segunda-feira, 4 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Outside"

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Mundo em falência


Lionel Fischer


"31 de dezembro de 1999. Nas últimas horas do milênio, o investigador de crimes de arte Thomas De Quincey, no momento licenciado de seu trabalho, é acordado por um estranho telefonema denunciando o desaparecimento de Norma Jean Baker, uma adolescente de 14 anos. Apesar de se tratar de crime comum, o departamento de crimes de arte, mantido pela Galeria Peggy Guggenheim e chefiado por Teodoro Adorno, é acionado para conduzir a investigação. O caso Norma Jean pode ser a bomba do novo milênio pela qual todos ansiavam, e interferirá diretamente na rotina da galeria. Mas afinal: qual é o limite da arte? Poderá um crime se transformar em uma obra de arte?"

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o enredo de "Outside", atual produção de Aquela Cia. de Teatro, em cartaz no Espaço Tom Jobim. Definido pelo grupo como um munical noir em homenagem  a David Bowie, "Outside" foi escrito por Pedro Kosovski e chega à cena com direção de Marco André Nunes. No elenco, Letícia Spiller, André Mattos, Jorge Caetano, Bruno Padilha, Gabriela Geluda, George Sauma, Laura Araújo, Remo Trajano, Marina Magalhães, Paula Otero e Carolina Lavigne, que dividem o palco com a Banda Outsiders, formada por Felipe Storino (guitarra), Flávia Couri (baixo), Maurício Chiari (bateria), Paula Otero (violoncelo, guitarra e flauta doce), George Sauma (teclado), Remo Trajano (tambura) e Pedro Kosovski (guitarra).

Exibindo canções célebres de David Bowie e outras compostas por Felipe Storino e Pedro Kosovski, o presente espetáculo propõe diversas reflexões, a maior parte delas, ao que me parece, relacionadas ao universo da arte - seus limites, seu processo de criação, sua maior ou menor validade no mundo atual etc. No entanto, dois aspectos não podem ser ignorados: a homenagem a David Bowie e o fato da montagem ser conduzida por um personagem chamado Teodoro Adorno, que provavelmente remonta ao filósofo alemão Theodor Ludwig Wiesengrund - Adorno (1903-1969).

No tocante a David Bowie, esté é certamente uma personalidade exponencial do rock, tanto por sua peculiar forma de cantar como pela profundidade intelectual de sua obra. Quanto a Theodor Adorno, não tenho elementos para afirmar em quais de suas obras Pedro Kosovski mais se inspirou, mas suponho que possam ter sido a "Dialética do Esclarecimento" - escrita com a colaboração de Max Horkheimer e que visa, dentre outras coisas, criticar a lógica cultural do sistema capitalista e a sociedade de mercado que só objetiva o progresso técnico - e a "Dialética Negativa" - aqui o autor propõe uma reforma da razão, para libertá-la do domínio autoritário sobre as coisas e os homens que vinha desde o Iluminismo.

Mas há ainda uma uma terceira personalidade a ser considerada. A adolescente de 14 anos chama-se Norma Jean, nome verdadeiro da atriz Marilyn Monroe. Então, estaríamos diante de um singular triângulo: Bowie e Adorno contestaram o sistema, ainda que valendo-se de meios diversos, e Marilyn foi por ele devorada. Isto posto, fica a pergunta: estaria Pedro Kosovski nos propondo, afora uma reflexão sobre o universo da arte, como já foi dito, algo mais além? Estaria, em última instância, pretendendo nos mostrar a falência do mundo contemporâneo, já que dele a ética parece ter sido completamente banida?

Sinceramente, não sei. Mas são estas as conjecturas que me ocorreram, e aos espectadores talvez ocorram outras. Seja como for, cumpre registrar que estamos diante de uma obra séria e instigante, mas de apreensão nada fácil, dada a extensão do texto, sua estrutura por demais fragmentada e uma relação nem sempre compreensível entre algumas canções e a trama - ao menos para mim, o que não impede que esta relação seja claríssima para muitos espectadores.        

Com relação ao espetáculo, Marco André Nunes impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Tive sempre a sensação de estar diante de um mundo em ruínas, em estado terminal, como se os personagens não passassem de espectros a realizar orgias sobre a campa das próprias sepulturas. Sem dúvida, um universo aparentemente destituído de qualquer esperança, já que transcender o trágico final que se avizinha implicaria em repensar o homem e criar novos valores. Mas haverá tempo suficiente para uma empreitada tão complexa?

No tocante ao numeroso elenco, todos os intérpretes exibem performances seguras e convincentes, contracenando de forma visceral e sem jamais lançarem mão de chaves interpretativas facilitadoras. Todos atuam como trapezistas com plena consciência de que não existe qualquer rede de proteção. E esta total disponibilidade para o risco merece todos os aplausos.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os irretocáveis trabalhos de Felipe Storino (direção musical), Patricia Maia e Danielle Lima (preparação vocal), Márcia Rubin (coreografia e direção de movimento), Flávio Graff (cenografia e figurinos), Felipe Bragança e Carolina Lavigne (vídeo de Norma Jean Baker), Renato Machado (iluminação), Fernando Do Val (direção de produção) e a ótima performance da banda Outsiders.

OUTSIDE - Texto de Pedro kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Aquela Cia. de Teatro. Espaço Tom Jobim. Sexta, sábado e domingo, 21h.

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