quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Trabalho do Ator Brechtiano

Odette Aslan


          Durante os ensaios, o comediante age lentamente. Ele conserva por muito tempo o texto na mão, não se apressa em decorá-lo, mas trabalha logo no palco. Estuda minuciosamente todos os aspectos da situação proposta. Interroga-se, formula objeções. Deverá mostrar ao espectador as alternativas oferecidas à personagem, e não se contentar em concordar de pronto com o sentido dado pelo autor.

          Quando esboça um gesto, profere uma frase, mostra a decisão da personagem, promove a subsistência de virtualidades. Além do que se decide fazer, há também o que se decidiu não fazer. O espectador deve aprender "sobre a personagem muito mais do que é dito no papel". Assim, a Polly (A ópera dos três vinténs) da cena de amor com Machesath, é também a filha de Peachum e sua empregada. Além disso, "suas relações com o público devem implicar uma crítica às representações convencionais que esse público tem das noivas de bandidos e das filhas de comerciantes etc."

          Para Brecht, a personagem não é fixada num molde definitivo, é uma criatura que se move. Assim, por que confiá-la a um determinado intérprete e não a outro? Em A Decisão, quatro atores desempenham sucessivamente "o jovem camarada" durante a peça. Brecht afirma que não distribui os papéis em função do físico, que é bom que os atores, nos ensaios, troquem os papéis; que os vejam ridicularizados até por um ator cômico, a fim de discernirem neles todos os aspectos possíveis, de não levarem a personagem demasiadamente a sério, de poderem rir dela. É uma espécie de auscultação coletiva da personagem.

          Brecht estudou cuidadosamente o Sistema de Stanislavski, interpretando-o à sua maneira. Ele o recusa, mas utiliza-o parcialmente, na medida em que o Sistema engloba verdades reconhecidas de todas as épocas pelos comediantes. Ele aprova, no Sistema, o jogo do conjunto, o superobjetivo, o cuidado com o detalhe, o conhecimento dos seres humanos, a reprodução a partir de uma observação verdadeira; ressalta em Stanislavski uma certa graça até na feiúra.

          Explora, por sua vez, as "ações físicas", ainda que sejam para ele ponto de referência para o estudo do papel e deixem de servir somente (como em Stanislavski) para sua construção realista. Brecht recusa no Sistema a continuidade da emoção (preferindo as inúmeras quebras do teatro épico) e a arte pela arte.

          A sinceridade, a verdade procurada por Stanislavski, interessa a Brecht somente se for socialmente útil. O ator não precisa retirar-se para dentro de si mesmo nem cultivar a alma, nem reviver emoções passadas. Ele está em cena para travar um combate útil à sociedade. Ao invés de "reviver", é essa noção de combate que, toda noite, diante de novos espectadores, vivifica a representação, que impede a representação de esclerosar-se.

          Trabalhando para que a sociedade se torne melhor, incitando o espectador a entabular a luta para que termine a desigualdade de classes, o ator brechtiano toma partido politicamente: ser imparcial em arte, diz Brecht, "significa que se pertence ao partido do poder". Essa orientação não impede o ator de continuar artista e cuidar minuciosamente de sua execução. O rigor não exclui o cuidado estético. Os deslocamentos em cena devem ser belos, os gestus apresentados com elegância. A própria coreografia pode tornar-se elemento de distanciamento.

          O processo, o móvel do jogo (com ou sem subtexto) que desencadeia um sentimento que desencadeia uma expressão, não existe em Brecht. O ator se dirige diretamente ao público, representa a situação, o detalhe, a contradição. Nos ensaios, lê em voz alta as rubricas (ele se levanta, ele se cala), juntamente com as falas, sempre com o objetivo de não se deixar levar pela situação.

          Em Antígona, Brecht escreveu de propósito versos de ligação para serem declamados nos espetáculos, para entrecortarem o diálogo, explicando a situação. Assim como no cinema se efetua uma parada na imagem, com freqüência ele obriga o ator a deter-se em um episódio, como se a peça terminasse aí. Cada cena existe em si mesma, não é uma simples transição para a cena seguinte. Entretanto, o ator indica a todo momento uma relação com a cena final, que ele conhece, enquanto o comediante tradicional se faz de inocente e finge descobrir as peripécias ao mesmo tempo que o espectador.

          No Berliner Ensemble os ensaios são longos: vários meses, às vezes um ano. Ao contrário do teatro comercial, Brecht fixa a data de estréia quando o espetáculo está realmente pronto, qualquer que seja o tempo exigido para tanto. O ator controla constantemente seu desempenho, permanece fiel ao que foi regulamentado. A cada fase do espetáculo ele parte do zero, vai de ruptura em ruptura sem nunca se embalar.

          Divide seu texto em argumentos separados a serem apresentados. Deve representar uma coisa após outra e não uma coisa a partir de outra. Não é levado, como no teatro tradicional, a respeitar um ritmo cênico artificial, acelerar arbitrariamente algumas passagens, de preferência até as ralentaria. O processo intelectual, declara Brecht, necessita de um tempo inteiramente diferente que o processo afetivo.

