terça-feira, 6 de novembro de 2012

Textos para Estudo


O interrogatório

Peter Weiss

Testemunha 8 - Quando me tiraram da barra, Boger disse: “Agora você está preparado para uma feliz viagem ao céu”. Fui levado para uma cela do bloco 11, onde fiquei esperando horas e horas a minha execução. Não sei quantos dias fiquei ali. Meus testículos arroxeados incharam brutalmente. Na maior parte do tempo permaneci em estado de coma. Depois, fui conduzido para a sala das duchas, junto com outros presos e nos fizeram tirar as roupas. Marcaram nossos números no peito com tinta azul. Eu sabia que isso era a condenação à morte. Depois que estávamos nus e em fila, o chefe do setor de Informações perguntou quantos mortos devia contabilizar. Assim que ele saiu fizeram uma recontagem e perceberam que havia um a mais. Eu tinha aprendido a me colocar sempre no último lugar da fila. Fui separado dos outros com um pontapé e me devolveram as roupas. Eu deveria voltar para a cela e aguardar a próxima fornada, mas alguém me levou para a enfermaria. Também acontecia, que um ou outro, tivesse o destino de sobreviver. Eu fui um desses.

Sugestão para estudo

O trecho encerra o Canto 3. Nele o autor alemão reconstitui - de forma fantasiosa e não esquemática - um tribunal onde estão sendo julgados criminosos nazistas. A testemunha relata como conseguiu escapar e o citado médico Boger está presente. Já se passaram alguns anos, mas é evidente que as lembranças atrozes permanecem.
A maior dificuldade de se interpretar um texto como este consiste na busca do equilíbrio entre emoção e objetividade. Se o ator narrar friamente os fatos, pode sugerir que já superou o trauma ou que se encontra num estado emocional em que nada mais pode atingí-lo. Se, por outro lado, optar pela emotividade, sua contribuição será menos contundente, pois todos os envolvidos - juíz, promotor, advogados etc. - precisam da maior clareza possível para avaliar o grau de culpabilidade dos réus e assim determinar sua justa punição.

Por uma tarde fria

poema de Ana Amélia Carneiro de Mendonça

Há dias, ao passar por uma rua, encontrei por acaso uma mulher.

Uma infeliz qualquer levando pela mão uma criança nua.

Eu andava sem pressa, vagamente, por essa tarde fria.

Tinha um vestido quente, luvas espessas,

E trazia por sobre os ombros, negligente,

Desnecessária, por vaidade, enfim,

Uma pele forrada de cetim.

Vendo esse estranho grupo de miséria, a mãe esfarrapada,

Tendo no olhar de transparência etérea todo um romance de desgraça,

E a criancinha delicada que, na rude nudez, só ganha em graça, mas que treme de frio,

Senti um íntimo arrepio, uma vergonha singular de não ter frio,

Por essa tarde fria de cortar.

Sugestão para estudo

          Uma das maiores dificuldades encontradas pelo estudante de teatro diz respeito à interpretação de poemas. E a dificuldade se agrava ainda mais quando há rimas muito marcadas, pois então aumenta o risco de se enveredar por um caminho declamatório, com resultados quase sempre artificiais. Como aqui tratamos de teatro - e um poema não deixa de ser um texto dito por alguém para outra pessoa -, julgamos que o aluno deve estabelecer as mesmas premissas que faria no caso de um “texto comum”:

- Quem eu sou.

- Aonde estou.

- O que estou fazendo.

          Ou seja: na medida do possível, criar um personagem que poderia estar dizendo aquelas palavras; em seguida, situá-lo em algum contexto; e finalmente, estabelecer uma razão para ele estar falando aquele poema ou poesia. Tais “cuidados” podem sem dúvida dar maior segurança ao aluno, que também jamais deve se esquecer de que uma história está sendo contada, ainda que em versos de rima rigorosa.

No momento não estou

Elisa Lucinda

          Olhando a cara dos dias, vejo como é sórdida tua secretária eletrônica: Ela mente pra mim na mesma tônica: doublé de seu medo...Vou te contar um segredo: Eles venceram. Venceu a mesquinharia, a pequeneza, a teoria rasa, a safadeza...No meio da luta, você preferiu ser o nêgo filho da puta da história que escreveram pra você encenar, da promessa que fizeram pra você cumprir, pra você pagar. Essa noite, sua covardia repete o açoite: aceita a mesma escravidão pra te enganar. Ai, como é mórbida tua secretária eletrônica, roubou meu batom e no mesmo tom me diz que você não está. Como uma armadilha de sonora trilha, pede um recado após o sinal...Não dou! Antes disso terá um longo curto-circuito entre as pernas, essa tua secretária calhorda, essa tua secretária moderna, tão sonsa, tão palerma. Ligada por ti pra te sacanear! Acionada por ti pra te carear os dentes da alma e depois te pede pra sorrir pra sua própria demência. Uma ridícula dona de casa chamada Ausência!

