quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Jardim das Cerejeiras*


de Anton Tchecov


1º ATO


Cenário - um quarto que ainda é chamado de “o quarto das crianças”. Madrugada.


(Entram Duniacha, com uma vela acesa, e Lopakhin, com um livro)


Lopakhin - Graças a Deus. O trem chegou. Que horas são?


Duniacha - Quase duas. (Apaga a vela) Já está clareando.


Lopakhin - Quantas horas de atrazo? Umas duas, pelo menos! Que diabo! Eu venho especialmente para ir buscá-las na estação e acabo ferrando no sono. Dormi, sentado na cadeira. Que vergonha. Mas você bem que podia ter me chamado.


Duniacha - Pensei que o senhor tinha ido embora. (Escuta) Acho que são eles...


Lopakhin - Não. Até tirar a bagagem e coisa e tal...Liubov Andreievna passou cinco anos no estrangeiro, nem sei como estará agora. Era uma ótima pessoa. Simples, punha a gente logo à vontade. Eu me lembro, quando era rapazinho, o meu falecido pai me deu um murro na cara e eu fiquei com o nariz sangrando - a gente veio à fazenda não sei mais pro que foi, ele tinha bebido. Liubov Andreievna - tô vendo ela agora, ainda mocinha, magrinha - me trouxe aqui dentro e lavou minha cara - aqui mesmo, no quarto das crianças. “Não chores, capiausinho, antes do seu casamento o narizinho já sarou”. Capiausinho...O meu pai era mesmo capiau e aqui estou eu agora, de colete branco e sapato amarelo. Saí da roda dos porqueiros, passei pra dos caixeiros. É. Fiquei rico, mas pensando bem, o que eu sou ainda é capiau. Fui lê esse livro e não entendi nada.


Duniacha - Os cachorros não dormiram a noite inteira. Já estão pressentindo que os donos vão chegar.


Lopakhin - O que é que você tem, Duniacha?


Duniacha - As minhas mãos estão tremendo. Acho que vou desmaiar.


Lopakhin - Você é muito manhosa, Duniacha. Vestida de patroa com esse penteado todo. Não tá direito. Cada qual tem que se pôr no seu devido lugar. (Entra Epihóvov, com um ramo de flores)


Epihódov - O jardineiro mandou. Disse que é pra pôr na sala de jantar. (Dá as flores a Duniacha)


Lopakhin - Quer me trazer um copo de vodka?


Duniacha - Sim senhor. (Sai)


Epihódov - Êta madrugada fria! Três graus abaixo de zero e as cerejeiras carregadinhas de flores. O nosso clima é uma barbaridade...Escute, Yermolai Alexeievitch: eu comprei estas botas anteontem e elas não páram de ranger. Será que não há um jeito qualquer?


Lopakhin - Não amola. Vai embora.


Epihódov - Todo dia me acontece uma desgraça. Não estou me queixando, já acostumei, até acho graça. (Duniacha volta com o copo de vodka). Bem, já vou indo. (Esbarra numa cadeira e a derruba) Tão vendo? Não tem jeito não...chega até a espantar!? (Sai)


Duniacha - O Epihódov me pediu em casamento.


Lopakhin - É?


Duniacha - Nem sei o que devo fazer. Ele é um rapaz sério, mas quando está falando a gente não entende nada! Ele fala bonito, com muito sentimento, mas é tão complicado. Eu até gosto dele, sei lá. E ele é louco por mim. Mas não tem sorte, a cada dia uma nova encrenca. Todo mundo zomba dele. Chamam ele de “não tem jeito não...”


Lopakhin (Escutando) - Agora parece que estão chegando.


Duniacha - Estão sim. O que é que tenho, estou tiritando!


Lopakhin - Vamos recebê-los. Será que ela vai me reconhecer?


Duniacha - Ai, eu vou desmaiar...(Entra Firs e adiante Liubov, Ânia, Carlota, Vária, Gaiev, Pichtchik, Lopakhin e Duniacha)


Ânia - Mamãe, lembra-se deste quarto?


Liubov - O quarto das crianças!


Vária - Que frio, estou com as mãos geladas! Os seus dois quartos, mãezinha, o branco e o lilás, continuam igualzinho!


Liubov - O quarto das crianças, meu quarto querio, tão lindo...eu dormia aqui quando era pequena. E agora virei criança outra vez. A Vária é sempre a mesma, parece uma freira!


Gaiev - O trem atrazou duas horas. O que é que vocês me dizem? A isto chamam ordem!


Carlota - O meu cachorrinho até come nozes!


Pichtchik - É mesmo? Não diga! (Saem todos, menos Ânia e Duniacha)


Ânia - Há três noites que não consigo dormir. Estou gelada!


Duniacha - Vocês saíram na Quaresma, estava nevando, fazia frio de verdade, mas agora...Meu bem! Que saudade de você, meu anjinho! Tenho de te contar logo de uma vez, não aguento esperar nem um minuto!


Ânia - Vai ver que alguém, outra vez...


Duniacha - O escrevente! O Epihódov, logo depois da Semana Santa, me pediu em casamento!


Ânia - Você não sabe falar noutra coisa.


Duniacha - Eu nem sei o que pensar. Ele está tão apaixonado!?


Ânia - Meu quarto, minhas janelas. É como se eu não tivesse ido embora nunca. Amanhã vou me levantar e correr para o jardim...Ah, se ao menos eu conseguisse dormir. Não preguei os olhos a viagem toda, estava tão preocupada.


Duniacha - Piotr Sergueievitch chegou anteontem...


Ânia - Pétia!


Duniacha - Está dormindo no pavilhão de banho. “Tenho medo de incomodar’, foi o que ele disse. E a Várvara Mikhailovna não quer que eu o acorde...(Entra Vária)


Vária - O café, Duniacha, depressa. Mãesinha está pedindo café.


Duniacha - Já vou. (E sai)


Vária - Graças a Deus vocês chegaram! Você, aqui em casa, comigo. Meu coração voltou, minha lindeza!


Ânia - Eu já estava que não podia mais.


Vária - Imagino.


Ânia - Sobretudo por causa da Carlota, falando sem parar, a viagem toda, fazendo mágicas! Por que é que você foi me arranjar essa Carlota?


Vária - Uai, você não podia viajar asozinha, menina. Com 17 anos!


Ânia - Chegamos a Paris. Frio, neve. Mamãe mora num quinto andar. Eu chego e encontro uns franceses - senhoras, um padre velho, tudo cheio de fumaça de cigarro, tudo revirado. De repente fiquei com uma pena da mamãe. Me abracei com ela e não queria mais largar. Depois...ela também me abraçou e ficou chorando sem parar...


Vária - Não conte...


Ânia - Já tinha vendido a casa de Menton, não sobrou mais nada. E eu também sem um níquel, mal deu pra chegarmos lá. E mamãe não compreende. Fomos jantar na estação e ela pedia os pratos mais caros, dava a cada garçon um rublo de gorjeta! E Carlota a mesma coisa. E o Iacha também: pedia um prato especial só pra ele. Um horror! O Iacha agora é criado da mamãe, tivemos que trazê-lo conosco.


Vária - Eu já vi o malandro.


Ânia - E então? Vocês pagaram os juros?


Vária - Qual nada.


Ânia - Ah, meu Deus.


Vária - Em agosto a fazenda vai a leilão.


Lopakhin (Da porta) - Méee...mé...(Sai)


Vária - Se eu pudesse dava uma surra nele!


Ânia - Vária, ele já te pediu em casamento? (Vária nega) Mas ele gosta de você. Por que é que vocês não se explicam, o que estão esperando?


Vária - Acho que não dá em nada não. Ele está sempre ocupado, não tem tempo pra mim. E todo mundo falando em nosso casamento, cumprimentando, e na realidade não existe nada. É como se fosse um sonho...que broche engraçado esse seu...parece uma abelhinha.


Ânia - Mamãe comprou...Ah, em Paris, eu voei de balão!


Vária - Meu coraçãozinho voltou! (Duniacha volta com a cafeteira e prepara o café) E eu, meu bem, o dia inteiro cuidando da casa, andando de um lado pro outro e...sonhando. Sonhando que casava você com um ricaço e eu ficava descansada, ia fazer um retiro e depois visitava Kiev, Moscou, todos os lugares santos! A vida inteira de um lado para o outro. Que felicidade!


Ânia - Os passarinhos estão cantando no jardim. Que horas são?


Vária - Quase três. Você já devia estar dormindo. (Vão para o quarto de Ânia. Surge Iacha, com um cobertor)


Iacha - Com licença.


Duniacha - Como você mudou!?


Iacha - Quem é você?


Duniacha - Quando vocês embarcaram eu era assim, desse tamaninho. Sou a Duniacha, filha do Fiodor Kosoiedov.


Iacha - Que gracinha...(Ele a abraça. Ela grita e deixa cair um pires. Iacha sai)


Vária (Surgindo) - O que foi?


