quinta-feira, 5 de maio de 2011

O Teatro Físico:
aspectos históricos e
exemplos contemporâneos

Lúcia Romano


Definição do termo -
Teatralidade e Corporeidade


          A reflexão sobre o Teatro Físico e suas implicações no panorama da cena teatral contemporânea gera inúmeras e importantes questões. Para Birringer,

Conforme aumentamos nossos esforços para pensar além ou abaixo da superfície do Espetáculo, tornamo-nos a lembrar que o teatro, talvez muito mais do que possamos imaginar hoje, tem estado sempre em conflito com sua aparência enquanto espetáculo.

           O Teatro Físico (Physical Theatre) repete a pergunta sobre a materialidade da cena, remetendo a problemas ontológicos da arte teatral e do ofício do ator. A investigação sobre a importância do seu surgimento no panorama da produção mais recente do teatro contemporâneo ocidental, desenvolvida aqui, tem por objetivo identificar em que dimensão a sua formalização oferece soluções diferenciadas para um problema específico da arte teatral: a expressividade (do teatro) em relação à corporeidade do ator.

          O termo Physical Theatre tornou-se conhecido nas artes cênicas nas três últimas décadas do século XX, caracterizando uma nova tendência teatral. Acredita-se que tenha sido cunhado primeiro na Inglaterra, vindo a definir uma gama bastante diversa de criações que transitam numa área de cruzamento entre a Dança, o Teatro, a Mímica e o Circo.

          O Teatro Físico quer enfatizar a materialidade do evento; physical poderia ser traduzido como "conectado ou relativo ao corpo", correnponde àquilo que pode ser sentido ou visto e que não existe apenas numa dimensão espiritual ou mental. A produção eclética reunida pelo conceito Teatro Físico é identificada com a tensão que se apresenta no duplo legado do nome que a caractreriza: uma ação sobre a fisicalidade, gerando uma certa disposição do corpo, em função de uma teatralidade específica.

          Teatralidade, entretanto, não é um conceito que escape de generalizações. De acordo com Pavis, o conceito de teatralidade se forma, provavelmente, a partir de teatro, assim como a literalidade deriva de literatura. Teatralidade, desse modo, remete à idéia de algo absolutamente teatral ou cênico. Mas como resumir uma arte em um grupo de atributos, uma vez que a operação de designar fenômenos complexos por meio de níveis de descrição mais simplificados corre sérios riscos de imprecisão?

          O conceito poderia ser compreendido a partir de algumas associações já aceitas criticamente, tais como o texto dramático conter menor teatralidade do que a cena, a designação "teatral" resumir-se a uma qualidade daquilo que é expressivo ou excessivamente artificial, ou ainda enquanto "maneira específica de enunciação teatral". Específico da maneira teatral parece ser um sinônimo eficiente para teatralidade, desde que se considere como específico do teatro as muitas tensões entre seus elementos constitutivos que garantem a vitalidade da cena, incluindo também nesse jogo a relação entre o objeto olhado e o olhar criativo do espectador.

          Mas existe, afinal, um teatro que não seja corporal? Em outras palavras, seria possível imaginar uma teatralidade onde a corporeidade do ator possa ser prescindida ou não mereça destaque? O projeto de realização material do espetáculo sem a participação do corpo do ator tem Craig como sua figura emblemática.

          Em Da Arte do Ator, que inaugurou em 1905 uma série de escritos sobre aspectos teóricos e práticos da arte dramática de sua autoria, Edward Gordon Craig visualiza utopicamente um teatro sem atores. Em outro ensaio, de 1908, intitulado O Ator e a Supermarionete, Craig defende um teatro onde supermarionetes seriam os intérpretes, num modelo que é uma ampliação dos limites da matriz teatral, entendida como a tríade entre atuante, texto e público.

          Para Craig, o "teatro puro" só pode renascer com o teatro integral, onde uma visão "centralizadora" organiza todos os elementos da cena; o escritor transformado em dramaturgo (diferenciado, portanto, de um criador de textos que independem da cena para existir) e o ator, rigorosamente vigiado, transmudado em elemento vivo de uma encenação.