Sugestão para estudo

          Talvez seja correto afirmar que Elisa Lucinda escreve poesias para serem ouvidas, tamanha é a teatralidade nelas contida - isto não significa, bem entendido, que não possam ser apreciadas quando apenas lidas. Assim, quase todas elas oferecem excelentes oportunidades para um ótimo trabalho de interpretação. A que selecionamos na presente edição, focaliza com sensibilidade uma série de queixas amorosas e, de quebra, investe contra esse abominável aparelho denominado secretária eletrônica, permanente fonte de desgostos e frustrações.

          Vamos, portanto, fazer com que a poesia aconteça, imaginando quem seria a mulher que se lamenta e acusa; em seguida, uma circunstância que confira credibilidade ao desabafo - a personagem está sozinha, fala na secretária eletrônica, está escrevendo uma carta?. E finalmente, trabalhar as idéias e sentimentos com a maior carga possível de verdade e emoção. Quem sabe a pessoa do outro lado desliga a secretária e atende?


Aprendiz de feiticeiro

Maria Clara Machado

Uranus (Ao telefone) - Alô? Sim, pode fazer a ligação! O que terá acontecido? Será que rejeitaram de novo? Barnard? Como vai passando, amigo? Yes. O que? Bem, acabei de aperfeiçoar minha nova fórmula de crescimento das laranjas. Não, melancias, meu caro! Do tamanho de melancias! Agora vou partir para as euforbiáceas. Necessidade nacional. Yes, nós temos bananas. Também estou cuidando. Não, não quero saber mais de transplantes. Deixo isto para vocês. Bem, ainda tenho a técnica de transplante da massa cinzenta. Não, desanimei. Há muita rejeição. Experimentei num burro e para te confessar humildemente a verdade, ele ficou ainda mais burro. Empacou e depois empacotou. Fiquei com fastio de transplante. Você sabe, o burro era de estimação. Pelo contrário, Barnard, a fórmula pode tornar-se muito perigosa, porque, se de um lado acentua as qualidades, por outro acentua também os defeitos. Se o paciente tem tendência a burro ficará ainda mais burro. Rejeição da massa cinzenta é coisa corriqueira, você sabe, o hipotálamo tem suas exigências. Bem. O que? Hoje? Oh! Meu deus! Está bem. Sei. Bem, Barnard, tomarei o próximo avião. Recomendações à senhora Barnardina. Sim, sim, levarei. Good By!

Sugestão para Estudo

           O Dr. Uranus é um sábio dedicado ao estudo de fórmulas capazes de fazer crescer os alimentos. Quando parece estar quase chegando à equação perfeita, recebe o telefonema de Christian Barnard, médico sul-africano pioneiro nos transplantes de coração. É claro que a autora aproveita o recente (na época) avanço da medicina para fazer uma hilariante brincadeira. Assim, é importante transmitir tanto a paixão de Uranus pela ciência como seu humor, em especial no tocante à burrice. Sem esquecer, naturalmente, de que o personagem está falando ao telefone, o que pressupõe pausas a serem preenchidas com variadas reações.

O Mambembe

Arthur Azevedo

Frazão - E levo esta vida há trinta anos! Pedindo hoje, pagando amanhã, tornando a pagar, sacando sobre o futuro com a hipoteca do ganho, com as alternativas da fortuna, sempre de boa fé e sempre receoso que duvidem de mim, porque sou cômico, e ser cômico, vem de longe. Mas por que persisto? Por que não fujo à tentação de andar com o meu mambembe às costas? Perguntem às mariposas porque se queimam na luz...Perguntem aos cães porque não fogem quando avistam de longe a carrocinha da Prefeitura! Mas não perguntem a um artista de teatro porque não é outra coisa senão artista de teatro...Isto é uma fatalidade que nos condena o nosso próprio temperamento. O jogador é infeliz porque joga? O fraco bebedor porque bebe? Também isto é um vício terrível porque ninguém considera vício e, portanto, é confessável, não é uma vergonha, é uma profissão que absorve toda a atividade, toda a energia, todas as forças. E para quê? Qual o resultado de todo esse afã? Chegar desamparado e paupérrimo a uma velhice cansada! Aí está o que é ser artista no Brasil!