Duniacha - Quebrei um pires...


Vária - Dá sorte.


Ânia (Saindo do seu quarto) - Temos que avisar mamãe que Pétia está aqui.


Vária - Dei ordem para que não o acordem.


Ânia - Há seis anos papai morreu, um mês depois meu irmãozinho Grischa se afogava no rio, tinha só sete anos, era tão lindo! Mamãe não pôde suportar e foi embora, sem olhar pra trás...eu a compreendo tão bem...se ela soubesse! Pétia era professor do Grischa, ela é capaz de lembrar...(Entra Firs)


Firs - Madame vem tomar café aqui. Está pronto o café? (A Duniacha) Onde está o leite?


Duniacha - Ai, meu Deus! (Sai correndo)


Firs - Coitada, é uma pamonha! Voltaram de Paris. Meu amo também ia a Paris. Na diligência, puxada a cavalos...


Vária - O que é, Fris?


Firs - Senhora? Minha ama voltou! Até que enfim! Tanto tempo esperei...agora já posso morrer sossegado...(Entram Liubov, Gaiev, Lopakhin e Pichtchik)


Liubov - Como era mesmo? Deixe ver se lembro: a amarela pro canto, carambola ao centro.


Gaiev - Direto pro canto. Houve um tempo, irmã, que dormíamos aqui, neste quarto. E agora estou com 51 anos. Não é incrível?


Lopakhin - É...o tempo vôa.


Gaiev - Que cheiro de patchulí...


Ânia - Eu vou me deitar. Boa noite, mamãe.


Liubov - Minha filha adorada...contente de estar em casa?


Ânia - Ate amanhã, titio.


Gaiev - Deu te abençoe! Como você ficou parecida com sua mãe?! Você, Liuba, na idade dela, era igualzinha! (Ânia sai)


Vária (A Lopakhin e Pichtchik) - Senhores, já são quase três horas. É bom irem se despedindo...


Liubov - Sempre a mesma Vária! Deixe tomar meu café e depois vamos todos.


Vária - Vou verificar se trouxeram todas as malas. (Sai)


Liubov - Serei eu mesma, sentada aqui em casa? Dá vontade de saltar, de sacudir os braços! Quem sabe estou dormindo, sonhando? Eu adoro minha terra, Deus sabe que a adoro. No trem mal podia olhar pela janela, chorava sem parar. Bem, vamos a esse café. Obrigado, Firs, estou alegre de encontrá-lo ainda vivo.


Firs - Anteontem.


Gaiev - Ele está meio surdo.


Lopakhin - Tenho de ir. Embarco às cinco para Kharkhov. Que pena. Quieria tanto ficar aqui, olhando para a senhora, conversando. A senhora continua a mesma maravilha, não mudou nada.


Pichtchik - Está até mais bonita, com essa moda de Paris.


Lopakhin - O seu irmão aí, Leonid Andreievich, vive me chamando de ganancioso. Mas eu não me importo. Eu só quero que a senhora continue a confiar em mim, como antigamente, e que os seus olhos meigos, maravilhosos, continuem a me ver como sempre. Santo Deus, o meu pai foi servo do seu avô, do seu pai, mas a senhora já fez tanta coisa por mim que eu esqueço tudo isso, gosto da senhora como se fosse parente. Mais do que parente!


Liubov - Não posso ficar sentada, não aguento! Acho que vou morrer de tanta alegria! Podem caçoar de mim, sou mesmo uma boba. Ah, minha escrivaninha...minha estantezinha querida!


Gaiev - Enquanto você estava por lá a babá morreu.


Liubov - Deus guarde sua alma.


Gaiev - O Anastasyi também morreu. Petruchka, o caolho, me deixou, foi para a cidade, agora está trabalhando na casa do coronel. (Chupa uma bala)


Lopakhin - Eu queria lhes dizer uma coisa alegre, agradável. A senhora já sabe que o seu cerejal terá de ser vendido por causa das dívidas, não é? O leilão está marcado para o dia 22 de agosto. Mas pode ficar sossegada, porque há uma solução: a sua fazenda está distante da cidade só uns 20 quilômetros. A estrada de ferro agora passa pertinho. Pois é só lotear o cerejal e o terreno à beira do rio, arrendar os lotes aos veranistas e a senhora terá no mínimo 23 mil rublos de renda por ano.


Gaiev - Você me desculpe, mas isso é uma asneira.


Liubov - Acho que não entendi muito bem, Yermolai Alexeievitch.


Lopakhin - Olha, cada arrendatário vai pagar, no mínimo, 25 rublos por acre de terra, e se a senhora anunciar desde já, eu lhe garanto que não sobra nem um pedacinho. Numa palavra, a senhora está salva. Ótima localização, rio fundo. Só que terá de se ajeitar um pouco, limpar...demolir, por exemplo, as construções antigas, esta casa que não presta mais, derrubar as cerejeiras...


Liubov - Derrubar...desculpe, meu filho, mas só se você enlouqueceu. Se neste lugar existe alguma coisa de extraordinária é o nosso jardim de cerejeiras!?


Lopakhin - A única coisa extraordinária no seu cerejal é que ele é grande demais. Cereja mesmo só de dois em dois anos e assim mesmo ninguém compra.


Gaiev - Até a enciclopédia cita o nosso cerejal!


Lopakhin - Se não acharmos uma solução, se não tomarmos uma decisão razoável, as cerejeiras e toda a fazenda vão a leilão dia 22 de agosto. Reflitam bem. Não há outra solução.


Firs - Antigamente, há uns 40 ou 50 anos, punham as cerejas para secar no sol, ou então de molho, e faziam licor, geléia e também...


Gaiev - Fica quieto, Firs.


Firs - E até mandavam as conservas de cerejas para Moscou, para Kharkov, carradas e carradas, era um dinheirão! A cereja seca naquele tempo era cheirosa, doce, macia. Antigamente havia um processo...


Liubov - E onde é que essa receita foi parar?


Firs - Esqueceram, ninguém mais lembra.


Pichtchik - E Paris, como é? A senhora comeu rã?


Liubov - Comi crocodilos!


Pichtchik - Ora vejam!


Lopakhin - Até agora só havia na roça os fazendeiros e os camponeses. Agora vieram os veranistas. Todas as cidades, por menores que sejam, estão rodeadas de casas de verão. Pode-se prever que daqui a 20 anos os veranistas terão se multiplicado espantosamente. Por enquanto ele só fica tomando chá na varanda, mas bem pode acontecer que resolva cultivar a sua terrinha e então o seu cerejal ficará magnífico outra vez, alegre, próspero!


Gaiev - Ora, deixe de asneiras! (Entram Vária e Iacha)


Vária - Vieram dois telegramas para a senhora, mãezinha. Estão aqui.


Liubov - De Paris...(Rasga-os sem ler) Com Paris, acabou-se.


Gaiev - Você sabe, Liuba, quantos anos tem essa estante? Faz uma semana tirei a gaveta de baixo e reparei na data, marcada a fogo: foi feita há um século, nada mais, nada menos. Que tal? Merece uma homenagem. É um objeto inanimado, mas seja lá como for, contém livros!


Pichtchik - Cem anos! Ora vejam!


Gaiev - Sim. Já é alguma coisa! Prezada e ilustre estante! Parabéns por mais de um século de existência, voltado aos mais altos ideais de caridade e justiça. O teu apelo a um trabalho frutífero e útil não falhou durante um século, sustentando nas várias gerações de nossa linhagem, ânimo e fé num futuro melhor, inculcando em nós os ideais do bem e da consciência social!


Liubov - Você não mudou nada, irmão.


Gaiev - Tiro da direita para o canto! Corto a do meio!


Lopakhin - Bom, está na hora.


Iacha (Dando remédios a Liuba) - Quem sabe a senhora já quer tomar as sua pílulas...


Pichtchik - Não tome remédios, minha cara amiga. Eles não servem para nada. Me dê aqui, por favor. Com licença. (Engole as pílulas) Pronto!


Liubov - O senhor enlouqueceu?


Pichtchik - Engoli todas!


Firs - Estiveram aqui na Semana Santa, comeram meio barril de pepino...


Liubov - Do que é que ele está falando?


Vária - Há três anos que anda assim resmungando sozinho. Já nos acostumamos.


Iacha - É a velhice...(Carlota cruza a cena)


Lopakhin - Desculpe, Carlota Ivanovna, ainda não pude cumprimentá-la. (Vai beijar sua mão)


Carlota - Se eu lhe der confiança de beijar minha mão, vai logo querer beijar o cotovelo e depois o ombro...


Lopakhin - Parece que hoje eu estou sem sorte. Carlota, faça uma de suas mágicas.


Liubov - Sim, Carlota, um de seus truques!


