quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A precisão das falas
e a concretude cênica
em Nelson Rodrigues

Antonio Guedes


          Há sempre muitas maneiras de ler uma peça. É justamente a diversidade de leituras que um texto ficcional possibilita que determina a riqueza de um autor: quanto melhor ele é, mais articulações ele engendra. Um autor torna-se universal na medida em que atinge um grande número de pessoas, vence o tempo e continua a dialogar com o seu público, continua a fazer sentido para além de sua época e de sua cultura de origem.

          Mas, na verdade, esse lugar-comum sobre os clássicos refere-se, em geral, exclusivamente ao sentido da história contada. E Nelson Rodrigues, a partir dessa perspectiva, apresenta, em suas peças, em suas crônicas e em seus folhetins, um manancial de possibilidades de leituras porque se, por um lado, suas histórias têm um aspecto singular, como se só pudessem acontecer com aqueles personagens, por outro lado, dão a impressão de que todos nós ou vivemos ou conhecemos uma história parecida. ..Mesmo se nos prendermos apenas ao sentido das histórias rodriguianas, já encontramos uma infinidade de possibilidades de leituras, associando-as às nossas experiências ou às experiências que conhecemos.

          Entretanto, quando pensamos na importância de Nelson para o teatro moderno - o que imediatamente nos remete a Vestido de noiva - somos lançados em outra dimensão da compreensão da linguagem da cena, nos deparamos com outra maneira de pensar sobre a função da fábula contada no palco. Somos obrigados a olhar para as deliciosas histórias que Nelson conta de uma maneira estrutural, ou seja, para além - ou aquém? - do sentido.

          Vamos tentar entender o que estou chamando de modernidade no teatro. Desde o naturalismo, que considera a cena como o lugar da simulação da imagem do mundo, levanta-se, como seu contraponto, a questão da teatralidade que pensa a cena não como um espaço de representação da realidade, mas como um espaço que se mostra com uma realidade própria. Pensemos na cena de Meyerhold e nos seus cenários construtivistas; lembremos do seu ator e da biomecânica como uma forma de estudar e decupar o movimento do corpo considerado como uma engrenagem produtora de sentidos. Pensemos também na cena proposta por Brecht, uma cena cuja estrutura está exposta, sem ilusionismos, sem mágica, sem truques, trabalhando um ator que se mostra, ora como personagem, ora como suporte de um personagem; ora imagem de uma história, ora articulador dessa mesma história.

          Nas artes plásticas, vamos lembrar de Picasso e de sua necessidade de abarcar a figura em todas as suas dimensões, de dar conta do que a perspectiva linear não dava: expor todas as faces de uma figura. E, como resultado da realização dessa necessidade, temos um quadro que, além de revelar a figura como um todo, revela também o caminho trilhado até aquele resultado, vemos a operação de construção, de realização daquela motivação inicial - abarcar toda a figura -, vemos, enfim, para além do tema, para além (ou aquém?) do enredo, vemos a própria pintura.

          E, apenas para não ficarmos em um único exemplo, vamos pensar em Joan Miró, que construía com pintura jogos de decifração de enredos, enígmas pictóricos que só seriam decifrados a partir do título que se torna indissociável da obra. E, nesses jogos, uma nova função da pintura se apresentava: revelar imagens sem deixar de ser pintura ou, por outro lado, revelar a pintura sem deixar de indicar a possibilidade de haver, ali, uma história.

          A modernidade vai, justamente, problematizar a possibilidade de representar a realidade, chamando a atenção para o que há de mais real na operação artística: o suporte. E vai considerar o enredo tanto como elemento representado pelo suporte, como o enredo, ele mesmo, suporte de sentidos. A modernidade vai, enfim, fazer o caminho de afastamento de uma operação mimética - que criava uma cena que se remetia ao que ela não era, se remetia a algo que não estava REALMENTE ali - para se aproximar de uma cena concreta, uma cena cuja realidade está exatamente ali, no lugar para onde se olha. A modernidade sai de um teatro que se fazia esquecer enquanto tal, para chamar a atenção para a teatralidade do teatro.

           Ângela Leite Lopes costuma se referir a um momento do processo de criação de Vestido de noiva, no qual Ziembinski propõe que Nelson termine a peça no momento em que Alaíde morre. Mas Nelson se recusa, porque a peça não trata apenas da agonia do personagem. O fato de Alaíde morrer não significa que a experiência da cena, a experiência que está sendo proposta, chegou ao fim. E a pergunta é: se não é Alaíde quem deve ser revelada pela cena, o que Nelson quer revelar?

          A história da morte de Alaíde se mostra pela articulação entre a realidade, a alucinação e a memória. A partir desses três planos é que o personagem é revelado. A cena se sustenta, portanto, graças a essa estrutura e, graças ao jogo entre esses três âmbitos da vida, Alaíde é revelada. Vestido de noiva tem, portanto, como núcleo, como fio condutor, a convivência entre esses três planos. Esses planos não são parte dos diálogos, não são objeto do discurso; eles são a própria estrutura da peça. A fábula brota do jogo entre eles. Portanto, são eles que estão além (ou aquém?) da história.

          É como pensarmos na arquitetura do Centre Georges Pompidou. O edifício é o tema, entretanto, sua estrutura é o que aparece em primeiro lugar. Como um prédio eternamente em construção. Um lugar que chama a atenção para o fato de que seu sentido é uma construção. Alaíde é uma construção articulada pelos planos que estruturam sua história, dão sustentação e existência ao sentido do personagem. Com todas as contradições e com todas as idiossincrasias características de um personagem.

          Mas não estaríamos superestimando as intenções de Nelson? Teria ele consciência dessa articulação e da modernidade da sua cena?

          Em 1989, quando ia montar Valsa nº 6, procurei Nelson Rodrigues Filho para conversar sobre os direitos autorais da peça. Ao fim da conversa, ele me disse: "Mestre, atende a um pedido do meu pai: não mexe nas falas, não. Ele sempre dizia que tinha levado muito tempo pra escolher aquelas palavras, que escolheu uma por uma. Então, não mexe nisso, não".

          Então, buscando entender a importância das falas para Nelson, recorro à composição desta fala de Arandir em O beijo no asfalto:

ARANDIR (repetindo para si mesmo) - Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira) Eu sei o que "eles" querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada) Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento) Só pensando no beijo no asfalto! (com mais violência) Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: - se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! "Eles" não percebem que alguém morria?

          Toda entrecortada, essa fala constrói uma aparência de fala cotidiana. E, além disso, tem uma pontuação bem característica: "Quer dizer que. Me chamam de assasino e." Ele não usa reticências, maneira habitual de grafar uma fala interrompida. Mas ele não usa porque a frase não está interrompida, ela termina ali. Não é uma sugestão de interrupção. Esta é a frase. Nelson, construindo a fala dessa maneira, não dá margem a que o ator crie pausas a seu bel-prazer; não permite que o ator acrescente um "que" ou um "mas", como às vezes se faz depois de reticências. Nelson constrói uma fala muito precisa, uma fala para ser dita exatamente dessa maneira. As rubricas dão o sentido da interrupção. Ele compõe nesta fala um ritmo determinado pela notação. E uma entonação, esta, sim, sugerida pela rubrica. Essa escrita é uma partitura.

          Então eu entendi o pedido de Nelsinho para que não mexêssemos nas falas da peça. Ao mesmo tempo, fica evidente o quanto Nelson sabia o que estava em jogo na cena que propunha. Há uma estrutura com a qual precisamos dialogar. Há um sentido na história a ser contada, mas o principal é compreender que, em Nelson, essa história deverá ser revelada a partir de uma estrutura que deve mostar-se como estrutura. Dito em outras palavras, Nelson propõe um jogo no qual é a cena que se conta. A cena rodriguiana não é um veículo a serviço da fábula. É uma estrutura que se mostra como um jogo a partir do qual brotam os sentidos.
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Artigo extraído - e aqui reduzido à sua parte incial - da edição nº 29 da excelente revista Folhetim, que tem como editora geral Fátima Saadi. Antonio Guedes é diretor do Teatro do Pequeno Gesto e professor do Curso de Artes Cênicas da Escola de Belas Artes da UFRJ. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

PRÊMIO QUESTÃO DE CRÍTICA SERÁ ENTREGUE NO DIA 6 DE MARÇO NO TEATRO GLAUCIO GILL


          O Prêmio Questão de Crítica, evento de premiação do teatro carioca que consagrará artistas e profissionais que estiveram em cartaz durante o ano de 2011, será realizado no dia 6 de março, quando a revista eletrônica comemora quatro anos de atividades no Rio de Janeiro. A festa, que será no Teatro Glaucio Gill, terá coordenação geral de Daniele Avila, direção de Felipe Vidal e dramaturgia de Felipe Barenco. A apresentação ficará a cargo de Cris Larin e Joelson Gusson.


          As categorias do Prêmio são Dramaturgia, Direção, Ator, Atriz, Iluminação, Cenografia, Figurino, Direção Musical/Trilha sonora, Elenco, Espetáculo e Prêmio Especial. A novidade desta premiação é a categoria Elenco, inédita no Rio de Janeiro. Além disso, montagens produzidas em outras cidades também estão entre os candidatos. Assim como a Revista, o Prêmio não restringe o seu olhar para produções locais.


          Entre os atores indicados, todos têm uma carreira sólida de teatro, especialmente integrando grupos e companhias durante sua trajetória, como a Cia de Ópera Seca, do Gerald Thomas (Fabiana Gugli), Teatro da Vertigem (Sergio Siviero), Cia do Latão e Cia Brasileira de Teatro (Rodrigo Bolzan), Os Fofos Encenam (Luciana Lyra), CPT, do Antunes Filho (Lee Thalor), Atores de Laura (Charles Fricks), Teatro Oficina (Sylvia Prado), Os Fodidos Privilegiados (Dani Barros), Os Dezequilibrados (José Karini).


O projeto conta com um blog http://questaodecritica.com.br/premioqdc, onde são anunciadas notícias ligadas ao Prêmio. A comissão julgadora é formada pelos colaboradores da Questão de Crítica no Rio de Janeiro.


          A Questão de Crítica, que tem sido um espaço de reflexão, de intercâmbio de ideias e de discussão pública, é um empreendimento pioneiro na área das Artes Cênicas, e, com quatro anos de atividades, se estabeleceu de forma legítima como um forte representante do teatro brasileiro – e principalmente do Rio de Janeiro, cidade em que a revista está sediada.


LISTA DOS INDICADOS:



ESPECIAL:


Fátima Saadi e Teatro do Pequeno Gesto pela Revista Folhetim, edição especial sobre Nelson Rodrigues.


Aury Porto pelo roteiro adaptado de O idiota – uma novela teatral


Cia de Teatro Íntimo pela pesquisa do grupo no projeto 8 solos acompanhados


Evaldo Mocarzel e Ava Rocha pela criação do programa Teatro sem Fronteiras, do Canal Brasil


Maria Borba pela pesquisa e criação de Astronautas


Sidnei Cruz e equipe da Assessoria de Cultura da Escola SESC de Ensino Médio pelos projetos de formação de artistas e público para as Artes Cênicas


DRAMATURGIA:


Aderbal Freire Filho por Depois do filme


Felipe Rocha por Ninguém falou que seria fácil


Pedro Kosovski por Outside


Leonardo Moreira por O jardim


Clarice Falcão e Gregório Duvivier por Inbox


DIREÇÃO:


Alex Cassal e Felipe Rocha por Ninguém falou que seria fácil


Cibele Forjaz por O idiota – uma novela teatral


Marcio Abreu por Oxigênio


Leonardo Moreira por O jardim


Christiane Jatahy por Julia


Gilberto Gawronski e Warley Goulart por Ato de comunhão


ATOR:


José Karini por O retorno ao deserto


Rodrigo Bolzan por Oxigênio


Sergio Siviero por O idiota – uma novela teatral


Charles Fricks por O filho eterno


Lee Thalor por Policarpo Quaresma


Rafael Primot por Inverno da luz vermelha


ATRIZ:


Fabiana Gugli por Os 39 degraus


Luciana Lyra por Memória da cana


Sylvia Prado por O idiota – uma novela teatral


Paula Picarelli por O jardim


Carolina Virgüez por Penso ver o que escuto


Dani Barros por Estamira – Beira do Mundo


CENOGRAFIA:


Fernando Marés por Oxigênio


Marcelo Andrade e Newton Moreno por Memória da cana


Sergio Marimba por O retorno ao deserto


Jefferson Miranda e Aurora dos Campos por Você precisa saber de mim


Marisa Bentivegna e Leonardo Moreira por O jardim


Daniela Thomas por Inverno da luz vermelha


ILUMINAÇÃO:


Alessandra Domingues (casadalapa) por O idiota – uma novela teatral


Aurélio de Simoni por O retorno ao deserto


Eduardo Reyes por Memória da cana


Paulo César Medeiros por Mulheres sonharam cavalos


Tomás Ribas por Você precisa saber de mim


Maneco Quinderé por Inverno da luz vermelha


FIGURINO:


Flavio Graff por Outside


Inês Salgado por O retorno ao deserto


Leopoldo Pacheco por Memória da cana


Rosa Magalhães por Penso ver o que escuto


Ronaldo Fraga por Você precisa saber de mim


Theodoro Cochrane por O jardim


DIREÇÃO MUSICAL / TRILHA SONORA ORIGINAL:


Felipe Storino por Outside


Gabriel Schwartz por Oxigênio


Otávio Ortega por O idiota – uma novela teatral


ELENCO:


Ninguém falou que seria fácil: Felipe Rocha, Renato Linhares e Stella Rabello.


O idiota – uma novela teatral: Aury Porto, Fredy Allan, Luah Guimarãez, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sergio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia Prado, Vanderlei Bernardino, Otávio Ortega.


Um dia como os outros/Cozinha e dependências: Analu Prestes, Bianca Byington, Kiko Mascarenhas, Leandro Castilho, Márcio Vito, Silvia Buarque.


