segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O que o ator dá ao dramaturgo

Eric Bentley


          O que é que a representação acrescenta a uma peça? Muitas coisas. Mencionarei, primeiro, uma das mais simples, mas não a menos interessante: os olhos dos atores encontram-se. Isso provavelmente não é verdade a respeito de alguns teatros mais antigos e de alguns dos orientais, mas no moderno teatro ocidental é uma característica bem estabelecida, se não essencial. Embora alguns a considerem um produto do Método Stanislavsky, ou mesmo do cinema, é possível de fato localizar suas origens muito antes. Há, por exemplo, um comentário do século XVIII sobre a atriz Clive, que diz o seguinte:

          Garrick queixou-se de que ela o desconcertava não olhando para ele durante a ação e esquecendo-se de observar o movimento do olhar; uma prática que ele tinha a certeza de observar com outras. Receio bem que essa acusação seja, em parte, verdadeira, pois a Sra. Clive consentia que seus olhos divagassem...

          Observe-se a representação de qualquer cena íntima entre um homem e uma mulher - digamos, a última cena de Pigmaleão. Podemos imaginar que um grego antigo ou um mais recente fã do teatro clássico chinês ou Kabuki encontraria na nossa representação de Pigmaleão uma falta de formalismo e de padrão, sem darmos um significado especial ao movimento dos pés nem uma beleza particular à maneira como o corpo se movimenta ou parece quieto.

          "Mas eles não fazem nada!", diria qualquer um desses visitantes, "apenas olham alternadamente um para o outro e para os lados". E isso é essencialmente verdadeiro. Representar, em tal caso, redundou em concentrar-se nos olhos. E os olhos estão sujeitos a esse paradoxo fisiológico: prosseguir olhando neutraliza o olhar. Para continuar olhando, é preciso interromper a olhada e depois olhar de novo; daí, nas sucessivas interrupções, todas as olhadas para os lados.

          Um olhar é mais dinâmico quando está começando do que quando realmente acontece; e, tendo acontecido, diminui para um fitar arregalado e pétreo ou um contemplar sentimental. Estre pessoas, um olhar tem sua conclusão quando é retribuído. O encontro de olhos constitui uma espécie de centro de comunicação humana. O contato estabelecido é mais pessoal que o tato. O que é comunicado pode-se prestar a dúvidas, mas o que não está em dúvida é a vivacidade das linhas de comunicação.

          No palco, trata-se da vivacidade dos atores, que eles acrescentam à vida muito menos diretamente física do texto. Os espectadores que talvez tivessem dificuldade com o texto escrito não têm nenhuma ao reagirem fisicamente, por empatia, aos olhares mútuos dos atores. O palco, que transmite coisas fisicamente, neurologicamente, sensualmente, é um grande instrumento de popularização legítima. Inversamente, o espectador superliterário que apreendeu com a maior facilidade as idéias de Bernard Shaw, talvez não tenha vivido plenamente o dramatismo de uma cena shawiana enquanto a não tiver recebido também dos lábios dos atores, através dos corpos dos atores, especialmente, através dos olhos dos atores.

          Usualmente quando dizemos que vimos alguma coisa pelos olhos de outra pessoa, estamos apenas aludindo aos olhos do espírito. No teatro, os olhos dos atores guiam-nos através do labirinto das cenas; e tudo que nos une aos olhos dos atores é o magnetismo do olhar. No teatro, talvez não sejamos guiados pelo instinto: somos levados pelos olhos.

          Se uma peça, no teatro, mostrar ser alucinatória em sua vivacidade, será o ator que, finalmente, a levou até esse nível de intensidade, acrescentando à peça, poderíamos dizer, o seu retoque final. Se um papel for esquelético - e sobre isso falarei mais adiante - também o ator poderá colocar alguma carne sobre os ossos. Alguns atores passam a vida fazendo isso para autores ineficientes. Se forem estrelas, ouvimos muitas vezes fazerem-se-lhes alusões depreciativas como meras personalidades. A depreciação está deslocada, porquanto a "mera personalidade", na acepção aqui sugerida, é exatamente o que as circunstâncias requerem.

          Uma boa peça também pode ter o que os leitores de romances consideram personificações fracas. Se não precisam de substância, é porque a peça sobrevive pelo seu enredo ou por uma combinação de enredo, estilo e tema. Aquilo com que o ator pode contribuir para uma boa peça não é o preencher suas lacunas - poderá não haver nenhuma - mas intensificar seus efeitos. Stanislavsky tem razão: é fundamentalmente uma questão de ser capaz de "viver" no palco. E Stanislavsky supôs corretamente que o que a maioria das pessoas faz no palco não está vivo. Falta a projeção e, no palco, não projetar é não viver.

           Pirandello assinala argutamente  esse contraste em Seis Personagens, quando duas das personagens falam sem projetar sua vozes porque na vida real as pessoas não projetam a voz. O resultado é que essas personagens não estão vivas no teatro. Ora, a projeção da voz é uma questão comparativamente mecânica e não se segue que, se a voz fôr projetada, toda a representação tenha "projeção". Temos de aceitar que, neste caso, Pirandello oferece a parte pelo todo. "Viver" no palco significa fazer algo mais do que viver fora do palco; significa emitir vida, torná-la audível e visível, fazer dela um projétil que é lançado sobre o público, atingindo até as últimas filas do balcão. Disse Jean Cocteau: "O problema não é levar vida para a o palco, mas fazer que o palco viva".

          O que o ator intensifica quando nós, na platéia, temos uma "alucinação", é a ilusão. É essa a maneira de representar da tradição clássica, que no século atual encontrou um porta-voz em Stanislavsky. O que os atores cômicos intensificam não é a ilusão, mas a agressão. (A tradição cômica foi recentemente renovada pelo mais agressivo dos dramaturgos - Brecht). A agressão cômica pode adquirir a forma de sátira e ser chamada realista, ou a forma bem humorada e encomiástica, caso esse em que merece a descrição de fantástica., Em qualquer dos casos, a contribuição fundamental do ator não é a mímica, mas a vitalidade.

          O que é, na verdade, aquela espécie limitada de representação tão eficazmente praticada por amigos nossos, em reuniões à maneira de imitação maliciosa? O grau de semelhança com que imitam é uma questão secundária, comparada com o grau de malícia que põem na imitação. Uma ligeira observação bastará, desde que muita fantasia e malícia sejam acrescentadas. Neste caso, a fantasia e a malícia são os veículos da vitalidade. 

          Em primeiro lugar, a representação é testemunho, na arte dramática, não do seu caráter imitativo, mas do seu caráter exagerativo. O dramaturgo é um imoderado. Gosta de impelir seus efeitos até os limites extremos. O ator ajuda-o e secunda-o, acrescentando pólvora à bomba. O grande ator parece-se com as grandes peças em que, por baixo da calma formal que deve ser o seu aspecto normal, faz sentir uma violência imensa. A impressão dada é a de viver a uma grande velocidade. E talvez seja isso, como disse Hebbel, o que sucede ao ator - "vive em velocidade, numa velocidade inimaginável". 

          A idéia de Hebbel é útil para a compreensão de toda a arte dramática. Em vez de descrever o teatro como uma forma resumida, abreviada, como se alguma coisa lhe estivesse faltando, deveríamos citá-lo como uma arte em que se percorre mais terreno em menos tempo.
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Extraído de A experiência viva do teatro, Zahar Editores, 1963.





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