Carlota - Não. Estou com sono. (Sai)


Lopakhin - Em três semanas estarei aqui de novo. Enquanto isso, até a volta...Ah, meu Deus, não tenho nenhuma vontade de ir...Bem, se a senhora resolver alguma coisa sobre os veranistas, é só avisar, possa arranjar-lhe um empréstimo de uns 50 mil rublos. Pense bem.


Vária - Vá embora de uma vez!


Lopakhin - Já vou, já vou...(E sai)


Gaiev - É um boçal. Aliás, perdão. A Vária vai se casar com ele, é o noivinho dela.


Vária - O senhor fala demais, tio.


Liubov - Ora, Vária, eu até que ficava muito contente. É uma ótima pessoa.


Pichtchik - Excelente moço, justiça seja feita. Mas, seja como for, minha prezada amiga, não podia me emprestar uns 240 rublos? Amanhã tenho de pagar os juros da hipoteca...


Vária - Não, ela não tem.


Liubov - É a pura verdade. Não tenho mais nada.


Pichtchik - Não faz mal, dá-se um jeito. Nunca devemos perder a esperança. Às vezes a gente pensa que tudo está perdido e de repente...vem a estrada de ferro, passa pelo meu terreno e recebo um dinheirão. Sempre acontece qualquer coisa assim. Amanhã é outro dia.


Liubov - Já terminamos nosso café. Podemos descansar.


Firs (A Gaiev) - Botou a calça errada, outra vez. Não sei mais o que é que faço com você.


Vária - Ânia está dormindo. O sol já saiu, o frio passou. Olha, mãezinha, as árvores, que lindas! E este ar, meu Deus! Os melros estão cantando!


Gaiev - O cerejal está branquinho...você não esqueceu, não é, Liuba? Aquela alameda comprida, que vai reto como uma fita esticada, reluzindo nas noites de luar!


Liubov - Ah, minha infância, minha inocência! Neste quarto de crianças eu dormia, daqui olhava para o cerejal. A felicidade despertava comigo toda manhã e o jardim era assim mesmo, nada mudou. Todo branco, branquinho! Ah, meu jardim, depois do outono sombrio de chuva, depois do inverno gelado, aí está você outra vez, novo, cheio de felicidade. Os anjos do céu não te abandonaram...se eu pudesse tirar do meu peito esta pedra pesada, se eu pudesse esquecer meu passado!


Gaiev - E o jardim será vendido para pagar as nossas dívidas, por estranho que pareça.


Liubov - Olhem! A alma de mamãe, passeando no jardim!


Gaiev - Onde?


Vária - Mãezinha, pelo amor de Deus...


Liubov - Foi só uma impressão...alí, à direita, onde a alameda dobra para o caramanchão, uma árvorezinha branca, inclinada, parece uma mulher...(Entra Trofímov)


Trofimov - Liubov Andreiévna! Só queria cumprimentá-la e depois vou-me embora!


Mandaram eu esperar até amanhã, mas não tive paciência.


Vária - É Pétia Trofímov...


Trofimov - Pétia Trofímov, que era preceptor do seu Grischa...será que mudei tanto? (Liubov chora)


Vária - Eu bem te disse, Pétia, que esperasse até amanhã.


Liubov - O meu Grischa...meu menininho...


Vária - Que se há de fazer, mãezinha? Foi a vontade de Deus.


Trofimov - Pronto...pronto.


Liubov - Morreu menino, afogou-se. Por que, meu amigo? Ânia está ali, dormindo, e eu falando alto...Então, Pétia? Como é que mudou tanto? Envelheceu...


Trofimov - No trem uma velhinha me chamou de “doutor sarnento”.


Liubov - Você era um estudantezinho, um mocinho bonito. E agora está quase careca...de óculos! Será possível que ainda seja estudante?


Trofimov - Parece que serei um estudante perpétuo.


Liubov - Bom, vamos dormir. Você também envelheceu, Leonid.


Pichtchik - Então! É hora de dormir! Ai, esta minha gota! Passo a noite em sua casa. E amanhã cedo, Liubov Andreievna de minha alma, vou precisar de 240 rublos...


Gaiev - Com esse é sempre a mesma história...


Pichtchik - 240 rublos...para os juros da hipoteca...


Liubov - Mas meu velho, eu não tenho dinheiro!


Pichtchik - Eu lhe restituo...pode ficar certa. Não é quase nada...


Liubov - Pois bem. Meu irmão vai lhe arranjar. Dê a ele o dinheiro, Leonid.


Gaiev - Era só o que faltava!


Liubov - O que se há de fazer? Ele precisa! Depois paga. (Saem todos, menos Gaev, Vária e Iacha)


Gaiev - Minha irmã ainda não perdeu o costume de esbanjar dinheiro. (A Iacha) Afaste-se um pouco, rapaz. Está cheirando a galinha.


Iacha - E o senhor, continua sempre o mesmo.


Gaiev - O que? O que foi que ele disse?


Vária (A Iacha) - Sua mãe chegou do povoado, está esperando na copa desde ontem pra te ver.


Iacha - Que amolação!


Vária - Será que não tem vergonha?


Iacha - Pra que foi que ela veio? Não podia deixar pra amanhã? (Sai)


Vária - Mãezinha é sempre a mesma. Se dependesse dela, dava aos outros tudo o que tem.


Gaiev - É...mas podíamos receber uma herança. Ou então casar nossa Ânia com algum ricaço. Ou posso ir a Iaroslavl tentar minha sorte com a tia condessa. Titia é riquíssima.


Vária - Se Deus quisesse nos ajudar!


Gaiev - Não adianta ficar chorando. A tia é podre de rica mas não gosta de nós. Primeiro minha irmã se casou com um advogado, em vez de um fidalgo. (Ânia surge) E também a conduta dela não tem sido exatamente...austera. É boa, caridosa, simpática, um encanto, gosto muito dela. Mas por mais que se inventem circunstâncias atenuantes, é impossível negar que é uma pecadora. Vê-se logo, está estampado no menor de seus gestos.


Vária - Ânia está ali na porta...


Gaiev - O que? Bem...não sei como foi, mas estou com alguma coisa aqui no olho direito. Não enxergo nada!? E 5ª feira, quando fui ao fórum...


Vária - Por que não está dormindo, menina?


Ânia - Não consigo. O sono não vem.


Gaiev - Menininha. Nenenzinho. Você não é só minha sobrinha: é um anjo do céu, é tudo para mim. Tem de acreditar...


Ânia - Acredito sim, titio. Mas às vezes é bom calar a boca. O silêncio é de ouro, titio. Ainda agora, o que é que o senhor estava dizendo a respeito de minha mãe, de sua irmã? Por que foi dizer aquilo, hein?


Gaiev - É mesmo. É horrível. Valha-me Deus. E aquele discurso que eu fiz para a estante, ainda há pouco, tão idiota! E só depois que terminei é que fui ver como era idiota.


Vária - É verdade, titio. O melhor é ficar calado.


Ânia - Ficando calado, o senhor mesmo vai se sentir mais tranquilo.


Gaiev - Não falo mais. Fico calado. Só isto, sobre os nossos negócios: quinta-feira fui ao fórum, lá estava uma porção de gente, conversa vai, conversa vem, e coisa e tal, e parece que será mesmo possível conseguir um empréstimo, com uma letra, para pagarmos os juros ao banco.


Vária - Se Deus nos valer!


Gaiev - Terça-feira volto lá. Veremos. (A ânia) Sua mãe vai falar com Lopakhin. É claro que a ela ele não recusará. E você, assim que estiver descansada, irá a Iaroslavl, falar com a tia condessa. Tudo se resolverá. Assim, atacamos o problema por três lados e liquidamos o negócio. Tenho certeza que vamos pagar esse juros. A fazenda não será vendida. Juro por minha felicidade!


Ânia - O senhor é tão bom, tio, tão inteligente. Agora estou tranquila. E feliz. (Entra Firs)


Firs - Leonid Andreievitch, o senhor não teme a Deus? A essas horas ainda não foi deitar!


Gaiev - Já, já...Pode ir, Firs. Eu mesmo me visto. Vamos, meninas. Os pormenores ficam para amanhã. Vocês sabem? Não é à toa que os camponeses gostam de mim. É preciso conhecer a natureza do homem do campo, pois só assim...


Ânia - Titio...outra vez?


Vária - O senhor não ia ficar calado?


Firs - Leonid Andreievitch!


Gaiev - Já vou, já vou! Dos dois lados ao centro! Embolsei a bola branca! (Sai e Firs vai atrás dele)


Ânia - Agora já estou tranquila. Não tenho nenhuma vontade de ir a Iaroslavl. Não gosto de minha tia-avó, mas assim mesmo já estou tranquila. Graças ao titio.


Vária - Temos de dormir. Vamos...(Pétia as vê. Referindo-se a Ânia)


Trofimov - Meu sol. Minha primavera!