Mulheres sonharam cavalos: Analu Prestes/Ana Barroso, Elisa Pinheiro, Isaac Bernat, José Karini, Letícia Isnard, Saulo Rodrigues.


O jardim: Aline Filócomo, Edison Simão, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Mariah Amélia Farah, Paula Picarelli, Thiago Amaral.


Inverno da luz vermelha: André Frateschi, Marjorie Estiano, Rafael Primot.


ESPETÁCULO:


Ninguém falou que seria fácil, do grupo Foguetes Maravilha


O idiota – uma novela teatral, da Mundana Companhia


Oxigênio, da Companhia Brasileira de Teatro


O jardim, da Cia Hiato


Estamira – Beira do Mundo


Inverno da luz vermelha


COMISSÃO JULGADORA PRÊMIO QUESTÃO DE CRÍTICA


Daniele Avila – Coordenação Geral, membro da comissão julgadora


Idealizadora da revista, editora e crítica do Rio de Janeiro. Responsável pela direção geral do projeto. Crítica de teatro e tradutora. Mestranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio, é bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. De 2006 a 2008, escreveu regularmente críticas de espetáculos e ensaios no blog Quero ser Susan Sontag. Em 2007, foi curadora-assistente das atividades formativas do festival Riocenacontemporanea e coordenou uma oficina para jovens críticos neste festival. Em 2008, criou a Questão de crítica – revista eletrônica de críticas e estudos teatrais, da qual é editora e onde publicou diversas críticas de espetáculos e traduções de importantes textos teóricos sobre teatro. Em 2009, traduziu a peça In On It de Daniel MacIvor, que estreou no Oi Futuro com direção de Enrique Diaz. Participou como crítica convidada da V Mostra Cena Breve Curitiba. É integrante do júri de teatro do Jornal do Brasil e do Prêmio APTR de Teatro. Em 2010, traduziu a peça Tentativas contra a vida dela, de Martin Crimp, que estreou no CCBB-DF, com direção de Felipe Vidal, e em agosto fará temporada no Rio. Atualmente, é curadora do ciclo de debates Observatório Constante, que acontece uma vez por mês no Espaço Cultural Sergio Porto, e Diretora Artística do Teatro Gláucio Gill, com Felipe Vidal, na Ocupação Complexo Duplo.


Dinah Cesare – Produtora e membro da comissão julgadora


Idealizadora da revista e crítica do Rio de Janeiro. Bacharel em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (a grade do curso contém disciplinas de história e teoria da arte e das artes cênicas, de estudos de filosofia, de estética clássica, moderna e contemporânea, de estética da recepção e de noções de psicologia). É mestranda em Artes Cênicas na UNIRIO. Em 2008, criou a Questão de Crítica - revista eletrônica de críticas e estudos teatrais. É coordenadora artística do Instituto do Ator, escola de especialização de atores, e trabalha como atriz no Studio Stanislavski, grupo dirigido por Celina Sodré.


Humberto Giancristofaro – Produtor e membro da comissão julgadora


Escritor e roteirista, é mestrando em Filosofia na UFRJ e bacharelado em Filosofia no departamento de Artes e Filosofia da Universidade Saints-Denis Paris VIII, em convênio com a UFRJ. Desde 2008 tem bolsa de Iniciação Científica do CNPQ orientado pelo o Prof. Roberto Machado na área de Filosofia da Arte. Trabalha como pesquisador e roteirista para o cartunista Ziraldo, é responsável pela confecção de materiais paradidáticos, almanaques e cartilhas da Turma do Menino Maluquinho entre outros personagens. É sócio-colaborador da Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais.


Denize Barros - Identidade visual, criação de peças gráficas e do blog do Prêmio


Diplomada em Design Industrial / Programação Visual com especialização em criatividades e processos de criação pela UFPE onde também ensinou como professore do curso de design gráfico disciplinas como: Design Experimental, Produção Gráfica, Moda, Cultura e Estilo, Linguagem Visual. Há quinze anos no mercado de design, desenvolve trabalhos nas áreas de: Assessoria em Comunicação Visual, Sistemas de Identidade, Design de Produto e Interfaces, Sinalização e Impressos. A Confraria Criativa de Design Original é um estúdio de criação coletiva especializado em comunicação visual e design gráfico. Conta com profissionais estabelecidos no mercado, com trabalhos e projetos nas mais diversas áreas. www.criareal.com.br


Daniel Schenker – membro da comissão julgadora


Daniel Schenker Wajnberg é professor de Teoria do Teatro da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), repórter e crítico de teatro do Jornal do Commercio, colaborador na área de crítica de cinema do Jornal do Brasil e do site www.criticos.com.br, e crítico de teatro da revista Isto É – Gente. Integrou os júris da Fédération Internationale de la Presse Cinématographic nos festivais de cinema de Fribourg, Miami e Rio de Janeiro e foi membro do júri do Fate (Fundo de Apoio ao Teatro) do Rio de Janeiro. Publicou o texto Artur Azevedo: Um dramaturgo em conflito, na Revista Brasileira, publicação da Academia Brasileira de Letras nº 52, e participou de entrevistas transcritas no livro Vestindo Nelson, organizado por Alexandre Mello e Gustavo Nunes. Sob a direção de Celina Sodré, no Studio Stanislavski, atuou nas performances Evangelho segundo Nossa Senhora de Copacabana e Páscoa, baseadas, respectivamente, em A Fúria do Corpo e A Redoma de Cristal, de João Gilberto Noll e Sylvia Plath.


Dâmaris Grün – membro da comissão julgadora


Graduada em Teoria do Teatro na UNIRIO e colaboradora da revista eletrônica Questão de Crítica desde 2008, é atriz formada na Escola de Formação de Atores da UniverCidade. Participou por quatro anos do Grupo A.R.Te., sob direção de Vitor Lemos, atuando nos espetáculos Brecht na Cidade (A exceção e a Regra) e Ato Brecht ( Mahagony e Vida de Galileu). É curadora do ciclo de debates Encontro Pensamento, que acontece uma vez por mês no Teatro Gláucio Gill.


Raphael Cassou – membro da comissão julgadora


Iniciou seus estudos teatrais cursando a Escola de Formação de Atores de Teatro, Tv e Cinema da UniverCidade em 2001. Ingressou em 2005 no curso de Teoria do Teatro da UNIRIO. Em 2009 participou como aluno-pesquisador da VIII Jornada de Iniciação Científica da UNIRIO apresentando o trabalho intitulado: ”A aproximação entre a cenografia e a museologia na obra da arquiteta Lina Bo Bardi e sua contribuição para as Artes e a Arquitetura Brasileira”. Trabalhou no Festival Riocenacontemporânea como intérprete/tradutor acompanhando a Cia Forced Entertainment da Inglaterra, durante suas performances. Trabalhou na Escola SESC de Ensino Médio, órgão vinculado ao Departamento Nacional do SESC, na assessoria de Cultura. Atualmente é colaborador da revista eletrônica Questão de Crítica (www.questaodecritica.com.br)


Pedro Allonso – membro da comissão julgadora


Tem graduação em Artes Cênicas, habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Iniciou sua carreira artística no ano de 1999 quando ingressou na Escola de Teatro da FAETEC. Como ator, realizou os seguintes trabalhos: O Inspetor Geral, texto de Nikolai Gogól, direção de Beto Bruno, no Teatro Dulcina (2000); O Rapto das Cebolinhas, de Maria Clara Machado, direção de Ivan Rodrigues Alves e Cícero Raul, no Teatro Municipal de Angra dos Reis (2002) e In Tre Sonhos, texto e direção de Undré T, no Teatro Municipal de Cabo Frio (2005). Em 2010, elaborou e apresentou a performance "Carne", baseado em romance de Júlio Ribeiro, no XIV Encontro Nacional dos Estudantes de Artes, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. Foi assistente de produção executiva do espetáculo 3,14, de Alan Castelo, no Teatro 2 do SESC Tijuca (2005) e participou dos Festivais de Esquetes de Cabo Frio e de Maricá (2005). Atualmente, colabora para a revista eletrônica Questão de Crítica.


Mariana Barcelos – membro da comissão julgadora


Atriz e pesquisadora, graduanda em Teoria do Teatro pela UNIRIO. É colaboradora da revista eletrônica Questão de Crítica e do Fórum de Literatura e Teatro da UFRJ, bem como do projeto @dramaturgia, antologia digital de dramaturgia contemporânea, que será lançado em setembro de 2011 com o patrocínio da Secretaria Estadual de Cultura.



INFORMAÇÕES PARA IMPRENSA:


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Bianca Senna – bianca@astrolabiocom.com.br - (21) 7928-0055

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"Dorian"

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Séria adaptação de obra-prima


Lionel Fischer


Poeta, novelista e autor dramático irlandês, Oscar Wilde (1856-1900) estudou em Dublin e em Oxford, onde, sob a influência do Simbolismo francês, desenvolveu suas idéias "decadentistas". Defensor da arte pela arte, amoral e antiburguês, encabeçou o movimento "fim de século" inglês. Dentre suas peças mais famosas destacam-se "Salomé", "Uma mulher sem importância", "O marido ideal" e "A importância de ser honesto".

No entanto, o presente projeto da Companhia de Teatro Íntimo é uma adaptação teatral do único romance escrito por Wilde: "O retrato de Dorian Gray". Em cartaz no Teatro Glaucio Gill, a montagem leva a assinatura de Renato Farias, estando o elenco composto por Augusto Garcia (Dorian), Thiago Mendonça (Basil Hallward), Rafael Sieg (Lord Wotton), Letícia Cannavale (Sybil Vane), Caetano O'Maihlan (Jim Vane), Fernanda Boechat (Lady Wotton e outros) e Hugo Resende (Adrian e outros).

"O retrato de Dorian Gray" causou escândalo e controvérsia na Inglaterra vitoriana. Dorian é um homem rico que vende sua alma em troca da juventude eterna. A passagem do tempo não altera sua aparência, mas sim a de seu retrato mágico, que não apenas envelhece, mas sobretudo revela sua decadência interior. Expressando as preocupações estéticas e os paradoxos morais de Wilde, a narrativa constitui uma reflexão sobre o envelhecimento, o prazer, o crime e o castigo.

Trata-se, sob todos os pontos de vista, de uma obra-prima, e a presente adaptação não deixa de exibir méritos. No entanto, é sempre muito difícil converter literatura em teatro, pois este pressupõe ação, embate entre personagens, o que implica em renunciar a muitas e pertinentes reflexões empreendidas pelo autor. Seja como for, a montagem certamente faculta ao espectador uma aproximação séria e digna com o romance de Wilde.

Ainda assim, cumpre ressaltar que, por mais que tenha me esforçado, não consegui entender as razões que levaram o diretor Renato Farias a fazer com que os atores estabeleçam uma permanente e direta relação com o público, incluindo a distribuição de frutas e de bebidas. Esta forma de inclusão me pareceu gratuita e desnecessária, mesmo que compensada por marcações inventivas e expressivas.

Com relação ao elenco, todos os atores se entregam com paixão aos personagens que interpretam, e o resultado geral é quase sempre  convincente. Mas me permito sugerir que prestem mais atenção aos finais de frase, muitas vezes incompreensíveis.

Na equipe técnica, Thiago Mendonça responde por irretocáveis figurinos, desenhos e pinturas, sendo de excelente nível a iluminação de Rafael Sieg e a cenografia de Melissa Paro.

DORIAN - Texto de Oscar Wilde. Direção de Renato Farias. Com a Companhia de Teatro Íntimo. Teatro Glaucio Gill. Sábado, domingo e segunda às 21h.   
Teatro/CRÍTICA

"As regras da arte de bem viver
na sociedade moderna"

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Divertida crítica ao aprisionamento


Lionel Fischer


Elegantemente vestida e sentada numa poltrona vermelha, uma mulher observa atentamente a chegada do público. Quando este se acomoda, inicia um curioso discurso, que começa abordando o nascimento de uma pessoa (e seu posterior registro em cartório), passa pelo batismo, namoro, noivado, casamento, bodas de prata, bodas de ouro, falecimento, luto e retomada da vida.

Quem é essa mulher? Jamais chegamos a saber. A que época pertence? A dúvida permanece. O que objetiva? Ao que tudo indica, fornecer à platéia um detalhadíssimo plano de ação que deve ser rigorosamente cumprido para que nada abale as relações entre as pessoas, para que nada fira a indispensável etiqueta. Em resumo: uma espécie de manual sobre "As regras da arte de bem viver na sociedade moderna".

O texto, de autoria do francês Jean-Luc Lagarce (1956-1995), é a mais nova empreitada da L'Acte - Atos da Criação Teatral, que desde 1977 tem levado para a França peças de autores brasileiros (Nelson Rodrigues, Plinio Marcos e Roberto Alvim) e que no Brasil tem privilegiado autores franceses como Serge Valletti e Valère Novarina. Em cartaz no Porão da Casa de Cultura Laura Alvim, o presente texto chega à cena com adaptação de Lorena da Silva e Miguel Vellinho, estando a atuação a cargo de Lorena e a direção de Miguel.

Como dito acima, jamais chegamos a saber exatamente quem é a mulher que nos recebe no teatro. Tudo o que sabemos, em função do que nos informa o programa, é que o autor teria baseado seu texto num manual de boas maneiras do final do século XIX da Baronesa de Staffe, e que o mesmo se estrutura em alguns dos muitos rituais católicos. Ainda assim, a dúvida permanece: o que terá efetivamente pretendido Jean-Luc Lagarce ao escrever "As regras da arte de bem viver na sociedade moderna"?

Acredito que muitas leituras possam ser feitas. A minha me diz que o autor pretendeu criticar, de forma implacavelmente metódica e por isso muito divertida, o aprisionamento daqueles que se submetem a todos os rituais que lhes são impostos, que regem não apenas suas ações, mas sobretudo suas emoções.

