segunda-feira, 19 de março de 2012

Teatro/CRÍTICA

"Julia"

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Obra-prima em versão magistral


Lionel Fischer


Uma menina linda, feliz e graciosa, corre atrás de uma bola em um jardim esplêndido. Ela está em sua mansão. É filmada por seu pai. Em dado momento, a câmera enquadra o jardineiro negro e seu filho.
A voz do pai solicita que ambos saiam do quadro. Mas o lixo que recolhem permanece. Então, novamente a voz do pai se faz ouvir, solicitando que o entulho seja retirado. O filho do jardineiro, de forma um tanto atabalhoada, cumpre o que lhe ordenam. Corta.

Em seguida, vemos a mesma menina - talvez um pouquinho mais velha? - sentada num outro ponto do jardim. Ela tem uma flor em suas mãos. Mas seu humor já não é o mesmo. Ela pede que a filmagem seja encerrada. O pai não a atende de imediato. Ela insiste, dizendo querer ficar sozinha. Ainda não é atendida. Joga a flor num pequeno lago. Peixes avançam sobre ela. Corta.

Muitos anos depois. A menina Julia virou uma mocinha. Nos jardins de sua mansão está acontecendo uma festa. Uma festa dos empregados. Alguns dançam forró. Ela se aproxima do motorista negro de seu pai, filho do jardineiro. Convida-o para dançar. Ele inicialmente reluta, mas acaba cedendo. E então se inicia uma forte relação entre ambos, que acaba conduzindo a um desfecho trágico.

Estaríamos falando de "Senhorita Julia", obra magistral de August Strindberg? Certamente, ainda que puristas de plantão possam torcer seus desgraciosos narizes. Sim, o público que lotou as apresentações  deste espetáculo no Espaço Sesc, no ano passado, e que agora estão lotando o Espaço Cultural Sergio Porto, tiveram e estão tendo a raríssima oportunidade de entrar em contato com uma peça maravilhosa, aqui materializada mediante uma irrepreensível mescla de teatro e cinema.

Prêmio Shell de melhor direção de 2011, "Julia" tem adaptação e direção assinadas por Christiane Jatahy, também responsável pelo roteiro cinematográfico, com David Pacheco respondendo pela direção de fotografia. Do filme participam, com maior destaque, as atrizes Tatiana Tiburcio no papel da empregada e a atriz mirim Alice Gastal fazendo a menina. No palco e na tela, Julia Bernat faz a protagonista e Rodrigo dos Santos o motorista, com David Pacheco operando a câmera e orientando a filmagem.  

Por tratar-se de obra muito conhecida e encenada com frequência, não julgo necessário reproduzir seu enredo, detalhando todas as peripécias e reviravoltas da trama. Mas cumpre destacar o essencial, talvez a premissa básica do texto: a total impossibilidade (ao menos na opinião do autor) de pessoas de classes sociais diametralmente opostas estabelecerem uma relação que transcenda aquilo que as separa. Da mesma forma que água e vinho não se misturam, patrões e empregados também devem manter prudente distância. Em caso contrário, como acontece aqui e já dito acima, o único desfecho possível aponta para o trágico.

Com relação ao espetáculo, Christiane Jatahy poderia perfeitamente ter feito uma adaptação convencional do texto, quem sabe reduzindo-o um pouco, mas atendo-se somente à sua estrutura. No entanto, ao decidir mesclar teatro e cinema, desde logo fica perfeitamente clara sua primeira opção: colocar o espectador como uma espécie de voyeur  da trama - o espetáculo se passa num set de filmagem. E isto torna totalmente lícitos os eventuais olhares que Julia lança à platéia. E esta, em função da dinâmica cênica, também tem seu olhar conduzido pela montagem.

Em algumas passagens, os atores estão em cena. Em outras, estão em cena e também projetados em duas telas. Há momentos em que sabemos que estão no palco, mas só são vistos pelo olhar da câmera, quando se embrenham por um dos cômodos. Em resumo: nosso olhar é não apenas conduzido, mas sobretudo instigado: o que devemos priorizar? O que estamos vendo na realidade do palco? A realidade que o palco não raro nos oculta? E o que acontece quando aquele que dirige a cena diz "corta" e os atores desarmam por um breve instante? Isso nos afasta do espetáculo, arrefece nossa emoção? Ou, muito pelo contrário, a atiça cada vez mais?

Cada espectador, evidentemente, terá a sua resposta. Ou cultivará suas dúvidas com inenarrável prazer. Sim, pois sob todos os aspectos, estamos diante de uma direção originalíssima, que em nenhum momento sacrifica o original ao mesclá-lo com outra linguagem e ao colocá-lo no nosso tempo. Àqueles que não concordam, sugiro que se dirijam rapidamente, após o espetáculo, para a primeira pizzaria disponível e nela afoguem sua inveja em meio a chopes e conversas fúteis.

Com relação ao elenco, Alice Gastal faz maravilhosa participação na pele da menina Julia, o mesmo aplicando-se a Tatiana Tiburcio, que confere à empregada a dignidade e revolta inerentes à personagem. Rodrigo dos Santos exibe irretocável performance vivendo o empregado, conseguindo passar as principais características do papel: inicialmente sua relutância em aceitar a sedução de Julia e mais adiante sua virulência, ambição e finalmente seu caráter submisso e amedrontado.

Quanto a Julia Bernat, atriz de apenas 21 anos, esta se entrega de forma visceral à sua personagem, exibindo total compreensão da mesma e uma coragem que lhe permite, dentre tantas passagens marcantes, desnudar-se por completo na cena em que transa com seu serviçal - este momento é simplesmente deslumbrante, pois muito mais do que sentir prazer, a personagem se mostra bastante desnorteada, como se não estivesse entendendo muito bem a mecânica daquele ato em que é muito mais dominada do que domina, logo ela que, embora eventualmente frágil e perdida, não deixa de ser autoritária e dominadora. E Julia Bernat (assim como Rodrigo dos Santos) também trabalha de forma notável os silêncios, sempre preenchendo-os de múltiplos significados. Sem dúvida, uma atuação que nos autoriza a supor que estamos diante de uma jovem que tem tudo para se tornar uma das melhores atrizes de sua geração.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo e irrestrito entusiasmo as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta magistral e inesquecível empreitada teatral - Marcelo Lipiani (direção de arte e cenário), David Pacheco (direção de fotografia), Renato Machado (iluminação), Rodrigo Marçal (direção musical), Angele Fróes (figurino) e Dani Lima (orientação corporal).

JULIA. Texto de Strindberg. Adaptação e direção de Christiane Jatahy. Com Julia Bernat, Rodrigo dos Santos, Tatiana Tiburcio e Alice Gastal. Espaço Cultural Sergio Porto. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h. 





 

Um comentário:

  1. Maravilhosa peça, os olhares dos atores a platéia a troca, iluminação, divisão de palco, a troca de cenário, divisão de espaço, junto com o diálogo e o desfecho maravilhoso. Indico a todos.

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