2º ATO


Cenário - campo




Carlota - Eu não tenho passaporte regular, não sei qual é minha idade, tenho sempre a impressão que sou mocinha. Quando era menina meu pai e a minha mãe viajavam pelas feiras, davam espetáculos muito bons. Eu dava salto mortal e fazia outros truques. E quando o papai e a mamãe morreram, uma senhora alemã me levou para a casa dela e me deu educação. Depois fui crescendo, virei governanta. Mas de onde venho, quem sou, isso eu não sei. Quem eram meus pais? Será que eram casados? Sei lá. Às vezes tenho tanta vontade de conversar. Mas com quem? Não tenho ninguém. Tem horas que eu fico com uma antipatia de mim!?


Epihódov (Cantando e tocando violão) - “O que é que eu tenho com o mundo, com gente de mal, de bem. Basta que um amor profundo, sinta por mim, o meu bem”. Como é bom tocar bandolim!


Duniacha - Isso não é bandolim, é violão!


Epihódov - Para um louco de amor, é bandolim! (Canta com Iacha)


Carlota - Essa gente canta horrível. Chacais uivando!


Duniacha - Deve ser maravilhoso viajar viajar pelo estrangeiro, não?


Iacha - Lá isso é verdade. Concordo plenamente.


Epihódov - Claro...no estrangeiro tudo já está perfeito...


Iacha - É claro.


Epihódov - Eu sou um homem instruído, leio muitos livros notáveis e ainda assim não consigo saber o que quero, qual a tendência a que me inclino: viver ou dar um tiro na cabeça, para ser exato. Mas, seja como for, sempre trago um revólver comigo...(Mostra)


Carlota - Para mim chega. Vou-me embora. Epihódov, você é um sujeito inteligentíssimo e também terribilíssimo. As moças devem andar doidas por você. Esses tipos intelectuais são umas bestas. Não tenho ninguém pra conversar. Sempre sozinha. Sei lá quem sou, sei lá porquê...(Sai)


Epihódov - Para falar com franqueza, devo reconhecer que a sorte brinca comigo implacavelmente, como a tempestade com um barquinho. Suponhamos que eu esteja enganado: então como é que hoje de manhã, por exemplo, eu acordo, vou ver, e o que está bem em cima do meu peito? Uma aranha medonha, desse tamanho! E depois pego uma garrafa de vodka e dentro dela há uma coisa nojenta, assim feito uma barata. Vocês já leram Buckle? Se não for incômodo, Advótia Fedorovna, queria dizer-lhe duas palavrinhas.


Duniacha - Pois diga.


Epihódov - Eu preferiria que falássemos a sós.


Duniacha - Bem...mas primeiro vá buscar meu abrigo de pele. Com esta humidade estou sentindo um frio...Está perto do guarda-louça.


Epihódov - Pois bem, vou buscar. Agora já sei o que fazer com o meu revólver. (Sai)


Iacha - Cá entre nós, uma besta.


Duniacha - Deus permita que não vá se matar! Eu era pequenininha quando os patrões me trouxeram para casa, perdi completamente os hábitos da roça, as minhas mãos são brancas, branquinhas, mãos de moça rica. Sou tão frágil, tão fina, tão delicada, tudo me assusta. Tenho medo. E se você me enganar, Iacha, nem sei o que será dos meus nervos!


Iacha - Lindeza...claro que uma moça deve se respeitar. Não suporto garotas sem modos.


Duniacha - Me apaixonei por você. Você é tão inteligente, tão viajado, tem opinião sobre qualquer assunto...


Iacha - De fato. E minha opinião é esta: quando uma moça gosta de um rapaz, vai ver que ela não tem moral...Ah, é agradável fumar um charuto ao ar livre. (Escuta) Vem alguém por aí. Deve ser os patrões. Vá pra casa! Não, por esse caminho, senão podem cruzar com você e pensar que nós marcamos encontro aqui. E eu não gosto disso. (Ela sai. Entram Liubov, Gaiev e Lopakhin)


Lopakhin - É preciso decidir de uma vez: o tempo não espera. É a coisa mais simples! Querem ou não arrendar os lotes para os veranistas?


Liubov - Quem é que está fumando esse charuto horrível?


Gaiev - Com a estrada de ferro as coisas melhoraram muito. Fomos à cidade, almoçamos...Ao centro a amarela!


Lopakhin - Uma palavra só! Estou esperando a resposta!


Gaiev - O que?


Liubov - Ainda ontem eu tinha uma porção de moedas e hoje não sobrou quase nada. Pra que é que fui almoçar na cidade? O restaurante horrível, com aquela música ruim e a toalha cheirando a sabão. E pra que beber tanto, Lênia? Comer tanto? E falar tanto? Hoje no restaurante você não parou um minuto! E tão fora de propósito! A década de 70, os decadentes. E isso com quem? Com o garçom!? Discutir os decadentes com o garçon!


Gaiev - Eu sou incorrigível, não há dúvida. Por que é que fica aí se sacudindo à nossa frente?


Iacha - Não posso parar de rir quando escuto o senhor falar...


Gaiev - Ou ele ou eu!


Liubov - Vamos, Iacha, vá embora, vá...


Iacha - Nesse instante...(Sai)


Lopakhin - Dizem que o ricaço do Derigánov vai arrematar sua fazenda.


Liubov - Onde foi que ouviu isso?


Lopakhin - É o que se diz na cidade.


Gaiev - Nossa tia, de Iaroslavl, ficou de mandar os cobres.


Lopakhin - Quanto é que ela vai mandar? Cem mil? Duzentos?


Liubov - Se mandar uns dez ou quinze mil devemos dar graças a Deus...


Lopakhin - Desculpem, mas eu nunca vi gente tão leviana como vocês! Eu estou falando claro, não estou? A fazenda de vocês vai ser vendida. Parece que ainda não entenderam!


Liubov - Mas o que se há de fazer? Ensine!


Lopakhin - Mas eu não paro de ensinar! Vocês têm que arrendar o cerejal e o resto do terreno para construirem casas de verão. E o quanto antes. O leilão está aí. Entenderam? Assim que resolverem construir, o dinheiro aparece, a situação está salva!


Liubov - Veranistas...veranistas. Que banalidade. Desculpe...


Gaiev - Nisto, concordo plenamente.


Lopakhin - Não sei se choro, se grito ou desmaio. Vocês me põem louco! (A Gaiev) Você é uma galinha morta!


Gaiev - O que?


Lopakhin - Uma galinha morta! (Vai sair)


Liubov - Não vá, por favor. Quem sabe encontramos um meio...


Lopakhin - E que meio é esse que vamos encontrar?


Liubov - Não vá, eu lhe peço. Pelo menos, com você aqui as coisas ficam mais alegres. Sabe, amigo? Estou sempre na expectativa de alguma coisa, como se casa estivesse por desabar sobre nós...


GAIEV - Dizem que torrei minha fortuna em caramelos...


Liubov - Sempre esbanjei dinheiro feito uma insenssata. Casei-me com um homem que só sabia fazer dívidas, meu marido morreu de champagne, bebia horrivelmente. Por desgraça minha, comecei a gostar de outro homem, liguei-me a ele e logo - foi o meu primeiro castigo - aqui mesmo, neste rio, o meu filhinho afogou-se e eu fui embora, para nunca mais voltar, para não ver mais este rio. Fugi de olhos fechados, desorientada - e esse homem foi atrás, brutal, implacável. Comprei uma casa perto de Menton, porque ele adoeceu e durante três anos não descansei, dia e noite - a doença dele me deixou esgotada, ressecou minha alma. E o ano passado, quando tive de vender a casa para pagar dívidas, fui para Paris e lá ele me espoliou, me deixou, foi viver com outra mulher, eu tentei me envenenar...que estupidez, que vergonha! E de repente senti uma saudade da Rússia, da minha terra, da minha filhinha... (Pega um telegrama) Recebi hoje. De Paris. Ele pede perdão, roga que eu volte...(Rasga o telegrama. Ouve-se uma música) Parece que é música.


Gaiev - É a nossa célebre orquestra de judeus, lembra?


Liubov - Mas ainda existe? Vamos chamá-la uma noite dessas.


Lopakhin - Ontem, no teatro, vi uma peça engraçadíssima.


Liubov - Vai ver, não tinha graça nenhuma. Mas isso não importa: o que você precisa mesmo é casar, meu amigo.


Lopakhin - Isso é verdade.


Liubov - Com a nossa Vária. Ela é uma ótima moça: tem um gênio simples, trabalha da manhã até a noite e, o que é mais importante, gosta de você. E você também gosta dela.


Lopakhin - Não digo que não. É uma boa moça.


Gaiev - Me ofereceram uma colocação no banco. Seis mil rublos por ano. Sabiam?


Liubov - Você não dá pra isso. Fique assim mesmo como está. (Entra Firs, trazendo um sobretudo)


Firs - Por obséquio, meu senhor, olha a umidade!


Gaiev (Vestindo) - Você amola, hein, velho!


Firs - Não pode continuar assim não. Hoje de manhã já saiu sem avisar...