Estando todas as coisas colocadas em seus devidos lugares, certamente usufruímos uma suposta tranquilidade, posto que nos comportamos exatamente como a sociedade dominante espera que nos comportemos. No entanto, se assim agimos, abdicamos de nossa singularidade, nos tornamos previsíveis e a vida passa a transcorrer isenta de espantos. E uma vida totalmente programada, convenhamos, torna-se mortalmente tediosa.

No tocante ao espetáculo, Miguel Vellinho impõe à cena uma dinâmica austera e despojada, valorizando ao máximo o que de fato importa: o ensandecidamente lógico, sensato, hirariante e verborrágico discurso da elegantíssima conferencista.

Esta é vivida com notável competência por Lorena da Silva, que sabiamente opta por um tom de voz sem maiores oscilações, o que certamente contribui para tornar ainda mais risíveis os espantosos detalhes de cada um dos comportamentos que devem ser adotados, fato que nos remete, ao menos em alguma instância, ao Teatro do Absurdo.

Com relação à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos - Alexandra Moreira da Silva (tradução), Joice Niskier (direção de movimento), Carlos Alberto Nunes (cenografia), Luciana Cardoso (figurino) e Renato Machado (iluminação).

Finalmente, não posso deixar de registrar o fato de Lorena da Silva ter dedicado este espetáculo a Fábio Junqueira, que nos deixou há alguns anos, seu primeiro professor de teatro e com quem viveu uma belíssima história de amor, interrompida quando a morte nos privou do querido ator e diretor.

AS REGRAS DA ARTE DE BEM VIVER NA SOCIEDADE MODERNA - Texto de Jean-Luc Lagarce. Direção de Miguel Vellinho. Atuação de Lorena da Silva. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
       

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Eugenio BARBA

Odette Aslan


          Dir-se-á sempre que ele é o discípulo de Grotowski. De fato, Eugenio Barba participou ativamente da elaboração dos exercícios grotowskianos tanto em Opole quando em Wroclaw, desde janeiro de 1962. Contribuiu para que se conhecesse Grotowski, depois fundou seu próprio laboratório em setembro de 1964, em Holstebro. Grotowski reconhece que Barba vai mais longe que ele no desenvolvimento das "associações", que é mais livre no caminho traçado, menos tributário das fórmulas de ontem. Seu falanstério, idêntico ao de Opole em espírito, é talvez mais rigoroso ainda quanto à disciplina e à ascese. Mas, na cebeça das pessoas, Barba continua sendo "o segundo".

A exigência de Barba

          A disciplina para o comediante é mais importante que o dom artístico. Ter talento não consiste em conhecer bem o ofício, porém questioná-lo, recusar soluções prontas, possuir espírito de pesquisa. O solicitante é admitido por um ano de experiência, ao cabo do qual se decide se ele fica ou não. Esta decisão se fundamenta em seu caráter, sua moral, sua ética, "não em seu talento, que será visto 15 anos depois".

          O comediante deve interessar-se pela vida em grupo, mergulhar nos problemas que ela propõe e não somente estudar a história das teorias teatrais. Deve ser lúcido diante da vida, ter uma atitude de impulso para o outro, o desejo de fazer a sociedade mudar, de se mudar, ter força de alma e perseverança. Quanto ele atua, é como se apresentasse seu testamento, "como se fosse a última vez que tivesse algo para comunicar aos outros, para entrar em contato com eles".

          Barba interroga-se sobre o problema da fraternidade, da comunicação com o outro, num mundo ameaçado pelo apocalipse atômico. Tendo criado um instituto de pesquisa para a formação do ator, ele deseja que lá se espalhe um ensino pela Escandinávia, por toda Europa. Publica uma revista teatral, organiza seminários internacionais sobre os problemas do jogo do ator, completa o inventário das teorias do passado. Dedica muitas horas ao treinamento.

O Treinamento

          Em uma granja desativada, um local nu, austero, o ator é submetido a um treinamento comparável ao de Grotowski.

CORPORAL

          Biomecânica e acrobacia são exploradas até perigosamente se for preciso. Cumpre vencer o medo tal qual os acrobatas de circo. Como em Grotowski, cada exercício é motivado: o salto, por exemplo, justifica-se pela vontade de ver o que se passa além do muro. Inspira-se em movimentos de animais, como em Dullin, Meyerhold ou os atores da commedia dell'arte. Os exercícios de Delsarte, a ópera chinesa e o kabuki são igualmente utilizados. Durante quatro horas a fio o ator não tem direito a descanso algum. Deve quebrar suas resistências musculares. Para a respiração, ele se inspira na hatha yoga.

VOCAL

          O corpo todo entra em ação para deixar a voz sair. Exploração das caixas de ressonância. Barba negligencia os exercícios de dicção.

TEATRO POBRE

          Nos espetáculos (longamente elaborados), o espaço cênico só é modelado pela disposição dos espectadores em relação aos atores. Às vezes, os atores utilizam pequenas plataformas em sua área de desempenho (eles mesmos as desenharam para Kaspariana). O ator decide também o tecido com o qual se cobre (nada de roupa cosida) durante a atuação. Os projetores são instalados de modo fixo, sem eletricistas para manipulá-los. Os efeitos de luz são criados pelo deslocamento dos atores que escondem ou descobrem a luz ao passar diante dela. Nada de maquinistas, nem de pessoal técnico.

          Os espetáculos são elaborados a partir de improvisações sobre um tema dado ou não por um autor. Nada é definitivo após a criação em público, há mutação constante. Improvisa-se de novo, ensaia-se de novo, à tarde, o espetáculo feito na véspera, a pesquisa não pára nunca. Quando se pergunta a Barba sobre a ambigüidade de um desenlace, ele se esquiva como tantos outros: "o mais importante é o que os espectadores imaginam, nós deixamos o problema em aberto".

          Em Os Ornitófolos, Kaspariana ou Ferai, Barba analisa nossa herança moral, cultural, ele se pergunta o que convém transmitir à geração seguinte. Os comediantes do Odin Teatret se interrogam e dão a tais problemas sua solução pessoal, construindo assim o espetáculo.

          De Stanislavski, a cujo propósito Grotowski comentava que ele havia levantado os problemas técnicos do ator, mas que era conveniente dar-lhes outras soluções, Barba guardou sobretudo a importância de um modo de vida, de uma disciplina. No Odin Teatret, não basta dizer que a ética reage à técnica; a ética é primordial, como testemunha esse texto:

          Só se pode preparar uma vida nova nas catacumbas. Eis o lugar daqueles que, em nosso tempo, procuram um engajamento espiritual e não temem o confronto difícil. Isto pressupõe coragem: a maior parte das pessoas não tem necessidade de nós. O seu trabalho é uma forma de meditação social sobre você mesmo, sobre a sua condição de homem numa sociedade e sobre os fenômenos que o tocam no mais profundo do seu ser, através das experiências do nosso tempo. Cada representação nesse teatro precário, que choca o pragmatismo cotidiano, pode ser a última, e você deve considerá-la como tal, como sua possibilidade de atingir a você mesmo, legando aos outros a prestação de contas dos seus atos, o seu testamento. Se o fato de ser ator significar tudo isto para você, então um novo teatro vai nascer, isto é, uma nova maneira de apreender a tradição literária, uma nova técnica. Uma relação nova se estabelecerá entre você e os homens que vêm vê-lo à noite, porque eles precisam de você. (Eugênio Barba, "Lettre a l'Acteur)

          O universo concentracionário pesa sobre nós. A crueldade assalta o homem por todos os lados. A injustiça e o ódio os destroem. A vida de Abel é apenas uma lenta crucificação sob a ameaça de Caim. Não é mais suficiente dizer ao espectador: reflita, mude, faça o mundo mudar. Cabe ao ator renovar sua atitude em relação à vida, determinar uma nova abordagem de sua arte; oferecer em holocausto o seu conhecimento da arte e sua própria transformação pessoal. Visto por Eugenio barba, este ofício impõe exigências tais que somente alguns poucos nele persistem.
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Extraído de "O ator no século XX", Editora Perspectiva  

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"Le Livre Des Danses"

          O termo "danças" não é exato. Os atores, a partir de suas experiências e improvisações, realizam o espetáculo. Com seus tambores e flautas, fitas coloridas e bastões, impregnam todo o ambiente de uma energia inimaginável. Sua expressividade é tal que conseguem transformar acessórios em elementos teatrais tão importantes quanto cada um deles. Em mãos inadequadas, um tambor é sempre um tambor. Aqui, o objeto se torna ator.

          Recusando o puro exibcionismo, esses jovens execpcionalmente preparados, que ensaiam oito horas por dia, nos revelam um mundo de potencialidades expressivas do nosso em geral tão desprezado corpo. Quanto ao enredo, como normalmente é concebido, não existe. Não há uma história a ser contada. São as energias trocadas a cada momento e, conseqüentemente, as relações estabelecidas que formam, para cada espectador, a "sua história".

          Quando um ator se aproxima, balbuciando palavras numa língua estranha cujo sentido imediato nos escapa, mas cuja maneira de dizê-las nos atrai ou intriga de alguma forma, para que estabeleçamos uma relação com ele é necessário renunciar à compreensão do texto literário e tentar captar as sugestões sonoras nele contidas. Se conseguimos isso, ou seja, perceber e sentir por vias que não as habituais, cotidianas, terá sido dado um grande passo para que a nossa sensibilidade viva, e todo o nosso ser se transforme. Então, o contato com o Grupo Odin se torna uma experiência inesquecível.

          Não escutamos mais a música, a vemos! Os atores perdem suas características históricas e não são mais eles que se degladiam e acariciam, mas nossos sentimentos básicos, nossas aspirações e anseios que se materializam diante de nós, revelando-nos como somos: inseguros, carentes, sonhadores. As potencialidades e fraquezas humanas nos são expostas, e talvez por se encontrarem tão próximas não saibamos imediatamente o que fazer com elas.

          Mas creio que, em todos nós, ainda que de formas diversas, as sementes foram plantadas. E as condições que lhes permitirão florescer estão em nós, dependendo apenas de nosso esforço no sentido de criar as circunstâncias indispensáveis. Se tudo na vida pode e deve ser sentido de vários ângulos diferentes, é preciso somente estar atento, vigiar nossa preguiça e acomodação, que em geral nos fazem eleger o meio mais fácil, o lado supoerficial, ocultando-nos o significado mais profundo de nossas vivências.
É preciso não esquecer que quando cumprimentamos alguém, muito mais verdadeiro que o intercâmbio de falas é o contato das mãos.
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Este texto foi escrito por mim, em 1977, após assistir ao espetáculo do Grupo Odin em Paris, no Festival de Outono, e está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 75, edição já esgotada. Tinha na época 27 anos e estudava teatro na Cité Universitaire, com o alemão Wolfrang Mërring.(LF)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

FUTURISMO

DADAÍSMO
SURREALISMO


Odette Aslan



           O espírito novo às vezes abre seu caminho à força. A representação de Ubu-Rei escandalizou em 1896. As Mamas de Tirésias provocaram torcidas de nariz em 1917. Os dadaístas, futuristas e surrealistas desencadearam violentos tumultos.


           Embora Jarry tenha sido poeta simbolista, sua peça Ubu-Rei envereda por outro caminho. Ele pretende que ela seja representada por personagens mascaradas, semelhantes a grandes marionetes. Para corcovear, Ubu deve ter uma cabeça de cavalo de papelão pendurada no pescoço, "como no antigo teatro inglês".


          No momento da criação, os comediantes não se preocuparam com o sentido exato das frases ou das palavras fantasiosas do texto: "Não ocorreu a nenhum de nós a idéia de nos informarmos sobre o significado das palavras que pronunciávamos. O que nos agradava era justamente o fato de não as compreendermos" (Firmin Gémier).


          O cenário é muito pouco figurativo: cartazes pendurados indicam o lugar da ação. Para significar que se abre uma porta, um comediante estende o braço; Gémier põe uma chave na mão de seu parceiro como numa fechadura, imita o barulho da lingüeta e vira o braço; isto mostra que a porta está aberta. Para descer uma encosta, Os Palotins, com ametade do corpo escondida atrás de um biombo, flexionam progressivamente os joelhos. Tudo isso parecia ao espectador da época afrontoso, provocante.


          Jarry especificou sua teoria cênica num artigo intitulado "De l'inutilité du théâtre au théâtre". Ele é contra o cenário realista, o telão pintado. Ele quer uma "essência" de cenário, um fundo neutro, em que cada um imagina o que quiser a partir de cartazes escritos. Quando se precisa abrir ou fechar uma janela, esta é trazida à cena como um acessório. É um teatro sintético, desmistificado.


          Jarry também recusa a maquiagem, por que "os músculos permanecem os mesmos sob um rosto disfarçado e pintado". É melhor esconder o verdadeiro semblante do ator com uma máscara-caráter (por exemplo, o avarento). Para dar-lhe alguma expressão, Jarry sugere que "através de lentos movimentos de cabeça, de cima para baixo e de baixo para cima, e vibrações laterais, o ator desloque as sombras por toda a superfície de sua máscara".


          Além do mais, cumpre-lhe encontrar uma voz especial que faça falar a máscara-personagem. Pouco importa se a emissão for monótona. Já aparecem nessas preocupações o esboço de um grande movimento de renovações.


          Depois de Ubu, o teatro do século XX procura encontrar-se. Além da reação contra o naturalismo, a nova cena se caracteriza por:


. O sentido da provocação, do espicaçar, a vontade de destruir a tradição, de matar o luar sentimental e o academicismo burguês. Espírito de escárnio, de zombaria do futurismo e do surrealismo.


. A desintegração da linguagem. Apollinaire suprimiu a pontuação e pregou a inverossimilhança. A intriga desaparece, o texto explode, torna-se absurdo; busca-se uma escrita "inconsciente": a linguagem automática do surrealismo, ou a construção não compreensível do zaum russo. A tendência é no sentido de uma linguagem falada, que não parece ser premeditada. A estrutura da peça bem feita é sacudida como um coqueiro.


