sexta-feira, 15 de junho de 2012

Teatro/CRÍTICA

"O beijo no asfalto"

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Excelente versão de um clássico 


Lionel Fischer


Arandir beija um homem que agoniza depois de ser atropelado. Mancomunadas, a imprensa e a polícia resolvem tirar proveito do incidente. Os jornais dobram sua tiragem e o escrúpulo é deixado de lado. Arandir é acusado de trair sua mulher com o atropelado, os policiais forjam um caso entre eles. Atormentada, Selminha volta-se contra o marido. Mulher, sogro e sociedade o acusam. Aprígio aconselha sua filha a abandonar Arandir. No fim da peça, no entanto, vemos que a razão de tal conselho é o amor que o sogro nutre pelo genro...

Eis, em resumo, a trama de "O beijo no asfalto", um dos melhores textos de Nelson Rodrigues, escrito a pedido da atriz Fernanda Montenegro e levado à cena pela primeira vez em 1961. Agora a peça agora pode ser assistida no Mezanino do Espaço Sesc, sob a direção de César Rodrigues e com elenco formado por Augusto Garcia, Caetano O'maihlan, Fernanda Boechat, Giordano Becheleni, Letícia Cannavale, Mariah Rocha, Cristiano Garcia, Roberto Bomtempo, Thiago Mendonça, Van Loppes e Xando Graça. 

Verdadeiro libelo contra a hipocrisia e a intolerância, o texto também aborda muitos outros temas. Mas talvez o principal seja o poder avassalador da imprensa de manipular fatos de acordo com seus interesses - no caso, totalmente sórdidos. É evidente que Arandir, ao beijar o atropelado, nada mais fez do que exibir sua piedade e compaixão. No entanto, o repórter Amado Ribeiro - que existiu e era um crápula - aproveitou-se do incidente para adiar a falência do jornal em que escrevia.

Contendo ótimos personagens, diálogos extraordinários e uma ação que prende a atenção do espectador desde o início, "O beijo no asfalto" recebeu ótima versão de César Rodrigues. Impondo à cena uma dinâmica áspera e eletrizante, estruturada apenas em torno de uma grande mesa, o diretor evidencia ter compreendido o essencial da obra através de um recurso de grande teatralidade: à medida que o texto avança, o espaço vai sendo tomado por pilhas de jornais, ótima metáfora do poder invasivo e sufocante da imprensa.

Com relação ao elenco, Augusto Garcia faz um Arandir sincero, perplexo e cada vez mais atormentado. Mas me parece que em suas cenas finais - a primeira com Dália, irmã de Selminha, e a segunda com Aprígio, seu sogro - o ator deveria estar em um estado bem mais enlouquecido, tamanha é a sua angústia. Na pele de Aprígio, Roberto Bomtempo exibe mais uma vez suas exepcionais qualidades de intérprete, extraindo do personagem tanto a sua virulência e intolerância quanto o desespero de sua paixão por tanto tempo recalcada.

Letícia Cannavale materializa uma Selminha irrepreensível, conferindo credibilidade tanto à sua paixão pelo marido quanto sua posterior aversão por ele. Mariah Rocha faz uma Dália convincente, mas acredito que a atriz deva prestar mais atenção no tocante à sua voz, quase sempre trabalhada num registro muito agudo. Vivendo o Delegado Cunha, Caetano O'maihlan convence plenamente na pele de um personagem truculento e abjeto, sendo eficientes as participações de Cristiano Garcia (Werneck), Giordano Becheleni (Investigador Aruba/ Barros),Thiago Mendonça (Pimentel),Van Loppes (D. Matilde) e Fernanda Boechat (D. Judith / Viúva) - esta última demonstra, de forma irrefutável, que pequenos papéis podem ser extremamente valorizados.

Quanto a Xando Graça, estamos diante de um ator que, em minha opinião, demonstra que não se faz necessário ter nascido com um talento exepcional para se construir uma carreira sólida e interessante. É óbvio que Xando Graça tem talento, mas certamente em medida inferior ao de nossos maiores intérpretes. No entanto, graças à sua inteligência, estudo e tenacidade, vem colhendo êxitos incontestáveis. No presente caso, sua performance como Amado Ribeiro é simplesmente extraordinária, com o ator conseguindo materializar as principais características do personagem: sua total falta de escrúpulos, violência, cinismo e, acredito eu, uma asquerosa psicopatia. Sob todos os aspectos, uma das atuações mais brilhantes da atual temporada.

Na equipe técnica, Aurélio de Simoni criou uma iluminação da mais alta expressividade, contribuindo de forma decisiva para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo. Dani Geammal assina uma cenografia despojada e ao mesmo tempo belíssima, com Thiago Mendonça respondendo por figurinos impecáveis no tocante à época e condição social dos personagens.

O BEIJO NO ASFALTO - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de César Rodrigues. Com Roberto Bomtempo, Letícia Cannavale, Xando Graça e grande elenco. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h. 

    

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