Liubov - Você envelheceu, Firs.


Firs - Senhora?


Lopakhin - Estão dizendo que você ficou muito velho.


Firs - Já estou vivendo neste mundo há muito tempo. Quando eles me casaram o seu pai ainda não tinha nascido. E quando veio a abolição, eu já era camareiro mór. Mas eu não concordei com a abolição. Continuei com o meu velho amo. Eu me lembro muito bem: todo mundo pulando de contente e por que? Nem eles mesmos sabiam.


Lopakhin - Antigamente tudo era ótimo! Não faltava surra pra ninguém!


Firs - Pois é: bom mesmo. Os servos com os senhores, os senhores com os servos. Agora cada qual puxa para o seu lado, ninguém compreende mais nada.


Gaiev - Amanhã tenho de ir à cidade. Prometeram me apresentar a um general que é capaz de nos conceder um empréstimo e ...


Lopakhin - Balelas. Garanto que não consegue pagar esses juros.


Liubov - Ele está sonhando. Esse general nem existe...(Entram Trofimov, Ânia e Vária)


Lopakhin - Nosso estudante perpétuo, sempre junto das moças...


Trofimov - Isso não é da sua conta.


Lopakhin - Vai fazer 50 anos e ainda não saiu da escola.


Trofimov - Pare com essas besteiras.


Lopakhin - Por que é que fica zangado, “fenômeno”?


Trofimov - Não amola.


Lopakhin - Permita que lhe pergunte: qual é a sua opinião sobre mim?


Trofimov - Minha opinião, Yermolai Alexeievitch, é essa: você é um homem rico e logo será milionário. Assim como para o metabolismo geral é necessário que haja uma fera devorando tudo que vê pela frente, assim também você é um “fenômeno” necessário.


Vária - Olha, Pétia, é melhor nos falar sobre os planetas.


Liubov - Não. Vamos continuar nossa conversa de ontem.


Trofimov - A respeito de quê?


Liubov - Do orgulho do homem.


Trofimov - Ontem falamos, falamos e não chegamos a nenhuma conclusão. A senhora vê no orgulho um lado místico. Mas se encararmos as coisas com simplicidade, que orgulho é esse, qual a sua razão de ser, já que o homem, fisiologicamente, é mal feito e na grande maioria dos casos, é um ser inferior, grosseiro, estúpido e infeliz? Temos de acabar com essa auto-admiração. Deixar de bobagem e trabalhar.


Gaiev - Com trabalho ou sem trabalho a gente morre.


Trofimov - Quem sabe? E o que significa: morre? Vai ver que o homem tem cem sentidos e com a morte só desaparecem os cinco que nós conhecemos e os outros noventa e cinco permanecem vivos.


Liubov - Como você é inteligente, Pétia!


Lopakhin - Êta inteligência medonha!


Trofimov - A humanidade progride. Tudo o que hoje está aparentemente fora do seu alcance um dia será possível, compreensível. Só que é preciso trabalhar, ajudar com o máximo de esforço os que procuram a verdade. Aqui na Rússia, por enquanto, são poucos os que trabalham. A maioria dos intelectuais que eu conheço não procura nada, não faz nada e até agora tem-se mostrado incapaz ante qualquer trabalho. Intitulam-se intelectuais, mas tratam os criados como inferiores e os camponeses como animais. Não estudam nem lêem nada com seriedade. De ciência só falam, de arte entendem zero. São todos solenes, carrancudos, falam difícil, vivem filosofando, fingindo não ver que a maior parte do nosso povo vive como selvagens, se esmurrando e se insultando pelas menores coisas, comendo um lixo infecto, dormindo sem travesseiro, trinta, quarenta no mesmo quarto, com pulga, percevejo, imundície, umidade, degradadação moral. E a conversa fiada só serve para tapear os outros, para nos tapearmos a nós mesmos. Onde é que estão essas maternidades tão faladas? Essas creches, essas bibliotecas públicas? Só nos romances e nos jornais. Na realidade só há sujeira e burrice. É a Ásia! Das caras sérias, das conversas graves, eu tenho medo e nojo.


Lopakhin - Eu, sabem? Eu me levanto às cinco da manhã, trabalho até anoitecer, lidando com dinheiro o tempo todo, dinheiro meu e dos outros. Conheço bem toda essa corja que anda por aí. Basta começar a fazer alguma coisa pra ficar logo sabendo como são poucas as pessoas honradas. Às vezes, quando não consigo dormir, fico pensando: “Meu deus, Tu nos destes estas florestas vastas, estes campos sem fim, estes horizontes profundos e nós, vivendo aqui, devíamos também ser uns gigantes...”


Liubov - Gigantes? Ora, eles que fiquem nos contos de fadas. Na vida real só servem para assustar.


Gaiev - Pessoal, o sol se pôs.


Trofimov - É verdade...


Gaiev - “Oh natureza divina, que brilhas com eterna luz, indiferente e bela; Oh natureza, que chamamos mãe, em ti reúnes a vida e a morte, alentas e destróis...”


Vária - Tio!


Ânia - Titio...outra vez?


Trofimov - É melhor o senhor tacar a bola amarela pra cima da dois no centro...(Ouve-se um som)


Liubov - O que foi?


Lopakhin - Talvez lá longe, na mina, uma caçamba tenha caído...


Gaiev - Quem sabe um pássaro qualquer...uma garça.


Trofimov - Ou uma coruja.


Firs - Quando a calamidade aconteceu, foi assim mesmo: a coruja piando e o samovar silvando sem parar.


Gaiev - Que calamidade foi essa?


Firs - A abolição.


Liubov - Já é hora, meus amigos. Vamos, está anoitecendo. (Começam a sair)


Gaiev - Minhas mãos estão trêmulas. Passei muito tempo sem jogar bilhar.


Lopakhin - Liubov Andreiévna, não se esqueça, por favor: no dia 22 de agosto o cerejal vai a leilão! (Saem todos, menos Ânia e Trofimov)


Ânia - Que bom, Pétia, estamos sozinhos.


Trofimov - Um verdadeiro milagre, já que a Vária vive nos vigiando. Ela tem medo que a gente comece a namorar. É burra demais pra compreender que estamos acima do amor. Evitar tudo o que é mesquinho, ilusório, tudo o que impede as pessoas de serem livres e felizes, esse é o caminho, esse é o sentido da nossa vida. Para adiante! Direto à estrela clara que brilha na distância!


Ânia - O que foi que você me fez, Pétia? Por que é que eu já não gosto tanto do nosso jardim como gostava antes? Para mim, no mundo não havia lugar mais lindo!


Trofimov - Nosso jardim é a Rússia toda. Você tem de compreender, Ânia: seu avô, seu bisavô, todos os ses antepassados foram senhores de servos, foram donos de almas vivas. Cada cereja, cada folha, cada árvore do jardim fala do sofrimento humano. Será que você não ouve a voz dos servos, será que não vê os olhos deles, espiando? Possuir almas vivas, foi isso o que deformou vocês todos e de tal forma que nem sua mãe, nem seu tio, nem você mesma percebe que estão vivendo às custas de outros, às custas de gente que vocês não deixam sequer transpor o limiar de sua sala. Estamos atrasados pelo menos dois séculos. Não temos nada, nem mesmo uma opinião sobre nosso passado. Só sabemos filosofar, nos queixar de um vazio na alma ou então tomar vodka. E no entanto é tão claro que para viver no presente é preciso apagar o passado, saldar as dívidas do passado e essas dívidas só se pagam com sofrimento, com um trabalho extraordinário, incessante, sem trégua!


Ânia - A casa onde nós moramos há muito tempo já não é nossa. Vou-me embora daqui. Palavra de honra, Pétia.


Trofimov - “Se tiveres as chaves da casa e da cozinha, joga-as na cisterna e vai-te, livre como o vento!”


Ânia - Que lindo o que você disse!


Trofimov - O tempo todo, dia e noite, a minha alma está cheia de pressentimentos indizíveis! Eu pressinto a felicidade, Ânia, desde já posso avistá-la...


Ânia - A lua...está surgindo...(Vária, ao longe, chama: “Ânia!”)


Trofimov - Sim, a lua...E a felicidade, cada vez mais perto. Chego a ouvir seus passos. E se nós não soubermos reconhecê-la, se não chegarmos a vê-la, não faz mal: outros a verão!


Voz de Vária - Ânia! Onde você está?


Trofimov - Essa Vária, outra vez! É revoltante!


Ânia - Vamos pra perto do rio. Lá ninguém vai nos amolar.


Trofimov - Vamos! (Saem)


Voz de Vária - Ânia! Ânia!



3º ATO

Cenário - sala de estar.