. A explosão da noção de personagem. Esta se decompõe, torna-se imprecisa; ela pode ser um objeto.


. A fragmentação da noção de autor: o encenador reconstrói a peça e converte-se em co-autor. Nada de reconstitução histórica, nada de fidelidade ao autor do "argumento".


. A fragmentação do espaço: o local da cena se remodela.


Futurismo


          Teoria atribuída ao italiano Marinetti, desenvolveu-se principalmente na Itália, na França e na Rússia, de 1909 a 1930. Mais que os dadaístas e os surrealistas, os futuristas voltaram-se para os problemas cênicos. Marinetti é contra o drama psicológico, a verossimilhança, o tema do amor. Os cenógrafos e encenadores futuristas preconizam a não-obediência ao autor, o não-respeito à exatidão histórica, a intrusão da modernidade na cena, a orientação mais para o music hall do que para um teatro dramático.


Surrealismo


          Não entraremos aqui na discussão dos que querem estabelecer ordens hierárquicas ou cronológicas entre cubismo, futurismo, dadaísmo ou movimento dadá e surrealismo. Peças dadás representadas por seus autores ou peças futuristas apresentadas no Laboratoire d'Art et Action parecem gotas d'água diante das peças por vezes classificadas sob a rubrica surrealista. Por isso, nós as trataremos em conjunto. Queremos apenas salientar de início o que foi o espírito dadá nesse movimento art nouveau de antes e depois da guerra 1914-1918.


Dadá


          Nasceu no Cabaret Voltaire, em Zurique, por volta de 1918, com Hugo Ball, os romenos Marcel Janco e Tristan Tzara, o alsaciano Hans Arp e o alemão Richard Huelsenbeck. O movimento dadaísta estendeu-se à Europa e à América. Inimigo da compartimentação das artes, zombava de pintores, poetas e músicos. Não era uma estética particular, mas um comportamento: insubmissão a tudo, recusa de impasses intelectuais, da lógica, da razão, do banal, uma regressão à infância, uma volta ao começo.


          No dadaísmo florescia o anarquismo, o niilismo, o espírito do espicaçar, a revolta contra o primado da máquina. Exibicionista, não escondia seu gosto pelas manifestações públicas, até as procurava, provocando os espectadores para melhor se afirmar, mas quase sem utilizar atores profissionais para interpretar as peças inseridas em programas em que leituras de poemas se alternavam com manifestos e canções de inspiração dadá, ocorridas "por acaso".


          Considerando que a linguagem estava convertida a uma banalidade jornalística desprovida de sentido, o dadaísmo lançou, para reavivá-la, poemas fonéticos ou "ações de associações respiratórias e auditivas inseparavelmente ligadas com o decurso do tempo" (Raoul Hausmann), em que o som e a respiração exercem um papel criador.


          Poemas feitos para serem ditos, proferidos, mas onde as relações fonéticas são primordiais, onde a palavra desaparece em favor das vogais, das consoantes. Em sua Ur-sonate, de 1925, em Postdam, Kurt Schwitters misturava assobios, gritos e grunhidos às palavras. Usavam também latidos. Manifestos dadaístas foram recitados em público a várias vozes (de cinco a dez), simultaneamente, com provocação e com o máximo de intensidade vocal.


          Num poema simultâneo, dizia Hugo Ball, "um rr prolongado durante vários minutos ou batidas barulhentas ou ainda o soar de sirenes têm sonoridade bem superior à voz humana. Num resumo típico, o poema mostra a luta entre a voz humana e um mundo ameaçador. Quando Benjamin Péret disse o poema de Eluard, "Par le cou des brises" (em junho de 1921, na Galerie Montaigne), leu-o imóvel, com entonações das mais contrárias ao sentido. Entende-se que essa técnica contracorrente tenha sido mais fácil para não-atores do que para profissionais, que, neste caso, teriam de lutar contra a sua maneira habitual de expressão.


          Experimentando colagem, fotomontagem, procurando o movimento das formas, os dadaístas tinham, sobretudo, necessidade de reunir um público ao redor de si, de atuar e fazerem os outros atuar. Eles promoviam reuniões movimentadas, provocando o público de várias maneiras para ver o que acontecia, para ativar o espectador, para solapar o que era rotineiro, sentimental.


          Em L'Empereur de Chine (Ribemon-Dessaignes), apunhala-se, degola-se, como se não fosse nada. Os programas são deliberadamente absurdos, escandalosos. Poetas e autores de esquetes interpretavam suas próprias obras em que "palavras desprovidas de sintaxe, um grito, um gesto de levar a mão à cabeça ou de assoar-se em cena têm tanto sentido e valor quanto as mais sublimes efusões da poesia". (Jacques Rivière).


          Eluard e Cocteau (antes de ser afastado do grupo Littérature, de orientação dadaísta) prestavam sua colaboração de intérpretes voluntários. Durante todas as manifestações dadaístas, os únicos nomes de comediantes profissionais que se encontram citados uma ou duas vezes são: Pierre Bertin, Marcel Herrand, Musidora, Jacqueline Chaumont, Saint-Jean, Pierre Brasseur e Andrée Pascal.


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Extraído de O ator no século XX, Editora Perspectiva





quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"Susuné - contos de mulheres negras"

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Poética e divertida reflexão


Lionel Fischer


Em função de uma infinidade de compromissos profissionais, a presente crítica só agora pode ser escrita e se refere a um espetáculo que não está mais em cartaz, mas que espero que volte a ser apresentado graças à sua excelência. "Susuné - contos de mulheres negras" cumpriu temporada no Teatro Poeira e no Centro Cultural Justiça Federal e, até onde sei, com ótima receptividade por parte do público.

Vamos, portanto, tecer algumas considerações sobre a montagem oriunda do livro "Ven vé, mis manas negras", da autora colombiana Amalialú Figueroa. Emanuel Aragão assina a dramaturgia e Antônio Karnewale a direção, estando a interpretação a cargo de Carolina Virgüez, que divide o palco com o ótimo percussionista Michel Feliciano.

"As histórias de babás negras do livro inspiram Carolina Virgëz a investigar sua dupla cidadania. Nascida na Colômbia e há 30 anos no Brasil, a atriz leva à cena uma reflexão sobre a reconstrução da sua própria identidade e sobre o reconhecimento das semelhanças e contrastes entre as culturas negras do Brasil e da Colômbia".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima (levemente editado) sintetiza o enredo deste espetáculo que mescla depoimentos da atriz com a materialização de vários personagens ficcionais, sendo a música (canções e cânticos religiosos afro-brasileiros e afro-colombianos) um dos mais poderosos e expressivos recursos da encenação.

Todas as histórias apresentadas, sejam as que dizem respeito à atriz, seja as que se inserem no universo ficcional, todas elas, enfim, nos chegam de forma ao mesmo tempo engraçadas e líricas, e mais que tudo teatrais. Sim, pois o que inicialmente, em alguns momentos, nos é apresentado como realidade, logo adiante se afigura como ficção, e essa permanente alternância é simplesmente encantadora, permitindo ao público entrar no jogo, tornar-se uma espécie de cúmplice de uma deliciosa jornada.

Com relação ao espetáculo, Antônio Karnewale impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, criando marcas criativas e expressivas, valorizando ao máximo uma proposta que, como já foi dito, mescla o real e o fantástico - sábia opção, sem dúvida, sobretudo se levarmos em conta a delirante fantasia do povo colombiano.

No que se refere a Carolina Virgüez, trata-se de uma de nossas melhores atrizes. Senhora absoluta de seus vastos recursos expressivos, a intérprete pertence ao seleto rol daquelas que jamais estão em cena para conspurcar o palco com bobagens, com questiúnculas que serão esquecidas já na saída do teatro. E aqui a atriz nos presenteia com seu enorme talento e apurada sensibilidade, conferindo notável dimensão a este despojado e belíssimo espetáculo.

Na equipe técnica, considero de altíssimo nível as contribuições de todos os profissionais envolvidos em um projeto de rara beleza e absoluta singularidade - Marcelo Marques (cenografia e figurinos), Renato Machado (iluminação), Carmem Luz (direção de movimento) e Elena Konstantinovna (trabalho vocal para os contos).

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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

INDICADOS 6º PRÊMIO APTR DE TEATRO






AUTOR


BEATRIZ SAYAD E DANI BARROS / Estamira


CLARICE FALCÃO E GREGÓRIO DUVIVIER / Inbox


FELIPE ROCHA / Ninguém Falou Que Seria Fácil


PEDRO KOSOWSKY / Outside






DIREÇÃO


CHRISTIANE JATAHY / Julia


GABRIEL VILLELA / Crônica da Casa Assassinada


JOÃO FONSECA / R&J de Shakespeare - Juventude Interrompida


JOSÉ WILKER / Palácio do Fim


MONIQUE GARDENBERG / Inverno da Luz Vermelha






CENOGRAFIA


DANIELA THOMAS / Inverno da Luz Vermelha


FLAVIO GRAFF / Outside


MARCIO VINÍCIUS / Crônica da Casa Assassinada


MARCELO LIPIANI / Julia






FIGURINO


EMILIA DUNCAN / A Escola do Escândalo


FLAVIO GRAF / Outside


GABRIEL VILLELA / Crônica da Casa Assassinada


MARCELO PIES / Um Violinista no Telhado






ILUMINAÇÃO


DOMINGOS QUINTILIANO / Crônica da Casa Assassinada


FERNANDA MANTOVANI / Breve Encontro


MANECO QUINDERÉ / Palácio do Fim e Inverno da Luz Vermelha


PAULO CÉSAR MEDEIROS / Um Violinista no Telhado






ATOR PROTAGONISTA


CHARLES FRICKS / O Filho Eterno


GILBERTO GAWRONSKI / Ato de Comunhão


JOSÉ MAYER / Um Violinista no Telhado


RODRIGO PANDOLFO / R&J de Shakespeare - Juventude Interrompida


TIAGO ABRAVANEL / Tim Maia – Vale Tudo – O Musical






ATRIZ PROTAGONISTA


CLAUDIA NETTO / Judy Garland – O Fim do Arco-Íris


DANI BARROS / Estamira


DÉBORA OLIVIERI / Rosa


VERA HOLTZ / Palácio do Fim






ATOR COADJUVANTE


GRACINDO JUNIOR / Judy Garland – O Fim do Arco-Íris


JORGE CAETANO / Outside


PABLO SANABIO / R&J de Shakespeare - Juventude Interrompida


RAFAEL PRIMOT / Inverno da Luz Vermelha






ATRIZ COADJUVANTE


ANALU PRESTES / Um Dia Como Os Outros e Mulheres Sonharam Cavalos


FABIANA GUGLI / Os 39 Degraus


GUIDA VIANNA / A Escola do Escândalo






ESPECIAL


MÁRCIA RUBIM – Conjunto do Trabalho de Preparação Corporal


PROJETO GALPÃO GAMBOAVISTA


SÉRGIO FONTA – Livro "Rubens Corrêa - um salto para dentro da luz"


TABLADO 60 ANOS






ESPETÁCULO


ESTAMIRA


PALÁCIO DO FIM


R&J DE SHAKESPEARE - JUVENTUDE INTERROMPIDA


UM VIOLINISTA NO TELHADO






MÚSICA


FELIPE ESTORINO / Outside


LILIANE SECCO / 4 Faces Do Amor


MARCELO ALONSO NEVES / Palácio do Fim


PAULO CÉSAR PINHEIRO / Galanga, Chico Rei






PRODUÇÃO


EM BREVE – Divulgação dos indicados. Processo de votação pelos associados da APTR em andamento.


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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"A vingança do espelho:
a história de Zezé Macedo"

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Risos e lágrimas na Laura


Lionel Fischer


"A peça mostra uma companhia de teatro se preparando para encenar a vida de Zezé Macedo. O texto utiliza recursos de idas e vindas, buscando o passado em Silva Jardim, a adolescência, a perda do filho, além do auge da chanchada, a passagem pelo teatro de revista, os filmes, as relações de amor e amizade, e também os bastidores da televisão".

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "A vingança do espelho: a história de Zezé Macedo", em cartaz no Teatro Laura Alvim. Flávio Marinho assina o texto e Amir Haddad a direção, estando o elenco formado por Betty Gofman, Tadeu Mello, Mouhamed Harfouch, Marta Paret e Antonio Fragoso.

Antes de passarmos à crítica propriamente dita, cabe destacar que a presente montagem se insere no projeto idealizado e produzido por Eduardo Barata com o objetivo de resgatar a memória da cultura nacional através de uma trilogia do riso - já foi encenada "A garota do biquíni vermelho" (homenagem a Sonia Mamed) e ainda este ano chegará à cena um espetáculo sobre Consuelo Leandro.

Como implícito no parágrafo inicial, o presente texto aborda tanto a vida como a trajetória artística de Zezé Macedo, oferecendo ao público um retrato abrangente, divertido e emocionado de uma personalidade muito mais rica, poética e instigante do que pode supor a vã filosofia daqueles que apenas riam de seu visual um tanto bizarro (acentuado com a passagem do tempo) e de sua voz que lembrava a de "uma adolescente de 16 anos" - e aqui me abstenho de entrar em maiores detalhes, posto que isto privaria o espectador de inúmeráveis surpresas.

Seja como for, cumpre ressaltar que este é, sob todos os pontos de vista, o melhor texto já escrito por Flávio Marinho, cuja estrutura narrativa permite não apenas homenagear Zezé Macedo, mas também o teatro, na medida em que o processo de criação de um espetáculo é aqui explicitado com doses superlativas de humor e emoção. E se o teatro é também homenageado, ninguém melhor do que Amir Haddad para fazê-lo. 

