça dos outros. O riso como fuga e como marca do contraste entre a vida e a morte. É nesse leito que foi de morte que Hans recorda a infância, apelando a memórias que marcam as venerações pelas tradições da família e da pátria alemã.

           Essas memórias ensinaram a Hans que a morte não é o fantasma terrífico; é um momento solene a quem a religião dá um tom de naturalidade. O drama é apenas corporal, material. O espírito prevalece.

           O riso perante a morte é uma constante na montanha. Como se a morte libertasse os homens do mundo ordinário em que vivem: o internado Albin brinca com uma faca e um revólver: uns riem, outros agem com naturalidade, outros ainda, entram em pânico. Serão essas as 3 reações típicas perante a morte? Outro exemplo brilhante é o daquela personagem que emite assobios graças a um orifício artificial que lhe fizeram no pulmão. A cena é tornada cômica a partir de uma situação dramática - o riso paredes meias com a dor.

          A Montanha Mágica está também povoada pela arte de dar significado a todos os pormenores, sem cair no exagero descritivo.

          Lentamente, a doença torna-se um estado de afastamento do corpo, que facilita o trabalho do espírito - “deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito”.

          A propósito da visita de Hans, afirmava o médico: “três semanas são como uma visita de médico; nem vale a pena tirar o casaco por tão pouco tempo.” Sempre, a relatividade do tempo. Este parece ser um dos temas centrais da obra. Essa é parte da magia daquela montanha: o tempo que, pela monotonia dos dias devia avançar mais depressa, corria rapidamente, como se não se desse por ele. A relatividade do tempo e a forma imperial como ele subjuga a vida humana está bem patente na própria estrutura da obra: os capítulos vão sendo cada vez mais longos e o tempo cronológico da ação vai-se transformando: no início um curto espaço de tempo preenche dezenas de páginas, ao passo que no final da obra meses e anos vão passando, por vezes num único subcapítulo.

2 - Naphta e Setembrini ou o choque de titãs

          Settembrini é um personagem fundamental neste livro. Italiano, homem do sul, ele é sonhador, muito crítico, lutador pela liberdade. Talvez o contraponto com o espírito alemão. Ele é, sem dúvida nenhuma, o representante do lado otimista do ser humano, da visão crítica e livre da existência. Para ele, a vontade e a força humana (haverá algo de Schopenhauer?) são capazes de enfrentar qualquer poder e a própria natureza, apontando como exemplo a forma como Voltaire se recusou a aceitar o terramoto de 1755. Não é, no entanto, um hedonista; é um humanista que defende o primado do espírito. Mas um espírito livre, longe do “obscurantismo cristão”. Ele é o único que aconselha Hans a abandonar o sanatório. Muito crítico em relação à medicina, ele considera que Hans tem de optar pela liberdade.

          No entanto, a prisão de Hans já não é só o sanatório; é também Clavdia. A sua paixão começa precisamente quando adoece. O amor surge associado à doença e à tristeza: “Le corps, l’amour, la mort, ces trois ne font qu’un », diz Clavdia. T. Mann introduz aqui uma forte imagem simbólica: a recordação que Hans guardará de Clavdia será a sua radiografia.

          À medida que a obra avança, o tempo vai-te tornando uma obsessão; o drama da sucessão dos anos, o ritmo das estações do ano; a nostalgia de um verão em que os dias vão sendo cada vez mais curtos…

          Setembrini, maçônico, é o adepto fiel do progresso, da civilização e do humanismo. É um pacifista mas contra a Áustria admite todas as guerras… Lentamente, estas ideias vão influenciando o espírito jovem de Joacquim, o aspirante a militar; pouco lhe interessam as reflexões e os assuntos da alma.

          Hans, por seu turno, vai-se tornando cada vez mais reflexivo.

          Naphta, o jesuíta de família judaica, é um personagem fortíssimo, que surge a meio do livro. Ele é um nacionalista que advoga o valor da guerra e anuncia o conflito mundial que se aproximava. Defende o nacionalismo por oposição a um certo humanismo cosmopolita.

          Nafta é um conservador revoltado: a sua família fora martirizada por serem semitas e o jovem Leo haveria de seguir o rumo jesuítico mais por revolta do que por convicção, depois de ter lido Marx. No entanto, foi a doença que o impediu de seguir uma brilhante carreira eclesiástica. Talvez este espírito revoltado explique o seu radicalismo aliado a uma inteligência invulgar. E talvez seja por isso que Setembrini o considera perigoso.

          As longas mas profundas discussões entre Naphta e Setembrini concretizam também a oposição entre o tradicional e o moderno, o conservador e o progressista. Dá a sensação que as posições se extremam ao longo da discussão levando mesmo Naphta a defender o primado da fé sobre a ciência. Só a fé é útil à salvação do homem e por isso a ciência só é útil se servir a fé.

          Note-se que a narrativa se desenrola imediatamente antes do deflagrar da primeira guerra mundial; neste contexto a obra é também algo premonitória: estes dois personagens, opostos, inimigos, talvez simbolizem as duas forças opostas que entrarão em conflito e que depois terão sequência na segunda guerra mundial e em todo o século XX: as democracias por um lado e os totalitarismos por outro.

          Os mais jovens, Joacquim e Hans rejubilam com os argumentos de Setembrini: democracia, progresso, liberdade; Renascimento, Luzes, Ciência moderna. No entanto, paira no ar o sinal da razão de Naphta: o absoluto resiste; a ciência não evita o medo; a lógica do mundo parece não sobreviver sem a autoridade, a força, a disciplina. Numa palavra, a obediência.