(Ouve-se a orquestra de judeus)


Pichtchik - Eu sou muito sangüíneo, já tive dois ataques de apoplexia, dançar para mim é um caso sério, mas como se diz: “Entrou na dança, tem de pular!”. Sou forte que nem um cavalo! O meu falecido pai foi um grande brincalhão e jurava que a dinastia dos Semiónov - Pichtchik começou com aquele cavalo que Calígula fez entrar pro senado. Desgraça é a falta de dinheiro. “Cachorro com fome, só procura osso”. Eu também: só penso em dinheiro.


Trofimov - De fato o senhor tem alguns traços cavalares.


Pichtchik - E o que tem isso? O cavalo é um belo animal!


Trofimov - Se a energia que o senhor tem gasto procurando dinheiro pra pagar juros fosse empregada em qualquer outra coisa, o senhor virava o mundo pelo avesso.


Pichtchik - Nietzsche, sabe? Um grande filósofo, famosíssimo, o mais célebre de todos, uma inteligência notável, escreveu nos seus livros que nós temos todo o direito de fabricar moedas falsas.


Trofimov - Uai, o senhor já leu Nietzsche?


Pichtchik - Eu? Vê lá! A minha filha Dátchenka me disse. E na situação que ando agora era o único jeito. Depois de amanhã tenho de pagar 300 rublos e só arranjei 130! (Entram Liubov e Carlota)


Liubov - O Leonid ainda não chegou? Que será que anda fazendo na cidade?


Trofimov - Vai ver que ainda não fizeram o leilão.


Carlota - Aqui está um baralho. Pense na carta que quiser.


Pichtchik - Já pensei.


Carlota - Pode embaralhar. Muito bem. Agora me dê aqui, meu prezado senhor Pichtchik. Eins, zwei, drei! Agora procure no bolso do seu colete.


Pichtchik - Oito de espadas! Certinho! Vejam só!


Carlota - Que tempo lindo este de hoje! “É sim senhorrra, muito bonitas!” Você é meu ideal! “E eu também gostar muito da senhorrra!”


Pichtchik - Encantadora Carlota Ivanovna: estou simplesmente apaixonado!


Carlota - Apaixonado? Que é que o senhor entende de paixão? (Carlota e Pichtchik saem. Entra Vária)


Liubov - Tudo já deve estar terminado: ou venderam a fazenda, ou não houve o leilão. Então por que nos deixar nesta incerteza!?


Vária - Garanto que foi mesmo o titio que arrematou a fazenda.


Trofimov - É...sem dúvida.


Vária - A tia-avó mandou uma procuração pra ele comprar em nome dela, transferindo a dívida. Deus vai nos ajudar.


Liubov - A tia de Iaroslavl mandou 15 mil rublos. Mas isso não dá nem para pagar os juros. É o meu destino que se decide hoje!


Trofimov - Madame Lopakhina!


Vária - Estudante perpétuo! Expulso duas vezes da Universidade!


Liubov - Pra que se zangar, Vária? Com uma brincadeira! Se você quiser, case com o Lopakhin. É um bom moço, direito, simpático. Se não quiser, não case, meu bem. Não há nenhuma obrigação.


Vária - Para mim, mamãe, isto é sério, não é pra ninguém fazer brincadeiras de mau gosto. Eu gosto dele.


Liubov - Então case! O que é que está esperando? Eu não entendo!


Vária - Mas mamãe, eu não posso propor! Há dois anos que todo mundo fala nisso e ele fica calado, ou então brincando. Eu compreendo perfeitamente. Ele está cada vez mas rico, sempre ocupado com os negócios, não pode ter tempo pra mim. Se eu tivesse dinheiro, mesmo que fosse muito pouquinho, uns 100 rublos que fosse, ia embora pra longe daqui. Pro convento!


Trofimov - Que felicidade!


Vária - Um estudante devia ter juízo! (Entra Iacha)


Iacha - O Epihódov quebrou um taco de bilhar! (Sai)


Vária - O Epihódov? O que é que ele está fazendo aqui? E quem lhe deu licença para mexer no bilhar? (Sai)


Liubov - Não caçoe, Pétia. Basta as amolações que ela já tem.


Trofimov - Ela vive se metendo onde não é chamada. O verão inteiro ficou nos azucrinando, a mim e a Ânia, com medo de algum namoro entre nós. O que é que ela tem com isso? Aliás, não havia o menor motivo. Nós estamos acima do amor.


Liubov - E eu, pelo visto, estou abaixo do amor. Mas por que o Leonid não vem? Eu só queria saber: venderam a fazenda ou não venderam? É uma desgraça tão incrível que eu já nem sei o que pensar, fico desorientada...Acho que vou gritar, acho que vou fazer uma loucura. Me ajude Pétia, diga alguma coisa, seja lá o que fôr!


Trofimov - Venderam ou não venderam a fazenda - que diferença faz? É assunto encerrado, e há muito tempo. Deixe de se iludir. Uma vez na vida, ao menos, precisa encarar a verdade!


Liubov - Encarar que verdade? Você vê a verdade e a contra-verdade e eu parece que perdi a perspectiva, não vejo mais nada.Você resolve os maiores problemas com tanta facilidade, mas diga, meu bem, não será só porque ainda é moço, porque ainda não sofreu problema algum? Você olha para adiante, cheio de coragem - quem sabe é porque não espera encontrar nada de horrível, porque a vida ainda se esconde aos seus olhos de menino? Você é mais corajoso, mais franco, mais profundo que nós, mas ... - uma gota de generosidade - tenha pena de mim. Eu nasci aqui, aqui viveram meu pai e minha mãe, meu avô, eu amo esta casa. Sem o jardim de cerejeiras, não posso imaginar minha vida. Se têm de vendê-lo, me vendam com ele! Aqui se afogou meu filhinho. Tenha pena de mim. Você é bom, generoso.


Trofimov - A senhora sabe que eu sinto, de todo o coração.


Liubov - Não seja tão severo comigo, Pétia. Eu gosto de você como se fosse um dos meus. Ficaria contente de casá-lo com Ânia, mas é preciso estudar, meu filho, acabar o seu curso. Você não faz nada, deixa-se levar pelo destino. Isso é meio estranho, sabe? (Um telegrama cai no chão, Trofimov o apanha) É um telegrama de Paris. Chegam todos os dias. Aquele doido está doente outra vez, pede perdão, implora que eu vá - e eu devia mesmo ir cuidar dele. Estou vendo em seu rosto que você me censura, Pétia. Mas, que hei de fazer? Ele está sozinho, infeliz! Quem vai cuidar dele, quem vai impedí-lo de fazer loucuras, quem vai lhe dar o remédio na hora certa? E por que esconder, porque não declarar, eu gosto dele, gosto! É evidente. Esse amor é uma pedra amarrada ao pescoço, me arrastando para o fundo. Mas eu gosto da pedra, não posso viver sem ela. Não me julgue mal, Pétia, não diga nada. Não fale...


Trofimov - Desculpe a a minha franqueza, pelo amor de Deus. Ele não roubou tudo o que a senhora possuía?


Liubov - Não fale assim!


Trofimov - Mas é um patife! A senhora é a única que não percebe! É um sem vergonha, um miserável, um inútil!


Liubov - Você com seus 26 ou 27 anos, não passa de um colegial.


Trofimov - Pode ser.


Liubov - Na sua idade, já devia ser homem, compreender os que sofrem de amor, conhecer o amor! Apaixonar-se! Isso mesmo! Você pensa que é puro, mas não passa de um puritanozinho ridículo, um anormal!


Trofimov - O que é que ela está dizendo!


Liubov - “Estou acima do amor”! Essa é muito boa! Você não está acima coisíssima nenhuma. Com essa idade! Não ter uma amante!


Trofimov - Isso é horrível! (Sai e volta) Entre nós está tudo acabado! (Sai)


Liubov - Pétia, espere um pouco! Seu esquisitão, eu estava brincando! Pétia!


(Barulho, risos. Ânia entra correndo, rindo) O que foi?


Ânia - Pétia rolou pela escada abaixo! (E sai)


Liubov - Que sujeito esquisito esse Pétia! (E sai. Entram Firs e Iacha)


Iacha - O que foi, vovô?


Firs - Não estou me sentindo bem. Antigamente vinham aos nossos bailes generais, barões, almirantes. Agora convidamos um funcionário dos correios, o chefe da estação e é só por muito favor que eles vêm. Estou ficando fraco. O velho amo, o avô, costumava curar todo mundo, de qualquer doença, dando lacre pra beber. Faz 20 anos que eu venho bebendo lacre todo o santo dia. Quem sabe é por isso que eu ainda estou vivo?


Iacha - O senhor há muito tempo já devia estar morto.


Firs - Não presta pra nada...(Entra Liubov)


Iacha - Agora mesmo, na cozinha, estava um tipo dizendo que venderam hoje o jardim de cerejeiras.


Liubov - Venderam? Pra quem?


Iacha - Ele não disse. Já foi embora! Era um velho de fora, não era nenhum dos nossos.


Firs - Leonid Andreievitch ainda não voltou. Foi de casaco leve. Vai apanhar um resfriado. Esses moços não têm juízo!


