sexta-feira, 30 de março de 2012

Kafka e a Crítica

Leandro Konder


          Quando Kafka morreu, em 3 de junho de 1924, poucas de suas obras haviam sido publicadas. Ele tinha publicado os contos de Contemplação, tinha publicado o primeiro capítulo do romance América (ou O Desaparecido), com o título de O Foguista, e este escrito lhe valera o único prêmio literário de sua vida - o prêmio Fontane de 1915 - sendo de se notar que tal prêmio só lhe foi concedido graças à desistência em seu favor do poeta Carl Sternheim.

          Tinha publicado, também, o conto A Condenação, fragmentos da Descrição de um Combate, a novela Metamorfose - que muitos consideram sua obra-prima - e Na Colônia Penal, além dos 14 contos do livro Um Médico Rural, que são: Um Médico Rural, O Novo Advogado, Na Galeria, Um Velho Manuscrito, Diante da Lei (que é a lenda contada pelo padre a Joseph K n'o Processo), Chacais e Árabes, Uma Visita à Mina, O Povoado mais Próximo, Uma Mensagem Imperial, Preocupações de um Chefe de Família, Onze Filhos, Um Fraticídio, Um Sonho e Relatório para uma Academia.

          Nas vésperas de sua morte, Kafka ainda fez a revisão das provas gráficas de um pequeno livro de sua autoria, contendo 4 narrativas: Um Artista da Fome, Uma Pequena Mulher, Josefina a Cantora ou O Povo dos Ratos e Primeiro Desgosto (ou O Artista do Trapézio).

           Todas as histórias de Kafka que não constam da relação acima são de publicação póstuma. Isso quer dizer que, entre outras, foram publicadas após a morte de Kafka as seguintes obras: O Processo, O Castelo, o texto integral de América, a peça O Guardião e o Túmulo, os contos d'A Construção da Muralha da China etc.

          A publicação das obras que Kafka deixou inéditas ao morrer se deve ao seu amigo Max Brod, que teve o bom senso de ser um testamenteiro infiel. Kafka lhe deixara a incumbência de queimar todos os seus escritos incompletos, os escritos que ele não chegara a publicar em vida, mas Brod desobedeceu à última vontade do amigo e preferiu publicar todos os escritos de Kafka, mesmo os incompletos, prestando, assim, um inestimável serviço à literatura mundial e à glória do escritor morto.

          Pelo serviço prestado à literatura mundial e à glória de Kafka, os admiradores da obra kafkiana devem ser gratos a Max Brod. Porém Brod também deu início, involuntariamente, a uma série de equívocos que a crítica literária, em geral, vinha alimentando até bem pouco tempo em torno dos livros de Kafka.

          Brod sempre foi, desde a juventude, um espírito religioso muito mais disciplinado do que Kafka: sempre foi um crente convicto. Chegou até a ter um atrito com Kafka, em 1914, porque este não se deixara impressionar pelo sionismo. Pois bem: confundindo os seus anseios subjetivos - o que ele queria que acontecesse - com a realidade objetiva da obra kafkiana, Max Brod procurou interpretar as histórias de Kafka como alegorias religiosas.

           Com isso, Brod estava sendo levado a sacrificar a riqueza e a diversidade das idéias que existem implicitamente nas obras de Kafka (ignorando a profundidade de suas dúvidas, o isolamento de sua posição intelectual) e estava, também, sem o perceber, transformando a ficção kafkiana em mera ilustração ou encenação de uma determinada ideologia religiosa.

          Os grandes artistas e os grandes escritores são sempre mais ou menos ilustradores de um sistema preconcebido de idéias, de qualquer religião ou filosofia. Dante Alighieri, o grande gênio da poesia italiana, sofreu uma profunda influência das concepções de Santo Tomás de Aquino, mas a sua obra básica - A Divina Comédia - não pode ser interpretada como uma mera ilustração do tomismo.

          No nosso século, o notável romancista francês Marcel Proust foi profundamente influenciado pelas idéias de Henri Bergson e, no entanto, não é razoável dizer-se que o principal livro de Proust - Em Busca do Tempo Perdido - seja uma mera ilustração da filosofia bergsoniana.