           Naphta representa também aqueles que colocam o espírito à frente do corpo; o espiritual triunfando sobre o carnal. No entanto, o próprio Naphta foi derrotado pelo corpo: a sua saúde é terrivelmente precária; sobreviverá o seu espírito? No entanto, para ele a doença é o estado natural do Homem; é aí que ele assume toda a sua humanidade porque perante a doença do corpo, impera o espírito.

          Defendendo a pena de morte e a tortura, Naphta afirma o primado do ser universal sobre o ser individual, acusando Setembrini de defender o individualismo burguês, que ele considera egocêntrico e fútil.

          Este personagem (Naphta) assume um papel fundamental na obra: o leitor começa por estranhar e mesmo adquirir uma certa repulsa pelas suas ideias ultra conservadoras mas, mesmo nessas ideias podemos encontrar poderosos motivos de reflexão. Por exemplo, até que ponto a defesa da liberdade individual, da tolerância e da democracia não está ligada ao interesse político da ética capitalista, no culto interesseiro e mesmo egocêntrico do individualismo burguês?

3 - Uma intensa reflexão sobre a vida humana

          A vida na planície era vista como uma prisão, enquanto no sanatório a doença confere liberdade. O próprio líder do hospital, o Dr. Behrens, é nomeado pelo autor como “Radamanto” que, na mitologia grega, era um ser de superior inteligência que permaneceu como juiz do Hades, ou seja, aquele que decide sobre a vida após a morte.

          Afirma o Dr. Krokowski: “O que é orgânico é sempre secundário...” Diz ele que ninguém tem uma saúde perfeita… esta perspetiva reforça a ideia de liberdade associada à libertação relativamente ao corpo, ao lado orgânico do ser. Setembrini, crítico e cético em relação à ciência, à competência dos médicos e até à eficácia do sanatório, afirma a supremacia da liberdade por oposição aos ditames da ciência (neste caso, a medicina). No entanto, não há nesta visão nada de conservador, anti-progresso; antes pelo contrário. A ciência liberta, mas deve ser colocada ao serviço do “EU”.

          No sanatório os doentes leves são desprestigiados. Os “normais” são os doentes graves e muito graves. Os outros são, quase, intrusos. Assim sendo, qual será o motivo que leva os homens a mudar de atitude na montanha? O estar doente? O estar isolado do mundo? O estar em contato permanente com um grupo? O estar dependente, ou seja, sem liberdade? São perguntas em aberto que permitem ao leitor uma intensa reflexão. Este é, a meu ver, o interesse maior da obra.

          Seja como for, o hospital é um mundo fora do mundo. Na época em que Mann escreve (1924), a Europa estava ainda profundamente marcada pela guerra. E o pós-guerra não oferecia grandes esperanças.

          Por outro lado, vivia-se uma época de enormes progressos científicos. O jovem Hans é também confrontado com as mais intrigantes relações entre os mundos psíquico e físico que compõem o ser humano; estuda até à exaustão procurando esmiuçar todo o conhecimento da alma e do corpo humano. A montanha e a doença, mais uma vez como fontes de progresso: a montanha mágica mas, também uma doença mágica.

          A própria paixão de Hans por Clávdia é de uma natureza bem distinta do amor mais comum.

          A forma como Thomas Mann vai descrenvendo o crescendo da paixão é absolutamente genial. Tal como uma doença, o amor surge com sinais muito tênues; tal como em relação à doença, a primeira fase é a da negação. Hans nega estar apaixonado mas os sinais vão-se tornando evidentes.

          Chega a ter um efeito humorístico a forma como os recém chegados se convencem de forma quase imediata que precisam de tratamento, mesmo gozando de perfeita saúde, como é o caso do tio de Hans que subiu à montanha para o visitar e se possível resgatar. Mas não só isso; não se verifica como o próprio James cede à magia da montanha (ou do Dr. Behrens?). Felizmente, guardou o que lhe sobrava das energias da planície para fugir da montanha a sete pés. E o leitor fica com a sensação que escapou por muito pouco. Ao mesmo tempo parece ter-se gorado a última tentativa de resgatar Hans à planície.

          A montanha e toda a envolvência natural, o frio extremo, o vento, a vegetação, todo esse contexto exprime não só a beleza natural mas também o medo que inspira no ser humano; uma espécie de reverência perante a majestade da natureza, assim encarada como uma entidade superior.

          À medida que nos aproximamos do final vamos sentindo o triunfo da montanha: o regresso de Joachim é descrito como um “regresso à pátria”; é recebido com uma alegria algo mórbida mas sentida como o regresso ao estado natural das personagens.

          O recém-chegado Peeperkorn, a quem Clavdia se afeiçoara, entra em cena como o defensor dos prazeres da vida: comida e mulheres constituem o seu paraíso. Reflexões e ideias são, para ele, coisas inúteis. Hans Castorp navega agora entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.

          A parte que precede o final do livro parece marcar o triunfo do bom humor e a derrota da ciência ou, pelo menos das preocupações em torno dos chamados “assuntos sérios”. É um final épico: acabaram as teorias, as reflexões, a melancolia. No sanatório ouve-se música numa moderna grafonola, fazem-se alegres sessões de espiritismo com defuntos ressuscitados e até são exaradas em ata bofetadas ilustres em questões de honra.

          Mas, no final, tudo se reduz à bestialidade; a elevação, a filosofia, a moral e a ciência, tudo será substituído por um inesperado e bárbaro duelo. Trata-se de uma forte alegoria à Europa prestes e entrar no período mais negro da sua história…

          E, finalmente, Hans Castorp: após sete anos na montanha mágica, encontrá-lo-emos enterrado na lama do mundo…
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