Liubov - Iacha, descubra pra quem foi vendido.


Iacha - Mas ele já foi!?


Liubov - Vá!


Iacha - Sim senhora. (Ele hesita) Liubov Andreievna, posso pedir uma coisa? A senhora é tão boa! Se voltar a Paris, me leve também. Por favor. Eu não suporto isto aqui. A senhora mesmo está vendo, é um país bárbaro, sem instrução, uma gente sem moral e eu estou morrendo de tédio! A comida é um horror e ainda por cima este macróbio do Firs o tempo todo atrás da gente, resmungando uma porção de asneiras sem pé nem cabeça. Por favor, me leve também! (Sai)


Liubov - Firs, se a fazenda fôr vendida, para onde você vai?


Firs - Vou para onde a senhora mandar.


Liubov - O que aconteceu com você? Está com um ar esquisito...não está se sentindo bem? É melhor ir para a cama, Firs.


Firs - Pois é...eu vou dormir e quem é que cuida de tudo, de servir, de arrumar? Só eu. (Sai Liubov. Entram Epihódov e Duniacha)


Epihódov - A senhorita, Advótia Fedorovna, nem presta atenção em mim! Como se eu fosse um inseto!


Duniacha - E o que é que o senhor deseja?


Epihódov - Sem dúvida, pode ser que tenha razão. Mas encarando-se assim, de um certo ponto de vista, para falar com franqueza, se assim me é lícito dizer, a senhorita abalou o meu estado de alma. Não ignoro a minha má fortuna, todo dia acontece comigo alguma desgraça, já me habituei há muito tempo, até aceito sorrindo a minha sorte. Mas a senhorita me deu a sua palavra e muito embora eu...


Duniacha - Por favor, vamos conversar mais tarde. Agora me deixe em paz. Estou sonhando...(Entra Vária)


Vária - Ainda está aqui, Sémion? Você não tem mesmo noção de respeito, hein? Retire-se, Duniacha. (Ela sai) Já quebrou um taco jogando bilhar e agora está aqui na sala, bancando o convidado.


Epihódov - A senhora não tem o direito - por assim dizer - de reclamar comigo.


Vária - Não reclamo, digo: você só sabe andar de um lado para o outro, sem fazer nada. Temos um escrevente e pra que? Ninguém sabe!


Epihódov - Se eu trabalho ou não trabalho, se eu ando ou não ando, como ou não como, jogo bilhar ou não jogo bilhar, só as pessoas sensatas e superiores é que podem julgar minha conduta.


Vária - E tem o topete de me dizer essas coisas! Então eu sou insenssata, não é? Fora daqui!


Epihódov - Rogo-lhe que se exprima com mais delicadeza!


Vária - Vá-se embora, já! Não quero mais te enxergar aqui dentro, ouviu? Estou farta da sua presença! (Epihódov sai e grita da coxia: “Eu vou me queixar!”) O que? Vai voltar outra vez? (Pega a bengala que Firs deixou num canto) Venha que eu lhe mostro! Vem mesmo? Então tome! (Dá uma bengalada, só que em Lopahkin) Desculpe...


Lopakhin - Muito grato pela gentil acolhida.


Vária - Não há de quê.


Voz fora de cena - Chegou o Lopakhin! (Entram Liubov, Pichtchik e Firs)


Liubov - Por que demorou tanto? Onde está Leonid?


Lopakhin - Ele já vem.


Liubov - E então? Houve o leilão? Fale, rapaz!


Lopakhin - O leilão terminou por volta das quatro horas. Nós perdemos o trem, tivemos de esperar até as nove e meia. Ai, estou com dor de cabeça...(Entra Gaiev)


Liubov - Lénia, o que houve? Diga logo, pelo amor de Deus!


Gaiev (Para Firs) - Toma aqui...é sardinha...arenque de escabeche...Eu hoje não comi nada...o que eu sofri! Estou exausto. Venha me ajudar a trocar de roupa, Firs. (Os dois saem)


Pichtchik - E o leilão?


Liubov - Venderam o jardim de cerejeiras?


Lopakhin - Venderam.


Liubov - Quem comprou?


Lopakhin - Eu. (Vária atira as chaves da casa no chão) Sim, fui eu. Quando nós chegamos o Deriganov já estava lá. Leonid Andreievitch só tinha 15 mil rublos, o Deriganov foi logo oferecendo 30 mil, além das dívidas. Vendo isso, me atraquei com ele, ofereci 40; ele 45; eu, 55. Ele ia subindo 5 mil de cada vez, e eu subia 10 mil. E acabou. Dei 90 mil, além das dívidas, o martelo bateu pra mim. O jardim de cerejeiras é meu agora! Meu! Santo Deus! Podem dizer que eu estou bêbado, maluco, que estou sonhando! Não riam de mim! Se meu pai e meu avô saíssem da cova para ver tudo isso que aconteceu, para ver como seu Iermolai, que levou tantas surras, que andava descalço na neve, como um miserável, analfabeto Iermolai, comprou a fazenda mais linda que há neste mundo! Comprei a fazenda onde meu pai e meu avô foram servos, não podiam entrar na cozinha! (Apanha as chaves no chão) Jogou as chaves no chão, quis mostrar que não é mais a dona desta casa...Tanto faz...Toquem, maestros, eu quero ouvir! (Música) Venham todos ver como Iermolai Lopakhin vai sentá o machado nas cerejeiras, venham ver as árvores caindo! Vamos construir casas aqui. E nossos netos e bisnetos hão de ver surgir uma vida nova! (A Liubov) Por que não quiseram me escutar? Minha pobre, cara amiga, agora é tarde...


Pichtchik - Ela está chorando...vamos para o salão, é melhor deixá-la sozinha. Vamos...


Ânia - Mãe...mãezinha...minha mãe querida! Tão linda, tão boa, eu te amo, eu te adoro, eu te bendigo! Venderam o jardim, não há mais cerejeiras - é verdade. Mas não chore, mãezinha, ainda tem toda a sua vida pela frente, seu coração bondoso, puro! Vamos, minha adorada, para longe daqui! Plantaremos um novo jardim, muito mais lindo! Vai ver, vai compreender! Vai sentir, no íntimo da alma, uma alegria profunda, tranqüila como o sol do entardecer! A senhora vai sorrir outra vez, mamãe! Venha, minha querida, vamos!



4º ATO


Cenário - quarto das crianças.




Iacha - Os matutos vieram se despedir. Na minha opinião, Yermolai Alexeievitch, eles são boa gente, mas não têm cabeça. (Entram Liubov e Gaiev)


Gaiev - Você foi-lhes dar seu porta-moedas, Liuba! Assim também é impossível!


Liubov - Não pude resistir. (Os dois saem)


Lopakhin - Por obséquio, uma tacinha de despedida! Não querem? Se eu soubesse não comprava. Pois se é assim, eu também não bebo. Beba você pelo menos, Iacha.


Iacha - À saúde de quem vai, à saúde de quem fica! (Bebe) Posso lhe garantir que esse champagne nunca foi legítimo.


Lopakhin - Oito rublos a garrafa. Que frio está fazendo...


Iacha - Hoje não acenderam o aquecedor. Também, já estamos de partida.


Lopakhin - Do que é que está rindo?


Iacha - De satisfação.


Lopakhin - Já estamos em outubro e lá fora ainda há sol. Um ar parado, tranqüilo. Parece até verão. Vai ser bom para construir. Só faltam 47 minutos para a saída do trem. Temos de ir para a estação dentro de 20 minutos. É bom andar ligeiro. (Entra Trofimov)


Trofimov - Parece que está na hora, os cavalos estão atrelados, o coche esperando.


Lopakhin - E eu tenho de ir para Khárkov. No mesmo trem. Pretendo passar lá todo o inverno. Vadiei demais com vocês. Não posso passar sem trabalho. Não sei o que faço com as mãos, elas ficam balançando, sem jeito, como se não fossem minhas!?


Trofimov - Logo poderá recomeçar suas atividades, tão lucrativas.


Lopakhin - Aceite uma taça.


Trofimov - Não, obrigado.


Lopakhin - E você? Vai para Moscou?


Trofimov - Sim. Vou com eles até a cidade e amanhã sigo para Moscou.


Lopakhin - É. Vai ver que os propfessores até pararam de dar aula - estão só esperando você chegar, não é mesmo?


Trofimov - Isso não é da sua conta.


Lopakhin - Já faz mesmo quantos anos que você estuda na universidade, hein?


Trofimov - Escute: é provável que a gente não se encontre mais, vou lhe dar um conselho. Pare de sacudir assim os braços. É um hábito muito feio, procure perder. E quer saber de uma coisa? Isso de fazer construções e ficar calculando quanto vai arrancar dos veranistas, ficar pensando que eles depois vão virar lavradores independentes, não passa de outra mania, como essa de sacudir os braços. Sinal de inquietação. (Vai sair)


Lopakhin - Se estiver precisando posso lhe dar algum dinheiro para a viagem.


