segunda-feira, 14 de maio de 2012

Pequeno dicionário
de palavras simples

Augusto Boal


Herói Trágico - como explica Arnold Hauser, no começo, o teatro era o Coro, a massa, o povo. Este era o verdadeiro protagonista. Quando Thespis inventou o protagonista, imediatamente aristocratizou o teatro, que antes existia em suas formas populares de manifestações massivas, desfiles, festas etc. O diálogo Protagonista-Coro era claramente o reflexo do diálogo Aristocrata-Povo. O herói trágico, que passou depois a dialogar não só com o Coro mas também com seus semelhantes (deuteragonista e tritagonista), era apresentado sempre como um exemplo que devia ser seguido em certas características, mas não em outras. O herói trágico surge quando o Estado começa a utilizar o teatro para fins políticos de coerção do povo. Nós não podemos esquecer de que o Estado, diretamente ou através de mecenas, pagava as produções.

Ethos - o personagem atua e a sua atuação apresenta dois aspectos: ethos e dianóia. Juntos, constituem a ação desenvolvida pelo personagem. São inseparáveis. Porém, para fins didáticos, poderíamos dizer que o ethos é a própria ação e a dianóia a justificação dessa ação, o discurso. O ethos seria o próprio ato e a dianóia o pensamento que determina o ato. Convém esclarecer que o discurso é, em si mesmo, ação, e que, por outro lado, não pode existir ação por mais física e retrita que seja, que não suponha uma razão. Podemos igualmente definir o ethos como o conjunto de faculdades, paixões e hábitos.

No ethos do herói trágico, todas as tendências devem ser boas, menos uma! Todas as paixões, todos os hábitos do heróis trágico devem ser bons, menos um! Bons ou maus segundo que critéios? Segundo os critérios constitucionais, que são os que sistematizam as leis, isto é, segundo os critérios políticos, pois a política é a arte soberana. Apenas uma tendência deverá ser má, reprovável, condenável. Somente uma paixão, um hábito, poderá ser contra a lei. Esta característica má chama-se harmatia.

Harmatia - é também conhecida como falha trágica. É a única impureza que existe no personagem. A harmatia é, portanto, a única coisa que pode e deve ser destruída, para que a totalidade do ethos do personagem se conforme com o ethos da sociedade. Nesta confrontação de tendências, de ethos (social e individual) a harmatia é a causadora do conflito. É a única tendência que não se harmoniza com a sociedade, com o que quer a sociedade.

Empatia - quando o espetáculo começa se estabelece uma relação entre o personagem (especialmente o protagonista) e o espectador. Esta relação tem características bem definidas: o espectador assume uma atitude passiva e delega o poder de ação ao personagem. Como o personagem se parece a nós mesmos, como indica Aristóteles, nós vivemos, vicariamente, tudo o que vive o personagem. Sem agir, sentimos que estamos agindo; sem viver, sentimos que estamos vivendo. Amamos e odiamos quando odeia e ama o personagem.

A empatia não ocorre apenas em relação aos heróis trágicos: basta observar uma sessão matinê de far west, ou os espectadores infantis de uma série de bang-bangs pela televisão, ou os olhares enternecidos dos espectadores mais adultos quando o casal se beija antes do happy-end. Trata-se aí de pura empatia. A empatia nos faz sentir como se estivesse se passando com nós mesmos o que no palco ou na tela está se passando com os personagens. Torna nossos, emoções e pensamentos alheios.

A empatia é uma relação emocional entre personagem e espectador. Uma relação que pode ser constituída, basicamente, de piedade e terror, como sugere Aristóteles, mas que pode igualmente incluir outras emoções, como sugere o próprio Aristóteles, e que poderão ser o amor, a ternura, o desejo sexual (como no caso de muitos e muitas artistas de cinema em relação aos seus respectivos fã-clubes), etc.

A empatia opera fundamentalmente em relação ao que o personagem faz, à sua ação, ao seu ethts. Mas existe igualmente uma relação empática diano-ética: dianóia (personagem) - razão (espectador), que equivale à relação ethos-emoção. O ethos estimula a emoção, a dianóia estimula a razão.