Sugestão para estudo

          O trecho selecionado constitui uma das análises mais dramáticas, lúcidas e líricas do que seja a paixão de representar. Aqui, o que importa é tentar viver, com o máximo de verdade, os sentimentos implícitos nesta reflexão. Sem pressa. Descobrindo uma a uma as frases, como se estas ocorressem no momento de serem enunciadas. E dirigindo-as a um interlocutor imaginário, como se o personagem estivesse respondendo a uma pergunta. O texto, no fundo, não deixa de ser uma confissão. E isto pressupõe um ouvinte.

Lucrécia, o veneno dos Bórgia

Paulo César Coutinho

(O monólogo que se segue constitui o prólogo. Maquiavel faz uma reverência e apresenta-se ao público)

Maquiavel - Nicolau Maquiavel, escritor, dramaturgo, filósofo, historiador. Mas, nos dias que correm, prestígio não enche barriga. Tive mesmo é que me empregar como secretário particular de César Bórgia. Nenhum problema, estava em boa companhia. Sob o mesmo teto havia empregados como Michelangelo. Além do salário, o emprego trazia vasntagens adicionais para um cronista da época. Viagens aos cenários de guerras. Acesso à intimidade do poder, testemunhando as intrigas palacianas, no palco mesmo das decisões. A confiança de personagens-chave, abrindo o precioso cofre de suas confidências. O registro de acordos e documentos, na hora em que eram feitos e desfeitos. Enfim, espectador privilegiado, e ator nos bastidores desse espetáculo, que é a História. Pois, como todos sabem, a política é a arte de enganar os outros, sem que eles percebam, e sem deixar vestígios. Meu patrão, César Bórgia, era uma eterna fonte de inspiração e sua irmã, de permanente fascínio. Eu conheci Lucrécia Bórgia! Hoje, se falam horrores dessa dama. Posso garantir que tudo que se diz dela...ainda é pouco. Lucrécia era excessiva, uma pérola cultivada. Exerceu como poucos a virtude do vício, não sendo desprovida de talentos e sentimentos contraditórios. Naquele tempo, não importavam os meios, quando os fins eram o poder, a riqueza e a glória. Talvez os senhores achem difícil de compreender, vivendo numa época tão diferente. Os Bórgia tinham a ambição como um refinamento do espírito. A família era muito unida...O papa adorava seus filhos, sobretudo Lucrécia...

Sugestão para estudo

          O texto define em linhas gerais o caráter do personagem e seus principais objetivos, assim como situa a platéia no contexto da narrativa. A fala é dita para o público, e o aluno deve evitar maiores atropelos e tentar valorizar todas as informações. Algumas delas, como se percebe, repletas de ironia.

Versos íntimos

Augusto dos Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera -

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

Sugestão para estudo

          Versos íntimos tem como tema central a ingratidão. Seu tom é amargo, sombrio, ainda que se perceba uma certa ironia, ainda que desesperada. Como o texto nos leva a crer que uma pessoa se dirija a outra, talvez seja interessante para o aluno criar um contexto, ou seja, imaginar um personagem que fale com alguém. Ou quem sabe o próprio, falando consigo mesmo, diante de um espelho. Mas o fundamental é trabalhar cuidadosamente cada intenção, de preferência de forma lenta, a fim de valorizar todos os conteúdos propostos.

Briga no beco

Adélia Prado

Encontrei meu marido às três horas da tarde

com uma loura oxidada.

Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.

Ataquei-os por trás com mão e palavras

que nunca suspeitei conhecesse.

Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,

gritei meu urro, a torrente de impropérios.

Ajuntou gente, escureceu o sol,

a poeira adensou como cortina.

Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,

sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêma-ofendida,

uivava.

Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.

Quando não pude mais fiquei rígida,

as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,

eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,

as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.

Desde então faço milagres.

Sugestão para estudo

          O poema tem como sentimento primordial a indignação. Mas deve-se ter cuidado para não imprimir à narrativa um ritmo muito acelerado, pois aí corre-se o risco de não valorizar suficientemente as poderosas imagens criadas por Adélia Prado.

O guardador de rebanhos

(XLVIII)

Fernando Pessoa

Da mais alta janela da minha casa

Com um lenço branco digo adeus

Aos meus versos que partem para a Humanidade

E não estou alegre nem triste.

