segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Teatro/CRÍTICA

"A serpente"

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Nelson Rodrigues em belíssima versão


Lionel Fischer


"Dois casais vivem no mesmo apartamento, em quartos separados por uma parede. A peça tem início com a separação de um dos casais, concretizada com a partida violenta de Décio, que nunca conseguira satisfazer sexualmente a mulher, Lígia. A tristeza de Lígia é intensa e ela deseja se matar, pois mesmo após um ano de casada ainda era virgem e infeliz. Mas a semente do conflito que move a história começa quando a sua irmã Guida propõe emprestar-lhe o próprio marido, Paulo, por uma noite. Este fato cria o triângulo e inicia a tensão entre as irmãs, que passam a disputar o amor do mesmo homem. Com a tensão crescente, aumenta o risco da obsessão e ciúme transformarem-se em morte. Paulo mantém as duas sob seu controle até o momento em que a situação torna-se insustentável e o triângulo rompe-se de forma trágica".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Daniella Cavalcanti, o trecho acima resume o enredo de "A serpente", peça em um ato de Nelson Rodrigues escrita em 1878 e levada à cena pela primeira vez em 1980, com direção de Marcos Flaksman. Mais recente produção do grupo Os Dezequilibrados, a peça pode ser assistida na Caixa Cultural Rio de Janeiro - Teatro Nelson Rodrigues. Ivan Sugahara assina a direção da montagem, que tem elenco formado por Saulo Rodrigues (Décio), Carolina Ferman (Lígia), Ângela Câmara (Guida) e José Karini (Paulo).

Costuma-se dizer que para o Inferno vão não apenas os que faleceram impregnados de pecados, mas também pessoas bem intencionadas que, desgraçadamente, geraram efeitos funestos com suas boas intenções. Talvez seja o caso de Guida. Consternada com o sofrimento da irmã, oferece-lhe o marido por uma noite, visando apenas saciar sua brutal carência. No entanto, não foi sagaz o suficiente para imaginar que seu ato de extremo amor e  generosidade poderia gerar uma avassaladora paixão entre Lígia e Paulo. E quando esta se torna incontestável e irreversível, as irmãs convertem-se em adversárias ferozes, ainda que se perceba que, apesar de tudo, um grande amor ainda as une.

Contendo ótimos personagens, diálogos maravilhosamente construídos e uma sucessão de ações que dispensam qualquer tipo de preparação, "A serpente" recebeu excelente versão cênica de Ivan Sugahara. Tudo no espetáculo ocorre de forma visceral, tanto nas passagens mais violentas quanto naquelas em que o ritmo é menos acelerado, mas nem por isso menos intenso. Cumpre também ressaltar a beleza e expressividade das marcações, que invariavelmente traduzem as mais profundas emoções em causa.

Com relação ao elenco, o rendimento dos quatro intérpretes é irretocável. Na pele de Décio, e ainda que em participação menor do que a de seus colegas de cena, Saulo Rodrigues materializa todo o furor de um homem impotente, que só mais tarde consegue consumar o ato com uma prostituta, a "crioula de ventas triunfais" - esta cena é realizada no escuro, só nos chegando os sons do encontro entre ambos. Vivendo Guida, Ângela Câmara exibe desempenho irretocável, tornando convincentes tanto os momentos amorosos e doces de sua personagem como aqueles em que, dilacerada pela dor e pelo ciúme, converte-se num ser disposto a cometer qualquer desatino.

A mesma eficiência se faz presente na performance de Carolina Ferman. Atriz ainda muito jovem, Carolina me parece pertencer ao seleto grupo de intérpretes que age como se cada apresentação fosse a última. Entrega-se por inteiro, sem qualquer pudor, a todas as emoções em causa, vivendo-as como se estivesse possuída pelo furor das grandes tempestades. Exibindo presença, carisma e excelente preparo vocal e corporal, Carolina Ferman evidencia todas as condições para fazer uma belíssima trajetória artística. Quanto a José Karini, sua atuação como Paulo sem dúvida contaria com a aprovação do autor: seu Paulo é canalha, puro, obsceno, mentiroso e verdadeiro, doce e violento, enfim, um mar de contradições, que o ator explora com a intensidade que o papel exige.

Na equipe técnica, Desirée Bastos assina uma cenografia instigante, um tanto abstrata, mas que lembra um jardim - seria uma metáfora do Jardim do Éden, do qual Adão e Eva foram expulsos, tentados pela serpente? E seus figurinos são igualmente notáveis, em especial no tocante ao das irmãs, cujas roupas sugerem meninas e sabiamente são idênticas, o que me induziu a pensar que tentou transmitir a ideia de que, uma vez tomadas pela mesma paixão, as pessoas acabam se tornando uma só. Renato Machado responde por uma iluminação muito expressiva, cabendo destacar as súbitas mudanças quando os personagens empreendem uma espécie de monólogo interior, que Nelson Rodrigues chamava de "ária". Igualmente irrepreensível a trilha sonora de Ivan Sugahara, cabendo ainda destacar a maravilhosa preparação corporal de Paula Maracajá, sem a qual certamente os atores não exibiriam performances tão brilhantes.

A SERPENTE - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Ivan Sigahara. Com o grupo Os Dezequilibrados. Teatro Nelson Rodrigues. Quinta a domingo, 19h.   

Um comentário:

  1. Nossos mais negros segredos ficam escondidos em nossas almas,é no teatro que eles vem à tona através de personagens que acabam por tocar em nosso lado negro e expô-lo como atuação. Mas até que ponto o ator não esconde aquele sentimento, aquele desejo externado pela sua personagem? É a catarse emocional... A peça deve ser excelente, sorte a todos. Abraços!

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