Como todos sabemos - e os que o negam é por inveja, ignorância ou despeito - Amir Haddad é um dos homens de teatro mais importantes deste país. E não apenas por suas inúmeras, brilhantes e diversificadas realizações, mas também por encarar o fenômeno teatral não somente como resultado, pois isto equivaleria a primorizar a máxima de que os fins justificam os meios. Muito pelo contrário: para Amir, a festa tem que começar nos ensaios, pressupõe encontros e desencontros, perdas e ganhos, a negação amanhã do que hoje parece certo. Enfim: uma dinâmica em total sintonia com a dialética da vida, e que jamais dissocia intérprete e personagem. 

E certamente graças a estes predicados Amir Haddad conseguiu extrair o máximo de humor e poesia de seus intérpretes, todos eles exibindo performances irretocáveis, tanto no tocante às passagens mais dramáticas quanto naquelas em que o humor e o lirismo predominam. Mas é claro que, em função do contexto, torna-se imperioso tecer considerações mais detalhadas sobre a atuação de Betty Gofman na pele da protagonista.

A atriz poderia, digamos, ter tentado imitar Zezé Macedo e talvez obtivesse êxito. Mas tal êxito seria apenas relativo, pois sempre que se imita alguém o foco recai sobre seus aspectos mais superficiais, externos, e a essência do imitado jamais se materializa. Aqui, no entanto, o trabalho ocorre de dentro para fora, vem das entranhas, e é por isso que nos provoca risos isentos de debilidade e lágrimas que nada têm de piegas.

Betty Gofman, na melhor atuação de sua carreira, demonstra aqui que um grande intérprete não é apenas alguém dotado de vastos recursos expressivos, posto que aí nos deixamos fascinar somente por seu virtuosismo. Não, é muito mais do que isso: o grande intérprete é aquele que sabe que contém tudo que é inerente ao humano, para o bem ou para o mal. E é este predicado que o distingue, que o torna singular e único, pois ao representar um personagem, qualquer que seja ele, está também representando a si próprio e à toda humanidade.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os irrepreensíveis trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta oportuníssima empreitada teatral - Daniel Schenker (pesquisa), Afonso Tostes (direção de arte), Fernanda Fabrizzi (figurinos), Paulo Denizot (iluminação), Alessandro Perssan (trilha sonora), Eléonore Guisnet e Daniela Cavanellas (preparação corporal), Jacqueline Priston (preparação vocal) e Vavá Torres (visagismo).

A VINGANÇA DO ESPELHO: A HISTÓRIA DE ZEZÉ MACEDO - Texto de Flávio Marinho. Direção de Amir Haddad. Com Betty Gofman, Antonio Fragoso, Marta Paret, Mouhamed Harfouch e Tadeu Mello. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.    

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O amante invisível



de Teresa Frota




Personagens:


Adalgisa  a mulher perfeita, casada há 30 anos com Horácio. Cinqüentona, dona de casa, vive para o lar, o marido e a igreja.


Horácio  marido de Adalgisa, cinqüentão, escriturário. Acha que Adalgisa tem um amante e quer conhecer o fulano. É o corno por obsessão.


Caveirinha  amigo de bar de Horácio. Acredita que a mulher pura existe. Seu nome verdadeiro é Ademar.


Vendedor da loja funerária.



Cenários:


Sala da casa de Adalgisa
Bar de encontros
Funerária
Confessionário
Jardim


* * *


Cena 1 – Funerária


(É uma funerária típica. Caixões de todos os tipos encostados nas paredes. Flores em vasos colocados aqui e ali. Horácio entra, passeia um pouco, pára diante de um caixão imponente, negro, de alças douradas. O vendedor vem correndo, muito simpático, atender ao novo cliente)


Vendedor – Bom dia. O senhor deseja alguma coisa?


Horácio – Ninguém entra numa funerária à toa, meu amigo! Nem para telefonar! É claro que desejo. Um caixão.


Vendedor – Só o caixão, doutor? Posso lhe mostrar o serviço completo. Sem compromisso.


Horácio – Ué, só o caixão não chega? Morto precisa mais de que?


Vendedor – Depende. O seu morto...


Horácio – Morta.


Vendedor – Sua morta. É de consideração?


Horácio – Assim. Assim. É minha mulher.


Vendedor – Sinto muito.


Horácio – Eu é que sinto. Ter casado com ela!


Vendedor – Bem, para sua esposa o senhor deve querer um serviço de luxo... Posso lhe sugerir o plano “Paraíso Resplendoroso”. No caso de defunto do sexo feminino, além desse belíssimo e confortável caixão em ébano maciço, com tampo superior esculpido em alto relevo, alças folheadas a ouro, o “Paraíso Resplendoroso” dá direito a maquiador, cabeleireiro, manicura, pedicura, até depilador, se for necessário.... e, para os viventes, é servido Prosecco, da melhor qualidade.


Horácio – Não exagera. Estou casado há mais de 30 anos.


Vendedor – Compreendo.... Bem, nesses casos temos um plano, tão bom quanto, e com um preço mais razoável: o “Deleite Celestial”. O depilador fica de fora. Mas a defunta sua senhora ainda vai contar com um modelo, exclusivo, feito sob medida no tecido de sua escolha, pelo nosso estilista. Um belíssimo véu em tule rendada... e, para os viventes, uísque 8 anos “on the rocks”


Horácio – Sei, sei. Quanto custa essa xaropada?


Vendedor – À vista, apenas tantos mil e quinhentos reais, fora o caixão...


Horácio – Mas esse preço está pela hora da morte!


Vendedor – É a hora da morte, meu senhor! Mas...pode ser dividido em módicas prestações.


Horácio – Não, não. Vamos ver algo mais em conta.


Vendedor – Bem, temos ainda um plano mais tímido, porém eficiente! O básico “Vai Com Deus!”, que inclui um caixão de cedro com alças em latão dourado, forro de cetim, da cor da preferência da morta, e véu em organza pele de ovo adamascada. O figurino, maquiagem e cabelo ficam a cargo da defunta. São servidos copos de cerveja nacional, com pasteizinhos de carne ou queijo. Posso fazer para o senhor por....


Horácio – Meu filho, presta atenção! Me arruma logo um caixão e não enche!


Vendedor – Vejo que o senhor está transtornado com a morte da sua esposa. Mas aqui, na “Funerária Morte À Vista” o cliente sempre sai satisfeito. Temos o plano perfeito para o senhor, bem simplezinho, discreto. É o nosso carro chefe nos casos assim de morte de marido ou esposa: o plano “Já Vai Tarde”. Consiste em um caixão modesto, simples, de pinho envernizado, sem alças, mas com uma cordinha para segurar. A defunta é depositada pelos próprios familiares e ainda leva de brinde um lindo buquê de flores artesanalmente executado por nossos funcionários. Bebida e comida são à parte, claro. O preço é esse (Mostra o papel), dividido em cinco vezes sem juros. A primeira parcela o senhor só paga na missa de sétimo dia.


Horácio – Perfeito. Agora nos entendemos.


Vendedor (Pega o bloco de anotações) – O velório. Vai ser em casa ou na capela?


Horácio – Ainda não decidi.


Vendedor – O senhor pode nos dar o endereço onde a defunta se encontra?


Horácio – Não sei. Ela saiu de manhã, não sei se já voltou.


Vendedor – A morta...saiu?


Horácio – Ela ainda não está morta.


Vendedor – A morta ainda não morreu?


Horácio – Ainda não, mas vai! (Música)


Cena 2 - Casa de Adalgisa


Um sofá de vinil surrado, uma poltrona pé de palito, duas mesinhas de madeira escura ao lado do sofá. Na mesa. encostada na parede. Uma garrafa d’água, uma garrafa de uísque pela metade, quatro copos, sobre a bandeja coberta por um paninho de crochê. Ao lado da bandeja um telefone cinza. Em cima da cadeira um terno azul marinho. Horácio, sentado no sofá, revira uma caixa com papéis. Adalgisa entra, vinda da rua. Ela segura um pacote grande)


Adalgisa – Que é isso, Horácio? Tá mexendo nas minhas coisas por que? (Horácio larga a caixa de lado)


Horácio – Estou procurando, Adalgisa! Um fio de cabelo, um pedaço de unha! Como ele é? Quem ele é?


Adalgisa – Ele quem, Horácio? Ficou maluco?


Horácio – O amante! O amante!


Adalgisa – Ah, não, de novo, não! Mania. Você precisa se tratar.


Horácio – Me tratar, pílulas! Toda mulher tem um amante! Nem que seja em sonho. A mulher sonha. Sonha com o amante impossível! Ele está sempre presente! O amante! Mesmo que seja um desconhecido! Confessa, Adalgisa!


Adalgisa – Olha aqui, Horácio! Se você bebeu é melhor ir dormir! Hoje eu não tô com a menor paciência! (Horácio bebe, ávido)


Horácio – Onde é que você estava a tarde toda?


Adalgisa (Abre o pacote e tira o manto) – Eu não disse que ia na igreja, preparar o altar para a festa da Aparecida? (Estende o manto em cima do sofá) Esse ano vai ser uma beleza!


Horácio – A igreja! A igreja é a desculpa da desavergonhada! Escondem a safadeza embaixo da saia do padre!


Adalgisa – Isso é pecado, Horácio! Você sabe que eu sou devota!


Horácio – Você é devota e eu sou corno! A tua devoção tem bigode e barba!


Adalgisa – Eu não vou ficar aqui para ser insultada! (Adalgisa quer ir para dentro. Horácio a segura pelos braços e a sacode)


Horácio – Diga a verdade, mulher! Existe um homem! Quem é ele? Eu preciso saber. Com quem você me trai?


Adalgisa – Que chatice, Horácio! Todo dia é a mesma coisa!


Horácio – Trinta anos! Trinta anos engalanado com um par de chifres! Fala, Adalgisa! Quem é ele?


Adalgisa – Me larga, Horácio! Tá me machucando!


Horácio – Tudo tem um limite! Um homem não pode suportar tanta humilhação. Adalgisa, eu já disse e repito: vou te matar!


Adalgisa – Depois, meu filho. Olha. Padre Eustáquio me pediu. Só a mim. Pediu para bordar o manto. O manto da santa.


Horácio – Tu vai bordar isso tudo, sozinha?


Adalgisa – Sozinha.


Horácio – Que coisa.


Cena 3 - Bar


(É um bar de encontros. A luz vai subindo aos poucos. Horácio chora as mágoas no ombro de Caveirinha, o amigo da mesa de bar. Música)


Horácio – Me trai, Caveirinha, eu tenho certeza. Me trai com o amante. Com um não, com vários! Adalgisa tem uma turba de amantes!


Caveirinha – Eu te disse e repito. Mulheres...são todas iguais. Umas vaquinhas.


Horácio – Ela sonha, Caveirinha, sonha. E sorri quando sonha. Eu acordo de madrugada para ver Adalgisa sorrir


Caveirinha – É duro ser chifrudo...


Horácio – O sorriso mais imoral que existe é o da mulher que sonha. O sorriso do prazer inconfesso!


Caveirinha – Uma cínica...


Horácio – Se eu soubesse quem é...o diabo é que não tem um vestígio. Nada! Isso é que acaba comigo! Eu luto contra o amante invisível! Eu sou o Dom Quixote de Bangu!


Caveirinha – Nem um vestígio? Tem que ter um vestígio. O hálito, Horácio. Sentiu o hálito?


Horácio – Uma vez. Eu vi. Eu ‘tava saindo do açougue com a Adalgisa, o sujeito entrou. Eu vi. Roçou o cotovelo no peito da Adalgisa. E ela sorriu. Eu vi. Abraçada na picanha ela sorriu. E sabe o que o sujeito pediu? Maminha!


Caveirinha – Safado. Também, no açougue, inspira! Tanta carne...


Horácio – Eu quase peguei o facão do açougueiro e esquartejei a Adalgisa ali mesmo, em cima do balcão frigorífico!


Caveirinha – Por isso que eu não caso. Nenhuma! Nenhuma mulher presta. São todas infiéis!


Horácio – Mas, Caveirinha, tem que ter um jeito.


Caveirinha – Mulher assim? Só matando.


Horácio – Só matando.


Cena 4 - Casa de Adalgisa


(Adalgisa, sentada na poltrona de pé palito, borda o manto da Nossa Senhora da Aparecida. Horácio irrompe na sala, com um revólver na mão)


Horácio  Adalgisa, eu vou te matar!


Adalgisa – Esfregou bem o pé no capacho? Olha que a faxineira veio hoje!


Horácio – Com um tiro, no meio dos olhos! Tu vai morrer cega, infiel!


Adalgisa – Tem tutu com carré de porco dentro do micro ondas, é só esquentar. Vai, meu filho, que hoje eu tô muito ocupada.


Horácio – Tua alma cega vai ficar penando no inferno. Ou será que vai pro purgatório? Eu vou te matar, Adalgisa!


Adalgisa – Já ouvi, Horácio.


Horácio – Nunca mais o teu amante vai sentir o teu cheiro, encostar a cabeça nos teus peitos, enfiar o...


Adalgisa – É melhor parar por aí. (Olha para Horácio e vê o revólver) Que é isso? Onde é que tu arrumou esse revólver? Se tirou dinheiro da caderneta prá comprar essa porcaria é melhor devolver!


Horácio – Adalgisa, não muda de assunto! Eu estou dizendo que vou te matar! Você tem que se desesperar! Não vai se desesperar?


Adalgisa – Eu já disse que estou ocupada! Não tá vendo o tamanho do manto que eu tenho que bordar! Se não ficar pronto quem me mata é o Padre Eustáquio!


Horácio – O revólver é de verdade! Pode examinar. (Entrega com cuidado) Cuidado, que tá carregado.


Adalgisa (Examinando o revólver) – Quanto tu pagou por esse traste?


Horácio – Cem reais.


Adalgisa – Por isso tá sempre sem dinheiro. Gasta tudo em besteira! (Devolve o revólver) Vai devolver duma vez, Horácio, que quanto mais tempo tu ficar com ele, mais desvaloriza.


Cena 5 - Bar

(Caveirinha com uma garrafa de cerveja na mão e dois copos se dirige para a mesa. Horácio abraça Caveirinha e os dois sentam)


Horácio – Uma desmoralização. Adalgisa não deu a mínima.