          O tempo é mais lento no teatro épico do que no dramático. É preciso dar ao espectador tempo para "pensar" as frases dos atores. Até mesmo um movimento de pressa pode ser executado com  lentidão, por exemplo, "a lenta entrada precipitada de um criado atrasado". Pode-se pensar que também aí a influência do teatro chinês se faz sentir.

          A inserção de projeções em telas, a intromissão da música, uma luz agressiva, concorrem para quebrar o jogo de desempenho. O comediante passa da prosa ao verso, do falado ao cantado. Há numerosas canções nas peças de Brecht, sem que jamais ocorra uma efusão lírica. As canções fazem parte das rupturas antiilusionistas do espetáculo, e a música aí nunca é fluida.

          O comediante não se toma por cantor. Mostra "alguém que canta". Ele sai da ação, dá alguns passos em direção à ribalta e apresenta o canto ao público. Às vezes fala "contra a música". Tampouco enfeita a dicção, evita o que Brecht chama "o ramerrão de igreja". Deve ter força, eficácia. Para exercitar sua voz, não faz exercícios mecânicos. Ele aprende a economizá-la, a não quebrá-la, embora permanecendo perfeitamente capaz de gritar, se necessário, com uma voz quebrada.


O GESTUS 

          É noção primordial no jogo brechtiano. Brecht ficava horrorizado com "os dois tostões de mímica" executados por atores alemães após alguns ensaios apressados. Exige que o ator selecione gestos capazes de exprimir uma atitude global, uma característica social. O gestus é uma tomada de posição em relação aos outros, "a expressão mimada das relações sociais que se estabelecem entre os homens em uma determinada época".

           Por exemplo: um homem ao se defender de um cão, isto pode significar "a luta que um indivíduo mal vestido deve manter contra os cães de guarda". Para o ator, o texto dito se decompõe em função do gestus. Para além do sentido de cada frase, o ator desvenda um gestus fundamental, preciso, que não pode "dispensar completamente o sentido das frases, mas que só o utiliza como meio".

          Uma peça é um conjunto de gestus, foi graças a ele que Brecht e Charles Laughton se comunicavam ao moldarem o papel de Galileu (um falando alemão e o outro inglês) e ambos se recusando a recorrer a explicações psicológicas. Sabe-se que o estabelecimento dos gestus em um espetáculo exige por si só longo estudo.

           O gestus se torna exemplar, e Brecht deseja que se queira ver de novo um espetáculo apenas para rever um gestus: a escolha de uma perna artificial para um mendigo em A ópera dos três vinténs, ou os passos demasiado grandes de Helene Weigel a medir o palco ao puxar a corroça em Mãe Coragem, ou o seu comportamento diante do filho morto que ela finge não reconhecer.

          Os gestos podem ser bruscos, sincopados, contraditórios. O ator deve poder "espaçar seus gestos como um tipógrafo dispõe as palavras no espaço; realizá-los de tal forma que seus gestos possam ser citados".

          Cenários, figurinos, acessórios e tudo o que constitui a encenação facilitam o jogo do ator e concorrem para a realização. Forma e dimensões dos elementos dos cenários e objetos utilizados são decididos durante os ensaios, em função do jogo. Os figurinos já estão lá, a iluminação já está pronta.

          No Berliner Ensemble, o ator é integrado num meio ambiente tão preparado quanto ele próprio. Espectadores são admitidos nos ensaios. Brecht acaba com o segredo dos bastidores, revela o seu trabalho. Nos espetáculos, mostra a maquinaria, realiza mudanças de cenários às claras. Tudo com precisão, sem mistérios.

          Os detalhes da encenação e da interprtação são ordenados num caderno de direção para cada peça: o Modellbuch, ilustrado com numerosas fotos que explicam o jogo. A partir desse Modellbuch deve ser possível reconstituir a representação tal como foi criada. Nos termos de Brecht, esse modelo não deve ser respeitado cegamente, ele deixa uma pequena folga.

          Entretanto, fora do Berliner Ensemble poucos comediantes de troupes souberam realizar representações verdadeiramente brechtianas. O que não foi transmitido por alguns, além do pensamento profundo, foi a alegria que Brecht levava ao jogo teatral, mesmo na era científica. Interpretando mal sua vontade de reflexão crítica, sua recusa do brilho de lantejoulas, muitos estreantes desviaram-se para um estilo de teatro árido, desagradável, não artístico e pouco acessível ao público.

          Pode-se, no entanto, verificar uma influência válida da idéia de distanciamento em encenadores como Giorgio Strehler ou Roger Planchon, a vontade de politizar o espetáculo, a busca do "cordão umbilical" entre o que se passa em cena e o que se passa no mundo, segundo a expressão de Kenneth Tynan. Pode-se ver em qualquer país o que Brecht obtinha de seus atores alemães.

          No Berliner, representa-se tudo com distanciamento, tanto peças escritas por Brecht, como escritas por outros autores. O ator formado dessa maneira não saberia atuar de outro modo. Rompido com outros estilos de representação, o comediante não pode acidentalmente adaptar-se a eles; isso exigiria, além de um grande esforço técnico, uma reversão total de seu comportamento.
________________
Extraído de O ator no século XX, Editora Perspectiva

Nenhum comentário:

Postar um comentário