          Kafka sofreu diversas influências ideológicas: a do sionismo, a do filósofo existencialista dinamarquês Soren Kierkegaard, a do anarquismo. Nem por isso os sionistas, os existencialistas e os anarquistas podem pretender anexar a obra de Kafka às suas respectivas doutrinas, transformando-a em demonstração ilustrada de uma tese.

          O mal da interpretação de Max Brod - que tendia a reduzir a obra de Kafka à significação de uma parábola religiosa - é que ela inaugurou a moda de procurar uma "chave" para o acesso à ficção kafkiana. Em lugar de lerem as histórias de Kafka com espírito aberto e de procurarem se aproximar delas sem esquemas preconcebidos na cabeça, os leitores eram influenciados pelos críticos no sentido de encontrarem nelas uma "mensagem" que a crítica já lhes tinha previamente "traduzido". Assim, os leitores encontravam o que tinham ido buscar em Kafka a conselho da crítica e não o que Kafka realmente lhes oferecia.

          As "chaves" que a crítica literária ofereceu aos leitores desprevenidos, prometendo dar-lhes a posse da "significação" da obra de Kafka, foram muitas. Para Max Brod, a "chave" para a compreensão de Kafka era o sentido de alegoria religiosa de seus romances. As deficiências dessa "chave" foram logo postas a nu.

          Brod dizia, por exemplo, que o Castelo a que o agrimensor K quer chegar no romance O Castelo simboliza a graça, a redenção concedida por Deus. Mas neste caso não há como entender o caráter de burocracia antipática que Kafka atribuiu ao Castelo na descrição do seu funcionamento.

          A "chave" de Brod é empregada também por outros críticos e com o mesmo insucesso. Klaus Mann, por exemplo, interpreta a expulsão de Karl Rossmann da Europa ( no romance América) como uma versão moderna da expulsão de Adão do Paraíso: "o curso místico do Pecado Original acompanha-o na travessia do oceano".

          No entanto, em que é que este paralelo com Adão e o Pecado Original ajuda a compreender melhor as aventuras e desventuras do porbre Karl Rossmann? A "sedução" de Rossmann por uma empregada mais velha do que ele terá a mesma significação do Pecado Original praticado por Adão? As experiências vividas por Karl Rossmann na América terão, por acaso, alguma analogia com os acontecimentos ocorridos com Adão após a sua expulsão do Paraíso?

          Não tenhamos dúvidas: Rossmann e Adão são dois tipos bastante diferentes e suas histórias estão a léguas de distância uma da outra. Se a história de Karl Rossmann fosse uma reedição do velho mito de Adão, não valeria a pena ler América: era melhor continuar lendo a Bíblia.

          Uma "chave" diferente da de Max Brod mas que também tem sido muito recomendada pela crítica para a compreensão da obra de Kafka é a "chave" psicanalítica, que vê em toda a literatura kafkiana um esforço do escritor para se libertar da opressão paterna. Uma frase do próprio Kafka é invocada para servir de apoio a esta tese: Kafka teria confessado a Max Brod a sua intenção de intitular o conjunto das suas obras uma "tentativa de fuga para fora da esfera do pai".

          Mas semelhante idéia - que Kafka, aliás, não pôs em prática - é uma base bem precária para a defesa da "chave" psicanalítica. O conflito de Kafka com seu pai é uma manifestação do famoso "complexo de Édipo" estudado por Freud, dizem alguns críticos. No entanto, ao contrário do que ocorre na descrição freudiana clássica do "complexo de Édipo", o conflito de Kafka com o pai é vivido no plano da consciência clara, o escritor conhece e explicita perfeitamente as suas razões e nele não se manifesta a ação de exigências subterrâneas reprimidas, nem se manifestam impulsos cegos provenientes do inconsciente ou do subconsciente.

          O "Édipo" do complexo descrito por Freud odeia o pai porque ama a mãe e experimenta ciúmes inconfessados da concorrência paterna. Franz Kafka, porém, não se entendia com o pai porque o pai era um espírito autoritário e utilitário, representava um mundo comercializado que ele - como poeta - repelia. Seu conflito com o pai não era determinado por fatores inconscientes ou subconscientes: era determinado pela divergência fundamental que existia entre as idéias e os ideais de cada um deles.