Caveirinha – Não desesperou?


Horácio – Continuou costurando o manto da santa. Agora me diga, Caveirinha: como é que eu vou matar uma mulher que tá costurando o manto da santa? Não é sacrilégio?


Caveirinha – Tu falou bem claro? “Vou te matar!”


Horácio  Falei e repeti.


Caveirinha – Apontou o revolver?


Horácio – Na cara. Adalgisa tem um sangue frio...


Caveirinha – Ou tem sangue frio...ou não tem amante!


Horácio – Como assim, Caveirinha! Já te disse que tem amante! Nenhuma mulher é como Adalgisa! Adalgisa é perfeita. Fala pouco no telefone, não vai ao cabeleireiro, nem ao dentista! Roupa? Só compra quando precisa. Não põe o pé na rua sem me dizer aonde vai... Caveirinha, meu amigo, nenhuma mulher é assim! Nenhuma! Nem a Mãe! A Mãe tem defeito! Por isso te digo: Adalgisa tem a imperfeição moral! O amante!


Caveirinha – E se não tem? Vai que a tua mulher é pura. Cristo em Paz! Meu Deus! A mulher virtuosa existe. Horácio! A mulher virtuosa é a tua mulher!


Horácio – Não se iluda, Caveirinha. A mulher virtuosa é uma quimera. Uma utopia.


Caveirinha – Não, Horácio! É a tua mulher!. Você é o marido da santa! Meu Deus! Que profanação! Você tem que me prometer. Jurar! Que nunca mais vai ficar de pé na frente da santa! Prá falar com Adalgisa qualquer homem tem que se ajoelhar!


Horácio – Eu, heim, Caveirinha! Que foi que tu bebeu? Adalgisa é Adalgisa. E tem amante! Eu sou o marido. Eu sou o corno. O corno sempre sabe que é corno!


Caveirinha – Mas a Adalgisa não tremeu. Tremeu? Quando tu disse que ia matar por causa do amante?


Horácio – Não tremeu. Nem piscou.


Caveirinha – Horácio! Eu sei. A tua mulher não tem amante.


Horácio – Não tem?


Caveirinha – Não. É a santa! Esquece essa história.


Horácio – Uma ova! E o plano funeral? Vou perder um dinheirão! (Música)


Cena 6 - Funerária


Vendedor – Eu não posso fazer isso, seu Horácio. Comprou, tá comprado.


Horácio – Mas a minha mulher não vai mais morrer!


Vendedor – Sinto muito. No nosso negócio não aceitamos devolução. O senhor há de convir que é um caso inédito. Ninguém, até hoje, voltou prá devolver o caixão.


Horácio – Há sempre uma primeira vez....


Vendedor – Impossível. O plano já foi para a financeira, a financeira aprovou o crédito. E o senhor levante as mãos para o céu porque, mais difícil do que a sua mulher morrer, é aprovar o crédito na financeira.


Horácio  E o que é que eu vou fazer com o caixão?


Vendedor – Ora, seu Horácio, quem tá vivo tá no risco. Hoje em dia caixão é artigo de primeira necessidade. Por isso funerária é um bom negócio. Loja de roupa fecha, loja de sapato fecha, até farmácia fecha. Agora, o senhor já viu funerária falir? Nós aqui temos uma tradição de vinte e cinco anos no mercado. Sabe quantos já enterramos?


Horácio – Isso não tem cabimento! Eu comprei o caixão ontem...


Vendedor – Ontem o senhor achava que a falecida tinha um amante. Hoje não acha mais. O senhor está sendo ingênuo. Muito ingênuo. Quer saber? Todas as mulheres que eu enterrei tinham um amante. O marido era sempre o último a saber. O amante chega e chora a morta. Uma vergonha.


Horácio – Todas?


Vendedor – Todas. Sem exceção. O chifrudo só sabe que é chifrudo no velório. No velório.


Horácio – Espeto.


Cena 7 - Casa de Adalgisa


(Adalgisa borda o manto)


Adalgisa – ...a Margarida que me disse. Eu nem desconfiava. Agora imagina que é que a Leonor vai dizer prá Dulce quando a Adelina souber. Uma mulher que não saía da igreja, rezava dia e noite...


Horácio – As beatas...são as piores...


Adalgisa – ...e Zulmira diz que viu as duas, saindo da padaria. Agora veja lá se isso é hora de comprar pão. Eu bem disse: Otília, tu não devia abrir aquela porta. Taí no que deu. Agora, tu sabe que a Dirce nem ligou e foi pro cabelereiro...(Horácio olha fixo para ela)


Que foi? Perdeu alguma coisa?


Horácio  Eu? Não, benzinho. Eu, não.


Adalgisa – Não tira o olho de mim.


Horácio – Imagina. Tô prestando atenção no assunto. Que é que a Leocadia disse?


Adalgisa – Que Leocádia? A Leocádia não tá nessa história. Você tá muito esquisito, Horácio....


Horácio – Então foi a Maria Dalva.... Ah, Adalgisa, uma dessas aí!


Adalgisa – Não vai trabalhar? Já passou da hora.


Horácio – Não. Hoje eu vou ficar aqui. O dia todo. Te olhando.


Adalgisa – Tá constipado?


Horácio – Não.


Adalgisa – Então larga de ficar aí à toa. Arruma o que fazer. Aproveita prá limpar o lustre que tá cheio de cocô de mosca! (A campainha toca)


Horácio – A campainha! A campainha tocou!


Adalgisa – Eu ouvi. (Horácio corre para a porta e abre. Vendedor entra)


Vendedor – Bom dia, seu Horácio! Ah, essa deve ser a defunta!


Adalgisa – Horácio, quem é esse homem?


Horácio  O que é que o senhor tá fazendo aqui?


Vendedor – Vim tirar as medidas da morta. (O vendedor puxa uma fita métrica, deita Adalgisa no sofá e começa a medir) Como a morta ainda não morreu, facilita. Afinal o senhor tem direito a um caixão sob medida. Está no plano!


Adalgisa – Que plano, Horácio? Que caixão? É melhor você me explicar direitinho o que é que está acontecendo!


Vendedor – O senhor devia ter feito o plano completo. A sua defunta bem tá precisando de maquiador e cabeleireiro...A senhora quer fazer um upgrade no seu plano?


Horácio – O senhor quer fazer o favor de ir embora!


Vendedor – Como a senhora já é cliente posso até fazer um abatimento....


Adalgisa – Horácio tira esse maluco daqui!


Vendedor – Descontinho bom. Ainda leva de brinde uma magnífica coroa de flores! Com faixa em gorgurão dourado!


Horácio – Ela não quer nada! Chega! Deixa a minha mulher em paz!


Vendedor – Ora, doutor, prá que pressa? Paz ela vai ter de sobra....Já que eu estou aqui a defunta pode me dizer quais são as flores da sua preferência?


Adalgisa – Defunta é a sua mãe! E olha. Eu tenho muito que fazer! Horácio, assim eu não consigo acabar o manto da santa!


Horácio – Calma, Gizinha. O homem errou de endereço. Ele já está de saída. (Empurra o vendedor)


Vendedor – ...palmas, camélias, rosas, lírios do campo...pode escolher, tá incluído no plano... (Horácio empurra o vendedor para fora e volta)


Adalgisa – O que é que o senhor está aprontando, senhor Horácio Marcolino?


Horácio  Eu? Nada. Nada. O homem é maluco.


Adalgisa – Vai, vai limpar o lustre duma vez! (Toca o telefone. Horácio corre para atender. Adalgisa volta a costurar)


Horácio  Alô? Quem é? É o amante?


Adalgisa – Pronto. Lá vem a obsessão!


Horácio – Ah! Vou chamar. Adalgisa! É a jararaca da tua mãe!


Adalgisa – Diz prá mamãe que eu tô assoberbada. Ligo depois que acabar o manto da santa.


Horácio – Ela liga depois. (Escuta) Vai-te à...! (Horácio desliga o telefone. A campainha toca. Ele corre para atender) Eu sabia! Eu sabia! Agora é o amante! O teu amante!


Adalgisa – Ô, homem chato! (Horácio volta)


Horácio – O tintureiro quer o terno azul marinho prá lavar.


Adalgisa – T’áli. Em cima da cadeira. (Horácio sai com o terno e volta)


Horácio – Adalgisa! Afinal! Quem é o teu amante?


Adalgisa – Meu filho, que impertinência! Quer saber? Um dia eu arrumo um amante! Um dia eu arrumo! Um amante de coxa grossa. De peru enooooorme!


Horácio – Eu sabia! Você é como todas as outras! Tem tara no adultério!


Adalgisa – Eu vou arrumar um amante! Negro! Eu quero um amante Negro!


Horácio  Calma, filhinha! Calma!


Adalgisa –Negro! Lindo! Negro como a santa!


Horácio – Os vizinhos, Gizinha...


Adalgisa – Eu quero um amante! (Horácio pega o revólver e aponta para Adalgisa)


Horácio – Cala a boca, Adalgisa!


Adalgisa – Horácio, tu ainda não devolveu esse revólver?


Horácio – E se eu te matasse, Adalgisa? O teu amante ia chorar? Ia?


Adalgisa – Você, meu filho, me tira do sério.


Horácio – Ia chorar no velório?? Ia?


Adalgisa – Agora vou ter que me confessar...Ó, leva esse revólver lá na delegacia que eles tão pagando um dinheirão por um treco desse. Eu li no jornal.


Horácio – Um dia, Adalgisa, eu vou conhecer o teu amante. (Horácio larga o revólver em cima da mesa e sai. Adalgisa volta a bordar o manto da santa)


Adalgisa – Esse homem faz de tudo prá não limpar aquele lustre....


Cena 8 - Bar


(Horácio e Caveirinha jogam sinuca)


Caveirinha – Uma santa. Quem devia usar o manto era ela.


Horácio – Nenhuma mulher é santa, Caveirinha. Sabe o que o Vendedor da Funerária disse? Que o amante sempre aparece. No velório. Vai chorar a mulher do outro. Pouca vergonha.


Caveirinha – No velório? O amante aparece no velório?


Horácio – “O” amante? Um regimento completo! O velório da Adalgisa vai ser uma romaria. Amantes por todo lado! E eu, o corno, recebendo, servindo canapé com guaraná....


Caveirinha – Guaraná, Horácio? Nem uma cervejinha?


Horácio – Não tá incluído no plano, Caveirinha. Os amantes que levem. Eu já tive muita despesa.


Caveirinha – No velório? O amante aparece no velório?


Horácio – No velório.


Cena 9 - Confessionário


(Música de igreja. Adalgisa ajoelhada se confessa)


Adalgisa – Pois é, Padre Eustáquio. Pecado que eu não cometo é o da luxúria. Nunca. A luxúria é o pecado mortal. Eu, que respeito os sagrados votos do matrimônio. Eu, que respeito meu marido. Que fecho os olhos para não ver o meu marido nu. Eu, que nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Eu que nunca. Eu nunca! (Ouve) Sim, Padre Eustáquio. Desculpe, Padre Eustáquio. Sim, eu rezo. Rezo e me purifico. Amém. (Vai levantar e volta a ajoelhar) Ah, só mais uma coisinha, Padre Eustáquio....sonhar com o pecado? É pecado?


Cena 10 - Casa de Adalgisa

(Caveirinha, ansioso, mexe nas coisas de Adalgisa, sente o cheiro da almofada, do manto, se enrola no manto da santa, se ajoelha ao lado do sofá e acaricia a almofada onde Adalgisa estava sentada. Adalgisa entra e leva um susto)


Adalgisa – Você?


Caveirinha – A mulher pura. Imaculada. Você é a santa, Adalgisa.


Adalgisa – O Horácio não está! É melhor você ir embora.


Caveirinha – Confessa, Adalgisa. Fala prá mim. Ele não existe, não é? O amante não existe.


Adalgisa – Era o que me faltava. Outro.


Caveirinha – Porque eu sei. Agora eu sei que você não trai. Nunca. Você é a única mulher que não trai!


Adalgisa – Quem te disse isso? E se eu traísse? Todos os dias. Com um homem. Um único homem. É pior trair com um único homem do que com vários. Não é? Quem sabe o meu amante não é o desconhecido...


Caveirinha – Não é verdade. Eu não acredito.


Adalgisa – Quem sabe o meu amante é o jornaleiro? Ou o porteiro do prédio ao lado? Escolhe um, Ademar! Um só. E se eu me entregasse todos os dias a um só homem?


(Caveirinha se arrasta aos pés de Adalgisa)


Caveirinha – Você não entende? Toda mulher é vagabunda. Todas. Só você não tremeu diante da morte. Só você não implorou. Não gritou o nome do amante! Só você tem a virtude imemorial, Adalgisa!


Adalgisa – Me larga, Ademar! Suas mãos são indecentes!


Caveirinha – Eu passei toda a minha vida com a certeza de que toda mulher é uma meretriz. E deitei com elas convicto de que nenhuma mulher merece o dia seguinte. Adalgisa, só você merece o dia seguinte!


Adalgisa – Você não tem vergonha, Ademar? De se ajoelhar aos pés de uma mulher?


Caveirinha – De uma mulher, não? De uma santa! Adalgisa, meu amor, você devia ser canonizada!


Adalgisa – Não fala assim. É pecado.


Caveirinha – Nenhuma santa é casta como tu. Entende, Adalgisa, o que eu fiz da minha vida?


Adalgisa – Me deixa, Ademar.


Caveirinha – Você nunca me perdoou, Adalgisa...


Adalgisa – Eu nunca te quis, Ademar! Eu amo meu marido. Eu amo a minha casa. Meus móveis. Tá vendo essa poltrona pé de palito? Eu amo essa poltrona, Ademar!


Caveirinha – Você nunca me perdoou. A culpa, Adalgisa, foi da minha mãe. Foi ela. Ela disse que a mulher casta não existia. Ela mentiu. Minha mãe mentiu. E eu acreditei. Foi por isso.