Esse é o destino dos versos.

Escrevi-os e devo mostrá-los a todos.

Porque não posso fazer o contrário

Como a flor não pode esconder a cor,

Nem o rio esconder que corre,

Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência

E eu sem querer sinto pena

Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?

Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.

Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.

Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.

Submeto-me e sinto-me quase alegre,

Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!

Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.

Murcha a flor e o seu pó dura sempre.

Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Sugestão para Estudo

           O poema, escrito por Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa) exibe uma espécie de alegria melancólica, algo resignada. Portanto, deve ser dito sem maiores arroubos, num tom calmo, mas nem por isso isento de emoção.

Sem título

Martha Medeiros


foram exatos treze segundos

mais do que dura um orgasmo

menos que um comercial de tevê

“Não posso mais viver com você

me apaixonei por outra mulher”

você disse pausado, com a voz embargada

e levou treze segundos

pra dizer duas frases

tivesse mais pressa ou menos remorso

teria sido mais rápido

mas você estava angustiado

e levou treze segundos

pra desocupar meu lugar

como quem desfaz um negócio

tivesse escrito uma carta

haveria de ser mais sutil

tivesse telefonado

seria obrigado a um olá e a um adeus

mas olhando nos olhos

e sem divórcio ou fiasco

mudaste em treze segundos meu estado civil

desarrumando a vida

que eu tinha inventado

Sugestão para estudo

           Extraída do volume De cara lavada, cuja leitura recomendo com entusiasmo, esta poesia (sem título, como todas as demais que integram o livro) tem um tom ao mesmo tempo amargo e irônico, sendo que a ironia funciona como uma espécie de analgésico contra a dor da separação. Ao trabalhar a poesia, há que se levar em conta também o fator tempo, que sem dúvida tem o poder de amenizar o peso de recordações penosas.

O jardim das cerejeiras

Anton Tchecov

Lopakhin - Sim, fui eu. Um minuto, esperem um pouco, estou com a cabeça tonta, nem posso falar direito. (Ri) Quando chegamos para o leilão, o Deriganov já estava lá. Leonid Andreievitch só tinha 15 mil rublos, o Deriganov foi logo oferecendo 30 mil, além das dívidas. Vendo isso, me atraquei com ele, ofereci 40; ele, 45; eu, 55. Ele ia subindo 5 mil de cada vez e eu subia 10 mil. E acabou. Dei 90 mil, além das dívidas, o martelo bateu pra mim! O jardim das cerejeiras é meu agora! Meu! (Ri às gargalhadas) Santo Deus! Vocês podem dizer que eu estou bêbado, maluco, que estou sonhando. (Bate com os pés) Mas não riam de mim! Se meu pai e meu avô saíssem da cova para ver tudo isso que aconteceu, para ver como seu Iermolai, que levou tantas surras, que andava descalço na neve, como um miserável, analfabeto Iermolai comprou a fazenda mais linda que há neste mundo! Comprei a fazenda onde meu pai e meu avô foram servos, não podiam entrar na cozinha! Vai ver que estou dormindo, sonhando, só pode ser mesmo um sonho! (Ouve-se a orquestra afinando os instrumentos) Toquem, maestros, eu quero ouvir! Venham todos ver como Iermolai Lopakhin vai sentar o machado nas cerejeiras, venham ver as árvores caindo! Vamos construir casas aqui. E nossos netos e bisnetos hão de ver surgir uma vida nova! Música! Vamos!

Sugestão para estudo

           Esta cena, que ocorre no final do 3º ato, é a mais dramática desta obra-prima de Tchecov. Filho e neto de servos, e atualmente rico comerciante, Yermolai Lopakhin acaba adquirindo a fazenda de Liubov Andreievna, após tê-la advertido várias vezes de que vender a propriedade era a única saída para saldar suas dívidas. A grande dificuldade desta passagem, aqui um pouco reduzida, reside na dualidade de emoções do personagem. Se por um lado ele está orgulhoso de seu feito, por outro sabe o que ele representa para aquela família, a enorme dor de ter que se desfazer da fazenda, símbolo de uma aristocracia decadente que será irremediavelmente substituída pela burguesia ascendente. O ator, ao representar este monólogo, deve imaginar que está rodeado pelos membros da família, que acompanham atônitos os fatos que ele narra.