          Kafka, de resto, nunca se deixou cegar por ódio algum em relação ao pai, nunca teve por este uma aversão passional: pelo contrário, sempre lhe reconheceu qualidades e méritos, sempre teve em face dele uma atitude equilibrada (que admitia até mesmo o afeto e a ternura).

          Além da "chave" teológica e da "chave" psicanalítica, ainda podemos falar em uma terceira: a "chave" médica. Para os críticos que se dispuseram a empregar esta última, a obra de Kafka está marcada pela doença, se explica pela tuberculose. Em seu exagero, alguns adeptos da "chave" médica chegaram a pretender explicar certos aspectos d'A Metamorfose e d'O Processo (obras escritas em 1913 e 1914-15) recorrendo a uma tuberculose que só veio a se manifestar em 1917!

          É evidente que todas essas "chaves" se referem a certos aspectos da obra de Kafka cuja existência ninguém pode pretender negar. Cada "chave" traz consigo uma verdade parcial; o mal delas é que, na medida em que se apresentam como "chaves", exageram a verdade parcial em que se baseiam e tendem a reduzir os múltiplos e variados problemas da obra de Kafka a problemas de um único tipo.

          A obra de Kafka não precisa de "chaves" para ser compreendida, porque é uma casa sem portas, na qual todos podem entrar. Com suas diversas "chaves", a crítica literária, em geral, contribuiu para dificultar a compreensão de Kafka pelo público leitor e chegou a criar uma falsa imagem de Kafka, apresentando-o como um autor muito difícil, coisa que ele não é.

          Desde que lhe proporcionem algumas informações sensatas a respeito da vida de Kafka, a respeito de seus problemas e preocupações fundamentais, a respeito da família e da situação social do escritor, o leitor comum pode ler, apreciar e compreender com facilidade as histórias de Kafka. O diabo é que a crítica, em lugar de fornecer essas informações sensatas - com as quais poderia, modestamente, ajudar o grande público a conhecer e admirar Kafka - se dedicou, em sua maior parte, a elaborar complicadas teorias metafísicas que só serviam para intimidar os leitores.

          Enrolados pelos críticos, os leitores já não experimentavam o prazer simples e espontâneo de ler a imaginosas e sugestivas histórias contadas por Kafka: eram convencidos de que a obra de Kafka possuía um caráter todo simbólico e tinham sua atenção desviada para a procura do equivalente teórico dos "símbolos" encontrados na obra.

          Mas ainda tem mais. Quando não apresentava "chaves" que tinham a pretensão de possibilitar a compreensão prévia do sentido da rica obra kafkiana a partir de um sistema de idéias preconcebidas, a crítica ainda fazia pior, dedicava-se a apresentar Kafka como um predestinado à solidão.

          O crítico francês André Blanchet pode nos servir de exemplo para ilustrar esse tipo de interpretação. Comparando uma fotografia de Kafka quando era criança com outra fotografia de Kafka já adulto, o crítico Blanchet enxergou em ambas "o mesmo desespero de homem", a mesma "doce cabeça de pássaro", uma cabeça de pássaro que se asfixiava com o ar que os demais homens podiam respirar normalmente...

           Para Blanchet, Kafka sempre foi um desesperado irremediável, mas foi lendo Kierkegaard que o infeliz autor tcheco tomou consciência de que "a solidão não é uma desgraça e muito menos um pecado: é uma vocação".

          A tese que apresenta Kafka como um predestinado à solidão não nos leva a compreender coisa alguma a respeito do drama de Kafka, pois transforma em "fatalidade" ou em "vocação inata" justamente aquele característica cuja origem deve ser insvestigada para ser devidamente entendida: a solidão do escritor, a situação em que ele se tornou solitário.

          Se Kafka fosse uma criatura de exceção, um solitário de nascença, o drama da sua solidão - transmitido nas suas histórias - não encontraria um eco tão profundo no coração de tantas centenas de milhares de leitores.
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Extraído de Kafka, Vida e Obra, José Alvaro Editor/Paz e Terra. Artigo postado em homenagem a Nina R., uma das pessoas mais apaixonadas por Kafka que conheço.

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