Adalgisa – A tua mãe. A tua mãe era uma cínica.


Caveirinha – A minha mãe era uma cínica. Morreu. Ontem. Anteontem. Não sei quando minha mãe morreu.


Adalgisa – Ela nasceu morta, Ademar. Tinha a honra de fachada. Depois se esfregava embaixo do caminhão com o mulato.


Caveirinha – Me perdoa, Adalgisa. Eu acreditei na minha mãe. Me salva, Adalgisa. Da infelicidade eterna!


Adalgisa – A eternidade é o paraíso. Devia ser feliz aquele que acredita na vida eterna. Você devia rezar, Ademar. Por você.


Caveirinha – O teu marido não te merece. É uma besta!


Adalgisa – É uma besta mas é meu marido. Vai embora, Ademar.


Caveirinha – Eu sou um canalha. Tô aqui pedindo à santa para trair. O canalha pede à santa para trair!


Adalgisa – Você se arrasta, Ademar. O homem que se arrasta ao pés de uma mulher não merece respeito. Homem tem que ter pudor!


Caveirinha – Você tem razão, Adalgisa. O homem que insulta uma mulher como você deveria viver o resto da vida atormentado. Em vigília pela humilhação causada. Eternamente.


Adalgisa – Vai prá igreja rezar, vai, Ademar!


Caveirinha – Posso te pedir uma última coisa, Adalgisa.


Adalgisa – Eu sou feliz, Ademar.


Caveirinha – Posso tomar um uisquinho? Esse falatório me deu uma sede danada.


Cena 11 - Jardim


(Horácio desfolha uma flor – bem me quer / mal me quer)


Horácio - Corno. Não corno. Corno. Não corno....


Vendedor (Em off) – Todas as mulheres que eu enterrei tinham um amante. O marido era sempre o último a saber. O amante chega e chora a morta. Uma vergonha.


Cena 12 - Casa de Adalgisa


(Caveirinha bebe o último gole do uísque. Coloca o copo em cima da mesinha. Adalgisa parada, hirta, olha para o chão. Caveirinha se aproxima, segura os ombros de Adalgisa e dá um beijo no rosto. Música. A luz desce. Imaginação de Adalgisa. Ela abraça Caveirinha com ardor, transforma o beijo inocente em beijo lascivo)


Cena 13 - Jardim


Horácio – Corno... Não corno... Corno... Não corno...


Vendedor (Em off)  Todas. Sem exceção. O chifrudo só sabe que é chifrudo no velório. No velório.


Horácio – Corno... Não corno...Corno...Não corno...(A última pétala) Corno!!!


Vendedor (Em off)  No velório. No velório. No velório.


Cena 14 - Casa de Adalgisa

(Caveirinha segura os ombros de Adalgisa e dá um beijo no rosto. Ela se desvencilha do beijo)


Caveirinha – Adeus, Adalgisa. Perdão.


Adalgisa – Eu sou uma mulher honesta, Ademar. (Caveirinha sai. Adalgisa dá dois passos na direção da porta e pára)Adeus, Ademar


Cena 15 - Jardim


(Horácio sentado com a cabeça entre as mãos. Quilos de pétalas espalhados em torno dele. Caveirinha chega e senta ao lado de Horácio)


Horácio (Mostrando o cabinho nu da flor)  Sabe o que é isso?


Caveirinha – Um cabo de flor.


Horácio – Um cabo de flor! O último! O último cabo de flor! A prova definitiva. Imoral. Indecente.


Caveirinha – Um homem quando fica assim, é de dar pena.


Horácio – Eu sou cabrão, Caveirinha! Entendeu! A flor! Eu despetalei milhares de flores! E milhares de vezes o mesmo vaticínio! Horácio É corno! Que é que eu faço agora, Caveirinha?


Caveirinha – Horácio. Eu lhe digo. Adalgisa é a casta inflexível. Nunca traiu.


Horácio – Trai. Na vida e em sonho! Eu sou o duplamente traído, Caveirinha!


Caveirinha – O sonho é involuntário. Não vale.


Horácio – Pior. No sonho os desejos mais íntimos vem à tona, sem nenhum compromisso moral. A mulher casada devia ser proibida de sonhar.


Caveirinha – Calma, Horácio, calma, pelo amor de Deus. Onde é que tu vai?


Horácio – Ao banheiro, Caveirinha...


Cena 16 - Casa de Adalgisa


(Adalgisa ao telefone)


Adalgisa – Uma pecadora, mamãe. Seus olhos ardiam de desejo, mamãe. Seu corpo tremia. E quando ele segurou os ombros dela para dar um beijo no rosto. Sabe um beijo no rosto? De irmão. Sem pecado, mamãe. O beijo no rosto não é pecado. É o carinho fraternal. Sabe o que ela fez? Deu um beijo na boca. E depois, sabe o que ela me disse? Que deseja todos os homens. Os que passam pela rua, os descalços, os inocentes, os que se ajoelham na igreja, os que choram nos enterros, todos, mamãe, todos! Isso é normal, mamãe? Não é normal! A senhora já se sentiu assim? (Ouve) Desculpe, mamãe, desculpe. Eu sei, ela vai arder no fogo do inferno! No fogo do inferno! (Hrácio entra)


Horácio  Quem vai arder no fogo do inferno?


Adalgisa – Desculpe, mamãe. Preciso desligar. Horácio chegou. Sei, mamãe. Ele vai limpar o lustre...(Desliga) Era mamãe.


Horácio – Quem vai arder no fogo do inferno, Adalgisa?


Adalgisa – Ninguém. Uma mulher. Você não conhece. Nunca viu. Não conhece, Horácio.


Horácio – Amiga sua? Olha lá com quem você tá se metendo, Adalgisa!


Adalgisa – Amiga? Não, não é minha amiga.


Horácio – Amiga do seu amante?


Adalgisa – Lá vem. Sabe de uma coisa. Nem sei porque eu perco meu tempo respondendo essas besteiras. Com tanto o que fazer...(Vai até o manto e recomeça a costurar) Já está quase pronto! Padre Eustáquio vai adorar!


Horácio – Padre Eustáquio...sei lá se isso é codinome...


Adalgisa – É o que, Horácio? Vai desconfiar de Padre Eustáquio também?


Horácio – Cheia de não me toques com esse padre! É só falar no nome dele que você fica toda alvoroçada! Confessa, Adalgisa! Padre Eustáquio é a identidade secreta do teu amante!


Adalgisa – Se tu fosse na igreja não ia falar tanta heresia! Melhor que limpasse o lustre, isso sim! (Horácio dá uma volta em torno de Adalgisa e se prepara para ir para dentro quando vê o copo sujo em cima da mesinha)


Horácio – O que é isso?


Adalgisa – Isso o que, Horácio?


Horácio – Esse copo, Adalgisa. O copo tá sujo! De uísque! (Ela larga o manto)


Adalgisa – Eu bebi, Horácio. O uísque.


Horácio – Desde quando você bebe, Adalgisa?


Adalgisa – Prá provar. Curiosidade.


Horácio – Você não bebeu, Adalgisa. Não bebeu. Eu sei. Olha, Adalgisa. (Mostra o copo) Não tem marca de batom. Você não sai sem batom. A sua única vaidade é o batom.


Adalgisa – Hoje eu não usei batom.


Horácio – E o cheiro?


Adalgisa – Cheiro?


Horácio – De suor.


Adalgisa – Não tem cheiro nenhum.


Horácio – Suor de homem, Adalgisa. Você não sente o cheiro de suor de homem? A sala está impregnada. O teu amante exala, Adalgisa!


Adalgisa – Não sinto nada.


Horácio – Engraçado...eu conheço esse cheiro...de algum lugar...


Adalgisa – Cheiro nenhum. Teimosia.


Horácio – Caveirinha! Esse cheiro é do Caveirinha! Ué, que é que o Caveirinha veio fazer aqui?


Adalgisa – Quem é Caveirinha? Sei lá quem é Caveirinha.


Horácio – Aquele. Assim. Assim. Tu conhece. Da quermesse. Lembra? O que ganhou a rifa da escova de dente! Essa tua igreja, heim, Adalgisa. Fazer rifa de escova de dente! Aposto que faturou um dinheirão naquela quermesse.


Adalgisa – Foi o dinheiro prá comprar o veludo do manto da santa!


Horácio – Ora, o Caveirinha...veio me visitar e eu não tava em casa...Falou o quê?


Adalgisa – Nada.


Horácio – Caveirinha é assim. Quase não fala. Um discreto. Por que tu não disse que foi o Caveirinha que bebeu o uísque? Ele gostou? Olha que Caveirinha entende da coisa.


Adalgisa – Não disse.


Horácio – Não gostou. Também, presente dos colegas da repartição. Doze prá fazer uma vaquinha e compram esse uísque vagabundo...


Adalgisa – Pois é, meu filho. Me faz um obséquio? Deixa eu terminar o manto da santa!


Horácio – Ora...o Caveirinha...na minha casa...que coisa...(Horácio vai para dentro)


Adalgisa – Horácio é de uma estupidez comovente! (A campainha toca. Horácio vem aos pulos abotoando a calça)


Horácio – O amante! O amante!


Adalgisa –...de uma burrice enternecedora...(O vendedor vai entrando, sem cerimônia)


Vendedor – Bom dia, seu Horácio! A senhora ainda não morreu? Olha, seu Horácio, é melhor tomar uma providência. O seu plano dá direito ao pagamento na missa de sétimo dia. Se não tem defunta, não tem missa de dia nenhum. Como é que fica? Tá tudo assinado. Não posso fazer nada. (PARA Adalgisa) Olha aqui, minha senhora, se a senhora não desencarnar logo o nome do seu marido vai pro SPC. (E sai)


Adalgisa – Horácio....


Horácio  Pode deixar, Gizinha, já tô indo, já tô indo!


Adalgisa – Indo aonde?


Horácio – Ué, limpar o lustre! (E sai. Adalgisa costura o manto da santa. Horácio entra, com um pote de creme na mão)Adalgisa...


Adalgisa – Vou me queixar com o síndico. Esse porteiro deixa qualquer um subir.


Horácio (Mostrando o pote) – O que é isso, Adalgisa?


Adalgisa – Um creme. Um pote de creme.


Horácio – Prá que é esse creme, Adalgisa?


Adalgisa – Coisa minha. Ora, bolas. Um desconhecido. Quem tem segurança hoje em dia?


Horácio (Lendo)  “Seiiobel – Creme para os seios”. É um creme para os seios.


Adalgisa – O síndico não toma providência. Se a gente reclama ele diz que a gente tá cacarejando.


Horácio (Lendo) – “Enrijece e deixa a pele dos seus seios como seda. Volte a ter seios de adolescente com Seiobel”. Seios de adolescente...


Adalgisa – E você não faz nada. O homem diz que eu cacarejo e você não faz nada! Eu devia. Ah, eu devia.


Horácio – Prá que você quer ter seios de adolescente, Adalgisa?


Adalgisa – O quê?


Horácio – Peitinhos de adolescente. Prá que? Prá quem? Sabe há quanto tempo você não me mostra os seios?


Adalgisa – Ué, de onde veio isso, agora?


Horácio – Desde o dia que eu beijei você na boca.


Adalgisa – Pronto. Já mudou de assunto.


Horácio – A única vez. Nunca mais você me deixou beijar sua boca.


Adalgisa – Você tem sapinho, Horácio!


Horácio – E os seios? Por que eu não posso ver os seus seios?


Adalgisa – Eu vou falar com o síndico! Vou dizer: “O senhor é síndico mas é um crápula”


Horácio – Há quanto tempo você usa esse creme?


Adalgisa – Sabia que ele obriga a mulher a ter relações sexuais? A faxineira me contou. Ele fica bêbado e tampa a boca da mulher. Assim. (Aperta a mão na boca) Sufoca. Um monstro! O síndico é um sórdido! Por isso ele diz que eu cacarejo.


Horácio –Ele diz porque você é galinha!


Adalgisa –O que? Eu sou o que?


Horácio – Galinha. Vagabunda. Meretriz.


Adalgisa – Não fala assim comigo!


Horácio – Só as galinhas usam Seiobel!


Adalgisa – Me dá o meu creme! (Adalgisa parte para cima de Horácio. Eles lutam, se agarram. Horácio não dá o creme) Você, Horácio, é igual ao síndico!


Horácio – E se é ele o teu amante?


Adalgisa – O síndico? Ficou maluco, Horácio! Isso já é caso de internação!


Horácio – Você não pára de falar nele. Todo dia. Quanto mais ele te ofende mais você fala nele. É prá ele que você sorri no sonho, não é? Confessa!


Adalgisa – Olha aqui, Horácio! Quer saber? Eu podia ter traído! Traído! Hoje! No seu sofá! Com um homem! Deitada, bem aqui, nua. Podia? Podia. Mas não quis! Não traio porque não quero! Eu não quero trair! Eu sou a única mulher que não deseja trair! Ouviu? A única!


Horácio – Adalgisa, olha os vizinhos...


Adalgisa – Hoje, depois de 30 anos, eu podia realizar o seu maior desejo, Horácio. Mas sabe. Eu não quero. Eu não deixo. Você nunca vai ser corno! Você não é corno porque eu não quero! Meu marido nunca vai ser chifrudo!


Horácio – Vou, Adalgisa! No velório! O teu amante vai chorar no velório!


Adalgisa – Que velório, infeliz?


Horácio – O seu, Adalgisa. Morta você nunca mais vai sonhar. Nunca mais vai sorrir. A morte é o sepulcro do sonho.


Adalgisa – Quem te disse que morto não sonha?


Horácio – Sonha?


Adalgisa – Ué, quem sabe?


Horácio – Maçada.


Cena 17 - Funerária


(Música. O vendedor espana os caixões enquanto acompanha cantando o sambinha de breque. Adalgisa entra, desconfiada, e cutuca o Vendedor pelas costas)


Vendedor – Ah, a defunta. Desculpe, minha senhora, eu estava distraído.