(Para entender melhor o contexto, recomendamos a leitura da peça, à disposição no nº 163 dos Cadernos de Teatro)


18 de julho

Goethe

           Wilhelm, o que seria de nosso coração num mundo sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica sem luz! Mal você coloca a lâmpada lá dentro, aparecem as imagens multicoloridas em sua parede branca! E mesmo que isso não passe de uma ilusão passageira, continuará fazendo a nossa felicidade, sempre que estivermos diante dela, como jovens inocentes, encantados com as maravilhosas aparições. Hoje não pude ir à casa de Lotte, impedido por uma reunião inevitável. Que fazer? Mandei o meu criado até lá, só para ter alguém ao meu lado que tivesse estado perto dela hoje. Com que impaciência o esperei, com que alegria o vi chegar! Teria agarrado-o pela cabeça e beijado-o, se a vergonha não tivesse me impedido.

Dizem que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e depois brilha algum tempo durante a noite. Foi isso que aconteceu com o rapaz. A sensação de que os olhos dela haviam pousado em seu rosto, nas suas faces, nos seus botões e na gola de seu sobretudo, tornava-o, para mim, tão sagrado, tão precioso! Nesse momento, não teria vendido o rapaz nem por mil táleres. Senti-me tão bem em sua presença. Deus queira que você não ria disso. Wilhelm, é ilusão quando nos sentimos felizes?

Sugestão para estudo

          O trecho foi extraído de Os sofrimentos do jovem Werter, considerado o mais famoso romance da literatura alemã. Escrita em forma de cartas, a obra gira em torno de uma grande paixão, cujo limite é a própria morte. Aqui, o protagonista escreve a um amigo tentando transmitir seu estado de absoluta felicidade, motivada pela paixão que sente por Lotte. Portanto, o que importa é tentar ao máximo transmitir o arrebatamento do personagem, expresso de forma ao mesmo tempo simples e magistral pelo gênio alemão.

Fragmento de um discurso insano

Lionel Fischer

           Os assassinos vasculham os becos. Colam-se às paredes das esquinas à espera de possíveis vítimas. Os policiais sentem cheiro de sangue, que os desperta de seu tédio e os lança à ronda. E nada mais importa. Todos cedem seus lugares para que o estranho espetáculo se consume. Do outro lado do muro, gêmeos vitelinos se olham cheios de medo e ódio. E se ameaçam com alfinetes de prata. As senhoras dormem abraçadas a seus maridos à espera de que sonhos as libertem. E as mocinhas se masturbam com seus cães de caça. E meus olhos brilham e enchem de luz essa cidade morta. Esses caminhos gastos que desconhecidos percorrem arrastando suas próprias vidas. E que conduzem a nada. Um vagabundo demente, bêbado e miserável conta sua história. Se confessa inocente dos crimes imputados e faz escárnio dos homens. Nesse momento, as almas sujeitas à humilhação constante, os pequenos homens indefesos, dançam uma dança lenta e irreal. E cantam músicas que pouca gente conhece. É a hora em que os murmúrios se insinuam pelos cantos. Pelas escadarias de cobre. Pelas consciências adormecidas. Intactas. Na noite ainda e por um breve instante, ele sorriu de frio e se encolheu de nojo. Rodou as quadras e quebrou as lâmpadas. Promoveu tumultos e insultou os donos. E já de manhãzinha ele caiu de quatro. E se sentiu só. Para que a platéia risse e cuspisse de prazer na nuca dos vizinhos. Para que gengivas se arreganhassem e descobrissem dentes verdes, cheios de limo. E no final de tudo, nada além de um rosto de vidro que se debruça sobre as folhas. E se estende, exausto, em seu leito de improviso. E chora de raiva diante de todo esse engano. Mas um dia, o animal feroz, encurralado, se libertará. Não para uma caminhada tranqüila, mas rumo à autodestruição. Numa revolta breve e inconseqüente, que não servirá de modelo ou ganhará adeptos. Mas que nos dará paz. Ao menos isso...Paz.

Sugestão para estudo

          O presente texto retrata a impressão que tive, numa fria noite de inverno em Paris, em 1977, de um homem meio maltrapilho que ficou me observando durante um certo tempo, enquanto eu, por minha vez, observava o Sena. Não se trata, portanto, de um personagem, no sentido óbvio do texto, e este não passa de uma especulação de minha parte. Mas o aluno pode imaginar uma figura estranha, o ar meio enlouquecido, que talvez pudesse estar pensando algo como o formulado.

_________________________





Nenhum comentário:

Postar um comentário