Trofimov - Não preciso.


Lopakhin - Mas você tá sem um vintém!


Trofimov - Não estou não. Recebi de uma tradução. Tá aqui no meu bolso.


Lopakhin - Na primavera eu semeei mil geiras de papoula. E agora depositei no banco 40 mil rublos de lucro líquido. Pois é...se ofereci pra emprestar é porque posso. Deixe de besteira, rapaz. Sou um simples roceiro. Não faça cerimônia.


Trofimov - O seu pai era roceiro, o meu foi farmacêutico. E daí? Isso não quer dizer nada. Você pode me oferecer 200 mil rublos que eu não aceito. Sou um homem livre. Tudo isso que para vocês - tanto os ricos como os pobres - tem tanto valor, para mim não tem a menor importância, é fumaça. Posso passar sem vocês, posso dispensá-los. Sou orgulhoso e forte. A humanidade caminha para a maior felicidade que é possível na terra. E eu estou na primeira fila!


Lopakhin - Será que você chega lá?


Trofimov - Chego sim. Chego ou mostro o caminho para os outros. (Entra Ânia)


Ânia - Mamãe mandou pedir: enquanto ela estiver aqui, por favor, não derrubem as árvores.


Trofimov - Mas que falta de percepção! (Sai)


Lopakhin - Mas claro! (Sai)


Ânia - Levaram o Firs pro hospital?


Iacha - Eu mandei, de manhã. Com certeza já levaram. (Entra Epihódov)


Ânia - Semion Pantaleievitch, por favor, quer indagar se já levaram Firs para o hospital?


Iacha - De manhã eu disse ao Iegor para levar. Não é preciso perguntar mil vezes.


Epihódov - O macróbio Firs, na minha opinião, não tem mais jeito. Definitivamente. Seu lugar agora é com seus ancestrais. E eu só posso invejá-lo. (Entra Vária)


Vária - Levaram o Firs pro hospital?


Ânia - Levaram sim.


Vária - E por que não pegaram a carta pro médico?


Ânia - Temos de mandá-la já. (Sai)


Vária - Iacha, sua mãe veio se despedir. (Sai)


Iacha - É de se perder a paciência. (Entra Duniacha)


Duniacha - Nem um olhar para mim! Está tão indiferente, Iacha! Vai-se embora, vai me deixar!


Iacha - Por que está chorando? Mais seis dias e eu estou de volta em Paris. Amanhã pegamos o expresso e “zás!”, ninguém nos segura. Até nem tou acreditando! Estou farto dessa ignorância!


Duniacha - Me mande uma carta de Paris, sim? Eu estava louca por você, Iacha! Apaixonada! Sou uma criatura sensível, Iacha!


Iacha - Lá vem eles, cuidado! (Duniacha sai. Entram Liubov, Gaiev, Ânia e Carlota)


Gaiev - Vamos embora, temos pouco tempo. Que cheiro de arenque! (Iacha sai)


Liubov - Adeus, minha casa querida...O inverno vai passar, a primavera vai chegar e você não estará mais aqui. Vão te destruir! O que não viram estas paredes... (A Ânia) Meu tesouro, você está radiante, seus olhos brilham como dois diamantes. Está feliz?


Ânia - Muito! Uma vida nova está começando!


Gaiev - De fato, agora está tudo em ordem. Antes da venda do jardim de cerejeiras, estávamos todos aflitos, martirizados, e agora, depois que o problema ficou resolvido, definitivamente, irrevogavelmente, todo mundo está descansado e até de bom humor. Manda a vermelha para o centro! E até você, Liuba, está com um aspecto bem melhor!


Liubov - É. Meus nervos melhoraram, isso é verdade. Consigo até dormir. Breve estaremos juntas, filhinha. Vou viver em Paris com o dinheiro que a tia condessa mandou para comprar a fazenda -viva a titia - mas esse dinheiro não vai durar muito não...


Ânia - A senhora volta logo, mamãe. Não é mesmo? Eu vou estudar para o exame, passo e depois vou trabalhar para ajudar a senhora. Vamos ler juntas uma porção de livros. Nas noites compridas de outono, vamos ler tantos e tantos livros, descobrir um mundo novo, maravilhoso! Volte logo, mamãe!


Liubov - Volto, meu bem. Volto sim. (Entra Lopakhin)


Gaiev - Feliz Carlota! Cantando!


Carlota - Vocês têm de me arrumar um emprego...eu não posso ficar assim.


Lopakhin - Arranjamos, Carlota Ivanovna, não se preocupe.


Gaiev - Todos nos deixam. Vária vai-se embora. De repente, ninguém precisa mais de nós...


Carlota - Na cidade, onde é que eu vou ficar? Enfim, tanto faz....(Entra Pichtchik)


Lopakhin - O assombro da natureza.


Pichtchik - Meus caros amigos, um copo de água, por favor...


Gaiev - Vai ver quer dinheiro emprestado. Vou-me embora (Sai)


Pichtchik - Faz tempo que não venho vê-la...caríssima senhora! (A Lopakhin) Tome, 400 rublos...ainda fico devendo 840.


Lopakhin - Mas iso é um sonho! Onde foi que arranjou?


Pichtchik - Vieram uns ingleses e descobriram nas minhas terras uma espécie de argila branca. Eu nem sei o que é. (Para Liubov) E 400 para a senhora, prezadíssima. O resto virá depois.


Lopakhin - E esses ingleses, quem são?


Pichtchik - Transferi para eles o direito de explorar a argila por 24 anos. E agora, desculpem...tenho que ver muita gente! Eu devo a todo mundo! Saúde! Quinta-feira eu volto!


Liubov - Estamos de mudança para a cidade. E amanhã eu sigo para o estrangeiro.


Pichtchik - O que? Pra cidade? Mas por que? Ah, então é isso...esses móveis, as malas. Bom, Deus há de socorrer. Não há mal que nunca se acabe. E se algum dia chegar aos seus ouvidos que eu também acabei, lembre-se deste cavalo velho! (Sai)


Liubov - Podemos ir. Mas levo duas preocupações. A primeira é o Firs, que está doente.


Ânia - Já mandaram ele pro hospital.


Liubov - Minha outra tristeza é Vária. Está habituada a acordar cedo, trabalhar o dia todo e agora, sem as suas obrigações, parece um peixe fora d’água. Magra, pálida, chorando o tempo todo, pobrezinha. Você sabe muito bem, Yermolai Alexeievitch, o meu sonho era casar vocês dois. E tudo indicava mesmo que iam ficar noivos. (Ânia e Carlota saem) Ela gosta de você, você gosta dela. Não compreendo porque é que vocês agora parecem estar fugindo um do outro!


Lopakhin - Francamente, eu também não compreendo. Mas se não fôr tarde demais, eu estou pronto. Vamos liquidar de uma vez com esse assunto. Mas sem a senhora eu acho que nunca terei coragem...


Liubov - Ótimo! Vou chamá-la! (Sai)


Lopakhin - Temos até champagne! (Entra Vária)


Vária - É esquisito, não sei mais onde eu guardei...


Lopakhin - O que é que você está procurando?


Vária - Eu mesma arrumei numa valise e agora...


Lopakhin - E agora, para onde você vai, Várvara Mikhailovna?


Vária - Eu? Para a casa dos Ragulin. Fiquei de cuidar da casa pra eles. Uma espécie de governanta.


Lopakhin - Lá em Iashnievo? A 70 quilômetros daqui? É...acabou-se a vida nesta casa.


Vária - Pois é...acabou-se. Não volta mais.


Lopakhin - Eu vou para Khárkov.


Vária - Vai?


Lopakhin - Engraçado, como esfriou...três abaixo de zero.


Vária - Não olhei o termômetro... (Uma voz chama “Yermolai Alexeievitch”)


Lopakhin - Já vou! (Sai. Entra Liubov)


Liubov - E então? Bem...temos de ir.(Vária sai. Entra Gaiev)


Gaiev - Minha irmã...minha irmã!


Liubov - Ah, meu jardim! Minha vida, minha juventude, minha felicidade, adeus!


Voz de Ânia - Mamãe!


Liubov - Nós já vamos! (Palco vazio. Entra Firs)


Firs - Foram-se embora...me esqueceram. Não faz mal. Vou descansar aqui um pouquinho. Será que Leonid Andreievitch pôs o sobretudo pesado? Vai ver que saiu com o leve, de verão. É moço, não tem juízo...E eu não estava aqui para vigiar! Vou deitar um pouquinho. Você já não tem mais força, nem nada, Firs. Você já não presta mais para nada...(Deita-se e fica imóvel. As luzes vão caindo, à medida que se escutam os sons dos machados que abatem as cerejeiras)


FIM
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* A presente versão é uma adaptação feita por Lionel Fischer para o Ciclo de Leituras do Tablado (1999) e está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 163






















































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