Adalgisa – Por favor, o senhor poderia parar de me chamar de defunta? O meu nome é Adalgisa.


Vendedor – Claro, dona Adalgisa. É uma honra recebê-la no meu humilde estabelecimento. Não é sempre que recebemos a visita do falecido. Se bem que no seu caso a desencarnação tá difícil!


Adalgisa – Eu vim porque preciso. É um assunto sério. Eu preciso de um amante.


Vendedor – Vivo ou morto?


Adalgisa – Vivo. Não é bem um amante. Alguém que o meu marido pense que é meu amante. Só por umas horas. Prá ver se Horácio sossega. O senhor me faria esse obséquio?


Vendedor – A senhora quer que eu seja seu amante por algumas horas? Bem, preciso ver se o gerente autoriza. Sabe como é, eu preciso bater o ponto.


Adalgisa – O senhor aparece lá em casa às tantas horas.


Vendedor – Nu ou vestido...


Adalgisa – Meu senhor!


Vendedor – Brincadeirinha...


Adalgisa – Vestido. E saiba que eu estou fazendo isso pela santa. Pelo manto da santa. Adeus. (E sai)


Vendedor – Cada maluco nesse mundo...


Cena 18 - Casa de Adalgisa


(Horácio entra abraçado com Caveirinha)


Horácio – Entra, Caveirinha, entra. Tu já conhece o caminho.


Caveirinha – Fico meio assim. Sem jeito. A tua mulher? Tá em casa?


Horácio – Claro! Adalgisa não sai sem me dizer onde vai. Adalgisa! Adalgisa, vem ver quem chegou! (Para Caveirinha) Já, já, tá aí.


Caveirinha – Uma santa. A tua mulher. A gente tem que se purificar prá chegar perto dela.


Horácio – Santa do pau oco. Quer saber? Eu tenho a prova. Um creme.


Caveirinha – Creme. Toda mulher usa creme. Vivem empapuçadas dessa gororoba.


Horácio – Prá levantar os peitinhos.


Caveirinha – Adalgisa quer levantar os peitinhos?


Horácio – Então.


Caveirinha – Por que?


Horácio – O tal creme é uma balela. Mulher joga dinheiro fora à toa. Ora, se Adalgisa, nessa idade vai ter peitinhos de adolescente. O amante que se contente.


Caveirinha – Ela não tem amante.


Horácio – Pois é. Caveirinha, me diga uma coisa. Tu entende de religião?


Caveirinha – Fiz primeira comunhão. Tava bonito. Todo de branco. Como é bonito. As crianças de branco, imaculadas. Sem pecado. O pecado vem depois.


Horácio – Pois, quando a gente morre...morre, né mesmo? Ou fica assim...disponível.


Caveirinha – Disponível prá que?


Horácio – Morre só por fora, entende. Morto sonha?


Caveirinha – Como é que eu vou saber. Ainda não morri.


Horácio – Pois é. Adalgisa! Vai ver ela não ouviu. Vou lá dentro chamar a Adalgisa.


(Horácio sai. Caveirinha fica sozinho, abre os braços e inspira todo o ar da sala. Se aproxima do manto em cima do sofá, abraça com força. Horácio entra e surpreende Caveirinha mas não se dá conta porque está completamente fora de si)Adalgisa não está!


Caveirinha (Largando o manto) – Saiu?


Horácio – Você não entende? Adalgisa saiu. Saiu sem me falar. Sabe por que? Por causa do creme. Maldito “Seiobel”. Ela não tem mais recato! Eu sabia! A castidade de Adalgisa é frágil como uma hóstia!


Caveirinha – Não fala assim da Adalgisa! Eu não permito!


Horácio – Que intimidade é essa? “Não fala assim da Adalgisa”! Desde quando tu defende mulher? Não eram todas umas vacas?


Caveirinha – Menos a tua. A tua mulher não. Você devia ter vergonha de ver Adalgisa nua. É como ver uma santa nua.


Horácio – Caveirinha. Tu é o amante?


Caveirinha – Não. Não sou o amante. Porque Adalgisa não quis! Eu implorei! Implorei. Pus minha dignidade de quatro pela tua mulher! Ela não quis! Entende, Horácio! A tua mulher não quer um amante!


Horácio – Estou pasmo. Caveirinha, tu é o maior cara de pau que eu conheço! Larga de ser burro. Adalgisa é devassa mas tem bom gosto. Ia lá querer um amante feio como tu! Um bucho! Ora, onde já se viu.


Caveirinha – Não quis. Eu implorei. Implorei!


Horácio – Que vexame, heim, Caveirinha! Que vexame! E olha. Se tu não fosse meu amigo era capaz até de te dar um tiro. Com esse revólver. (Mostra) É com ele que eu vou matar a Adalgisa. (Caveirinha pega o revólver. Horácio se vira para encher o copo de uísque. Caveirinha aponta o revólver para Horácio) Vou esperar a traidora. Aqui. Quando Adalgisa chegar eu vou dar um beijo. Beijo na boca. O último. Eu dei o primeiro e vou dar o último beijo. Quero sentir o gosto do amante! Depois eu mato. (Horácio se vira para caveirinha) Toma um uisquinho? (Caveirinha atira. Horácio cai com os copos) Tu és uma besta, Caveirinha. (Horácio morre. O vendedor entra, vê Caveirinha parado com o revólver na mão, vê Horácio caído)


Vendedor – Morreu?


Caveirinha – Morreu.


Vendedor – Bem, isso não estava no plano. Deixa eu ver...vamos ter que trocar o forro do caixão, o véu, passar os encargos para a viúva. A viúva, já sabe que é viúva?


Caveirinha – Acho que não.


Vendedor – Pois é. Uma complicação. O senhor também foi convocado?


Caveirinha – Convocado prá que?


Vendedor – Prá ser o amante.


Caveirinha – Que amante?


Vendedor – Veja bem. Eu sou o amante, por tantas horas. Agora não sei como é que fica.... Se o marido bateu as botas a dona...dona...é capaz até de não querer me pagar. E o senhor sabe como é... a gente conta com esse dinheirinho extra...


Caveirinha – O senhor está me dizendo que é o amante de Adalgisa?


Vendedor – Isso. Dona Adalgisa! Que cabeça a minha! Ela não está? Eu cumpro horário. Não foi esse o combinado.


Caveirinha – Ela combinou aqui com o senhor?


Vendedor – Impressionante. As mulheres tão sempre atrasadas.


Caveirinha – Na casa dela? Nas barbas do marido!


Vendedor – É... ex-marido se me permite.


Caveirinha – Eu não acredito! Adalgisa tem um amante! Um amante! Insignificante! Mais insignificante do que eu! É nos seus braços que Adalgisa suspira? É a sua boca que ela beija? É? É?


Vendedor – Veja, meu senhor. O marido que é o marido não reclama. Não sei porque o senhor está tão transtornado!


Caveirinha – Porque Adalgisa era a única! A única, entendeu? E você vem aqui com a maior cara de pau dizer que Adalgisa é uma galinha! Você acabou com o sonho do amor eterno! Você, seu pulha!


Vendedor – O senhor também é amante? Afinal, quantos essa fulana contratou? Eu quero receber a minha parte integral! (Caveirinha chora) O senhor se acalma. Já, já ela deve estar chegando. Não é melhor a gente compor o morto? Sabe o que é, na minha profissão a gente fica agoniado vendo um defunto descomposto. É uma coisa meio indecorosa. O senhor me ajuda?


Caveirinha (Para Horácio) – Você é que é feliz, meu amigo. Morreu sem saber. Tinha a desconfiança. Mas nunca a certeza. Eu tenho a certeza. (Vendedor e Caveirinha levantam Horácio e deitam em cima do sofá. Caveirinha não para de fungar. Horácio parece estar dormindo)Matei o amigo. Pela infiel. Sou indigno até de receber pena. Mereço a morte. Eu quero morrer!


Vendedor – Olha, se o senhor se decidir nós temos vários planos, de acordo com a sua necessidade. Se quiser eu dou um pulinho ali na loja e trago o mostruário. É coisa rápida.


Caveirinha (Examinando o revólver)  Mereço morrer ao lado do meu melhor amigo. Os dois, lado a lado. O corno e o apaixonado. Dois homens, dois Romeus de subúrbio dando a vida por uma Julieta de puteiro! (Aponta para o vendedor) E Adalgisa escolhe esse calhorda desprezível!


Vendedor – O senhor veja lá! Eu fui eleito funcionário do mês! Tenho prestígio! Afinal, quer que traga o mostruário ou prefere escolher no local? (Caveirinha se deita ao lado de Horácio)


Caveirinha – Vou morrer. Ao lado do amigo. (Caveirinha aponta o revólver para a própria cabeça. Vai atirar, hesita. Estende o revólver para o Vendedor) Será que o senhor se incomoda? É que me dá nervoso ver esse cano apontado na cabeça...(O vendedor não pega o revólver)


Vendedor – Desculpe, doutor. Não faz parte de nenhum dos nossos planos! O morto tem que morrer por conta própria.


Caveirinha – Afinal, o senhor vende o quê?


Vendedor – Caixões, da melhor qualidade. Pro senhor então que está nas vias de fato seria uma imprudência morrer sem fazer um plano. O senhor se previne da ganância dos seus familiares. Tem família que enterra o infeliz em caixote de feira. Só prá não gastar. Um homem tão distinto como o senhor não vai querer ser enterrado como um carregamento de batata baroa!


Caveirinha – Tá certo. Eu topo. A minha família suga até sangue de canudinho. Como é que eu pago?


Vendedor – No seu caso...só à vista. O senhor entende, não é? (O vendedor tira um contrato da pasta e passa para Caveirinha. Caveirinha procura uma caneta no bolso. O Vendedor estende a caneta para ele)


Caveirinha – Aqui. Pode usar a minha. O senhor assina aqui, aqui e aqui. Pronto! O cheque é de tanto, por favor! (Caveirinha preenche o cheque. Vendedor acompanha com os olhos) Precisa ser nominal?


Vendedor – É melhor. (O vendedor pega o cheque e o contrato. Verifica. Vai até o telefone. Caveirinha aponta o revólver para a cabeça. Vai atirar. O vendedor impede)


O senhor espera um instantinho que eu tenho que consultar o Tele Cheque. Ele disca) Tá ocupado...


Caveirinha – Se tiver problema eu posso pagar com cartão. (O vendedor disca novamente)


Vendedor – Ah, agora sim! Boa tarde, eu gostaria de fazer uma consulta...(Mostra o cheque para Caveirinha) O CPF é esse aqui? (Caveirinha faz que sim. Aponta o revolver para a cabeça. O Vendedor segura a mão de Caveirinha)231334556/54... Obrigado. Pronto. Agora o senhor pode morrer à vontade!


Caveirinha – Obrigado. (Caveirinha respira fundo, aponta o revólver para a própria cabeça. O vendedor espera) Ah, diga a Adalgisa que morro porque tenho pudor.


(Caveirinha dá um tiro na cabeça. O vendedor olha para ele, examina os olhos, o pulso. Confirma a morte. Começa a guardar os papéis na pasta. Adalgisa entra e vê os dois homens deitados. Ela corre para o sofá)


Adalgisa – O que é isso? O que é que aconteceu aqui?


Vendedor – Uma excelente venda, dona! E a senhora não precisa se preocupar com nada! Eu mesmo vou tomar todas as providências. Se a senhora fizer um upgrade no plano do seu marido eu posso dar um desconto para o maquiador e cabelereiro.


Adalgisa – Eles estão mortos?


Vendedor – Pois é. E o plano do seu amigo é mais caro do que o do seu marido. No enterro, sabe como é, podem falar. É melhor a senhora fazer logo o upgrade.


Adalgisa – O senhor disse ao meu marido que era o amante? Foi por isso que ele se matou?


Vendedor – Não deu tempo. Quando eu cheguei o falecido já tinha falecido.


Adalgisa – E o Ademar?


Vendedor – Esse eu não entendi. Mandou dizer prá senhora que morreu porque tinha pudor... Olha aqui, eu não tenho nada com isso. Fiz o meu papel. Se o seu marido tava morto é problema dele. E já que prá senhora não tenho mais serventia como amante vou voltar prá loja. Depois a senhora acerta. Agora eu tenho que correr!


Adalgisa – Horácio e Ademar...mortos. No mesmo sofá, em cima do manto...que coisa. (O vendedor acaba de arrumar a papelada na pasta)


Vendedor – A senhora não vai chorar o marido? A senhora sabe que aquelas, aquelas que traem aos borbotões, choram porque odeiam o marido? Quanto mais elas tem horror ao marido, mais se descabelam. Depois, passam rouge e batom e vão tomar choppinho na Avenida Atlântica.


Adalgisa – Horácio já estava morto há muito tempo...


Vendedor – E o outro? O outro morreu por amor. A senhora sabe que os que morrem por amor tem sempre um cínico de plantão rindo no enterro. O defunto que morre por amor é motivo de chacota. Coitado.


Adalgisa – Ademar não conta. Homem prá valer a pena sonhar tem que ter ser cafajeste. Senão o sonho fica água com açúcar. Sem graça.


Vendedor – É, dona...dona....


Adalgisa – Adalgisa.


Vendedor – Adalgisa! Memória a minha! A senhora tem...um sangue frio!


Adalgisa – O senhor me dá licença agora. Eu preciso ficar sozinha.


Vendedor – Claro, claro! Olha. Se a senhora tiver mais algum defunto pode indicar! A cada quatro defuntos a senhora ganha um enterro grátis! O patrão é generoso com freguês assim tão bom! (O vendedor sai. Adalgisa fica só com Caveirinha e Horácio. Ela passa a mão no rosto dos dois homens, faz um carinho. Pega o manto da santa, vai até a poltrona pé de palito, senta e começa a bordar. O manto está manchado de sangue.Música)




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