sábado, 21 de janeiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"A propósito de Senhorita Julia"

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A dor de existir


Lionel Fischer




Autor dramático e escritor sueco, August Strindberg (1849-1912) foi o iniciador do naturalismo em seu país e precursor do expressionismo europeu. Inicialmente mais conhecido por sua novelas curtas, despertou polêmica com seus ensaios histórico-culturais, que provocaram seu primeiro exílio voluntário (1883-1889). Em contato com os naturalistas franceses e impregnado das idéias de Nietzche e Schopenhauer, escreveu os dramas naturalistas "O pai", "Os credores" e "Senhorita Júlia" - sendo este último o objeto da presente análise.

Mas antes julgo oportuno ressaltar não apenas seus temas preferidos - a luta dos sexos, a mulher como ente maligno e a polivalência psicológica, abordados com grande senso dramático e técnica irrepreensível - como também mencionar que, após grave crise psicológica, que se seguiu a seu segundo exílio voluntário (1892-1896), escreve seus grandes dramas simbólicos: "A caminho de Damasco", "O sonho", "Dança macabra" e "Sonata dos espectros".
Isto posto, vamos à peça, aqui rebatizada de "A propósito de Senhorita Julia".

Na adaptação feita por José Almino e Walter Lima Jr., a ação se passa na cozinha de uma mansão no Rio de Janeiro. Julia é uma jovem rica que se envolve com Moacir, motorista de seu pai. Cristiane, empregada da casa, namora Moacir e os dois estão prestes a se casar. No entanto, a inesperada relação entre Julia e Moacir põe em xeque não apenas o previsível matrimônio, mas sobretudo levanta pertinentes questões sobre afetos, impulsos reprimidos, o poder do dinheiro e a fragilidade da condição feminina, dentre muitos outros temas. 

Em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues (Caixa Cultural), "A propósito de Senhorita Julia" chega à cena com direção de Walter Lima Jr. e elenco formado por Alesandra Negrini (Julia), Armando Babaioff (Moacir) e Dani Ornellas (Cristiane).

Diante dos temas acima mencionados, torna-se óbvio que a intenção de Strindberg não foi a de priorizar a avassaladora lubricidade dos protagonistas, pois aí teríamos, no máximo, um melodrama como qualquer outro. A atração entre Julia e Moacir existe, evidentemente, mas aqui é trabalhada no sentido de criar um jogo cênico em que, mais do que personagens, ambos funcionam como símbolos de classes com valores diametralmente opostos e inconciliáveis. A possibilidade de um desfecho trágico, portanto, permeia toda a ação.

Sem dúvida uma obra-prima, o texto de Strindberg recebeu ótima adaptação de José Almino, que teve como base "After Miss Julie", do inglês Patrick Marber. Nada se perde em relação ao original e certamente o fato de ter sido contextualizada no Brasil e na atualidade aproxima ainda mais o público dos conteúdos propostos pelo autor.

Com relação à direção, como de hábito Walter Lima Jr. impõe à cena uma dinâmica desprovida de inúteis firulas formais, concentrando-se no que de fato importa: a relação entre os personagens, a materialização de seus sentimentos, idéias e contradições, tudo isto levado a cabo com sobriedade, precisão rítmica e marcações em total sintonia com as variantes emocionais magistralmente criadas pelo dramaturgo sueco.

No tocante ao elenco, Alessandra Negrini consegue materializar de forma irretocável toda a complexidade de um caráter dilacerado, pois se por um lado Julia é uma mulher de extrema fragilidade, carente, oprimida e sonhadora, também não deixa de ser uma pessoa capaz de oprimir, magoar, exercer seu lado cruel com uma aterradora capacidade de ferir. Como não sou psicólogo, não sei se Julia é portadora de alguma patologia específica. Mas creio que ela possui, digamos, algo que poderia definir como a dor de existir. E esta, ao que me parece, dificilmente tem cura...

A mesma eficiência se faz presente na performance de Armando  Babaioff. O Moacir que constrói está em total sintonia com o pretendido pelo autor: um jovem ambicioso, sedutor, aparentemente disposto a dar uma guinada em sua vida transcendendo a condição subalterna que lhe é inerente mas que, ante a iminência de um simples chamado do patrão, assume totalmente seu papel naquele contexto: alguém cujo destino é obedecer, jamais mandar.

Dani Ornellas, na pele de Cristiane, e ainda que em papel de menores oportunidades, também exibe atuação absolutamente convincente, conseguindo retratar tanto sua paixão por Moacir quanto a consciência que possui com relação à impossibilidade de se ultrapassar, impunemente, as fronteiras rigidamente estabelecidas entre as classes sociais.

Na equipe técnica, são corretos os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna produção - Daniel Galvan (iluminação), Angéle Fróes (figurinos), José Dias (cenografia) e Walter Lima Jr. (trilha sonora).

A PROPÓSITO DE SENHORITA JULIA - Texto de Strindberg. Adaptação de José Almino. Direção de Walter Lima Jr. Com Alessandra Negrini, Armando Babaioff e Dani Ornellas. Teatro Nelson Rodrigues (Caixa Cultural). Quinta a sábado, 20h. Domingo, 19h30.  



    

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