quarta-feira, 20 de julho de 2011

"Lugar de viado"

Lionel Fischer


          Embora todos os queridos parceiros deste blog saibam que este é um espaço basicamente dedicado ao estudo do teatro, um fato estarrecedor, que nada tem a ver com a arte teatral, me obriga a comentá-lo - estarrecedor, sem dúvida, sobretudo porque está assumindo proporções catastróficas.

          Muitos jornais de hoje noticiaram a bárbara agressão cometida por um grupo de rapazes, todos na faixa dos 20 anos, contra o que supunham ser um casal gay. Transcrevo, a seguir, parte da matéria publicada hoje, 20/07/2011, no jornal O Globo, assinada por Flávio Freire:

          "Confundidos com homossexuais, o vendedor autônomo João Garrido, de 42 anos, e o filho dele, de 18, foram violentamente agredidos enquanto se divertiam numa feira de exposição em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, na madrugada da última sexta-feira. Pai e filho estavam abraçados quando um grupo de pelo menos sete rapazes - todos aparentando cerca de 20 anos - abordou os dois perguntando se eles eram gays. Garrido disse que não, e os agressores foram embora. Menos de dez minutos depois, foram surpreendidos com ataques pelas costas. Garrido teve parte da orelha direita arrancada".

           Cumpre registrar que, enquanto estavam sendo agredidos, pai e filho ouviam dos rapazes:

           "Aquele não era lugar de viado".

          Episódios como este já aconteceram inúmeras vezes, continuam acontecendo e, provavelmente, tendem a aumentar. Segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, ONG que há 30 anos defende os direitos dos homossexuais, de 2007 a 2010 foram assassinados 260 homossexuais no Brasil (este dado consta da matéria assinada por Freire). Mas eu me permito supor que este número seja muito mais elevado, pois certamente muitos crimes perpetrados contra gays não devem estar incluídos nesta categoriaIsto posto, vamos a uma breve reflexão. 

          Imaginemos que eu seja um homem feio, sem nenhum atrativo físico, e passe por mim um homem lindo, forte, caminhar seguro, aspecto sedutor etc. Pois bem: ao constatar nossas diferenças, posso nutrir, por este homem, um sentimento de inveja, já que ele reúne uma série de predicados dos quais careço. Portanto, é o que nos difere que me incomoda.

          Quando, porém, nos deparamos com ataques de pitboys a homossexuais, dois aspectos ficam evidentes. O primeiro: os atacantes estão sempre em vantagem numérica, o que por si só já constitui abominável covardia. Mas é o segundo ponto o que mais
me intriga: se os tais pitboys se consideram legítimos representantes da masculinidade, ao se depararem com gays poderiam, no máximo, encará-los com desprezo - no caso de serem apenas completamente boçais - ou nutrirem um sentimento de compaixão - aí seriam menos boçais, ainda que sua eventual compaixão não seja suficiente para camuflar sua intolerância. Mas, em ambos os casos, nada fariam contra aqueles que se comportam de forma diferente.

          Mas é aí que me parece estar o X da questão: o que incomoda, e gera incontrolável fúria, não é a diferença, mas a SEMELHANÇA. Mesmo não sendo psicólogo, psicanalista, psiquiatra ou algo no gênero, não tenho a menor dúvida de que violências desta natureza nada mais fazem do que evidenciar a homossexualidade latente dos agressores - seja nesta ou em qualquer outra situação, é certamente mais fácil punir o outro do que admitir que esse outro e eu possamos ter muito mais coisas em comum do que possa supor minha precária e vã filosofia.

          Infelizmente, como todos sabemos, desde que o mundo existe todas as chamadas "minorias" vem sendo implacavelmente perseguidas - judeus, ciganos, homossexuais etc. Fato curioso, sem dúvida, pois as minorias, dada a sua condição de minorias, não deveriam gerar nenhuma inquietação maior, posto que, ao menos em princípio, não teriam como enfrentar os que efetivamente detêm o poder. Ou será que teriam? 

          Costuma-se dizer que todo o mal deve ser cortado pela raiz. No presente caso, os homossexuais seriam o mal, uma espécie de germe que, não sendo logo eliminado, poderia se multiplicar, gerar uma espécie de epidemia capaz de contaminar toda a sociedade, supostamente detentora do monopólio de todas as virtudes.

          Trata-se, naturalmente, de execrável falácia. Em primeiro lugar, porque nossa sociedade nada tem de virtuosa; e depois, e fundamentalmente, porque opções afetivas não podem estar sujeitas a nenhum tipo de regulamentação. Se eu não tenho o direito de ser gay ou lésbica, também não teria direito de optar por uma crença religiosa em detrimento de outras; não poderia aderir a uma corrente política contrária à da maioria; não poderia usar sandálias havaianas se o gosto dominante prega o uso de sapatos; teria que ter curtos os cabelos se o normal é tê-los longos. E assim ad infinitum...

           Portanto, ao lavrar este breve protesto, faço absoluta questão de me solidarizar com todos aqueles que, cientes de sua singularidade, não temem em exercê-la. Seja no campo sexual ou em qualquer outro. E aproveito para desejar a todos aqueles que sofrem maus tratos - em qualquer campo, torno a insistir - que não se acomodem no papel de vítimas, que lutem com todos os meios de que dispõem (e outros que possam ser criados) para tornar, cada vez mais claro, que o que deve ser cortado é a raiz do mal. No caso, a intolerância, esse flagelo que parece fadado a se perpetuar, mas que certamente pode ser banido, desde que cada um de nós, antes de atirar a primeira pedra, tenha consciência de que, se o fizermos, a próxima pode vir em nossa direção.
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