Para a seqüência do nosso raciocínio é preciso que fique claro que as emoções empáticas básicas de piedade e terror se estabelecem a partir de um ethos que revela tendências boas (piedade pela sua destruição) e uma tendência má, uma harmatia (terror, porque também nós a possuímos).

Estamos agora prontos para compreender o funcionamento do esquema trágico, e sua enorme importância política.

Como funciona o sistema trágico
coercitivo de Aristóteles

Começa o espetáculo. Apresenta-se o herói trágico. O público estabelece com ele uma forma de empatia.

Começa a ação trágica. Surpreendentemente, o herói revela uma falha no seu comportamento, uma harmatia e, mais surpreendentemente ainda, revela-se que em virtude dessa harmatia o herói alcança a felicidade que agora ostenta. Através da empatia, a mesma harmatia que o espectador possui é estimulada, desenvolvida, ativada.

Subitamente, acontece algo que tudo modifica. Édipo, por exemplo, é informado por Tirésias de que o assassino que ele procura é ele mesmo. O personagem que com sua harmatia havia subido tão alto, corre o risco de cair dessas alturas. Isto é o que a Poética qualifica de PERIPÉCIA: uma modificação radical no destino do personagem. O espectador que até então teve a sua própria harmatia estimulada, começa a sentir crescer seu terror. O personagem inicia seu caminho para a desgraça. Creonte é informado da morte de seu filho e de sua mulher; Hipólito não consegue convencer seu pai de sua inocência, e este o impuliona, sem querer, à morte.

A peripécia é importante porque faz com que seja mais longo o caminho da felicidade à desgraça. Quanto mais alto o coqueiro maior é a queda, diz a canção popular. Mais impacto se cria por esta via.

A peripécia que sofre o personagem se reproduz igualmente no espectador. Porém poderá também ocorrer que o espectador acompanhe o personagem empaticamente até a peripécia e que se desligue do mesmo a partir daí. Para evitar que isso aconteça, o personagem trágico deve passar igualmente pelo que Aristóteles chama de ANAGNORISIS, isto é, pela explicação, através do discurso, de sua falha e do reconhecimento dessa falha como tal. O herói aceita seu próprio erro, confessa seu erro, esperando que, empaticamente, o espectador também aceite como má a sua própria harmatia. Mas o espectador tem a grande vantagem de que cometeu o erro somente de forma vicária: não tem que pagar por ele.

Finalmente, para que o espectador tenha presente as terríveis conseqüências de cometer o erro, não apenas vicária mas realmente, Aristóteles exige que a tragédia tenha um final terrível, ao que chama de CATÁSTROFE. Não se permitem happy-endings, embora não seja necessária a destruição física do personagem portador da harmatia. Alguns morrem, enquanto outros vêem morrer seus seres queridos. De qualquer forma se trata sempre de uma catástrofe em que não morrer é pior do que morrer (veja-se o caso de Édipo).

Estes três elementos independentes têm por finalidade última provocar no espectador (tanto ou mais que no personagem) a "catarse". Quer dizer: a purificação da harmatia, através de três etapas bem determinadas e claras:

Primeira Etapa - estímulo da harmatia; o personagem segue o caminho ascendente para a felicidade, acompanhado empaticamente pelo espectador.

Surge um ponto de reversão: o personagem e o espectador iniciam o caminho inverso da felicidade à desgraça. Queda do herói.

Segunda Etapa - o personagem reconhece seu erro: ANAGNORISIS. Através da relação empática dianóia-razão, o espectador reconhece seu próprio erro, sua própria harmatia, sua própria falha anticonstitucional.

Terceira Etapa - CATÁSTROFE: o personagem sofre as conseqüências de seu erro, de forma violenta, com sua própria morte ou com a morte de seres que lhe são queridos.

Catarse - o espectador, aterrorizado pelo espetáculo da catástrofe, se purifica de sua harmatia.
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Extraído de Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Editora Civilização Brasileira, 1975.

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