          Na Arte Nova que concebe, idealiza um ator capaz de disciplinar pensamento e sentimento, uma vez que "o ator ideal saberá conceber símbolos perfeitos de tudo que existe na natureza". No "teatro do futuro" de Craig, os gestos simbólicos irão corrigir a imperfeição natural do corpo humano, segundo a orientação de um encenador, que domará e modelará a personalidade rebelde do intérprete.

          Sua crítica ao ator de carne e osso, vítima fácil de sua própria natureza humana, tem como alvo a tradição tirânica da vedete. Em defesa de um ideal simbolista de teatro, Craig advoga a disciplina para a criação da cena. Segundo Hartnoll, "...Craig passou o resto de sua longa vida lutando contra o que considerava o egoísmo e estupidez dos atores, a inadequação dos ditetores e as palhaçadas crassas dos cenógrafos contemporâneos".

          A utopia de Craig é, sobretudo, um protesto contra a imitação da natureza no teatro. Craig elege a marionete como alternativa à "imitação material, grosseira, imediata da realidade" dos atores, que misturam sua própria vida à obra: a marionete é superior ao ator, porque não tem afetação.

          Antes mesmo de Craig, no ensaio intitulado Sobre o Teatro de Marionetes (1810), Kleist utiliza a imagem da marionete para evocar o estado do ser livre do peso do corpo e do deslocamento involuntário da alma para além do centro de gravidade do movimento (o que prejudicaria a graça, e, portanto, impediria a arte). De acordo com Gouhier, a metáfora da supermarionete de Craig, inspirada no mesmo fascínio pela graça da marionete declarada por Kleist, esconde a vontade de supremacia do diretor sobre o ator, expressa no símbolo eleito para viabilizar a Nova Arte: um objeto de aparência impassível e manipulável.

           Para Craig, o teatro viciado demais no humano precisaria ser destruído, para dar lugar a atores como Henry Irving, de quem era admirador confesso. A discussão sobre a construção vocal e corporal de Irving, consideradas erros de atuação por outros (contrariando Craig), traduz as diferenças entre o modelo de interpretação mimética (realista) daquela época e os métodos mais "teatralistas".

          É importante notar que a insatisfação de Craig não se limita, no entanto, aos intérpretes, mas a tudo que representa o realismo na arte do teatro. O que ele critica como "demasiado humano" é a construção teatral convencional, que se contrapunha à personalidade sangüínea e à genalidade de Irving, num modelo pessoal de representação.

            Não por acaso, o centro da proposta de Craig está no movimento do corpo. Seu ensaio de 1908 é uma nostalgia da perfeição cinética, que evoca a graça, a leveza, a ligeireza e a precisão da marionete. A supermarionete é uma "unidade de expressão", um estilo alcançado pela arte absoluta quando o corpo humano liberta-se de seus limites orgânicos. Mas esse projeto, de acordo com Krysinski, é irrealizável, porque por trás do símbolo da marionete existirá sempre o homem, numa relação de osmose que não foi considerada por Craig.

          Zamora, de um ponto de vista similar, entende que a proposta da supermarionete aponta para a criação de associações imprevistas de formas humanas e não raro para uma desumanização. Ao contrário do que possa parecer, ela indica um alto grau de humanização, no sentido da síntese do humano. "A marionete imita e sintetiza o humano que a produz, a ponto de o humano a transformar em símbolo absoluto do teatro".

         É importante notar que a maionete aparece no pensamento sobre o teatro em diversos momentos em que este tenta afirmar-se como arte autônoma, livre da imitação da natureza e das ambições de realismo e psicologismo. O projeto de autonomia é compartilhado por Meierhold, Artaud, Kantor e outros criadores que têm a marionete como tema e símbolo para a perfeição da forma teatral.

          As utopias teatrais que transformam o corpo humano em máquinas biológicas supereficientes - o ator "biomecanisado" ou "taylorisado" - questionam o teatro como forma de representação "fiel" da realidade e inauguram a idéia de funcionamento da cena enquanto escritura no espaço, que pode ser diretamente relacionada a uma nova "dramaturgia", onde o movimento do corpo no espaço é central.

          Não existe, portanto, teatro sem a presença sensível do indivíduo, mesmo na utopia da supermarionete criada por Craig. Do mesmo modo, o "teatral" estará sempre relacionado ao "corporal" e ao conflito entre uma maior ou menor dependência da cena à representação realista do mundo natural. 

          Qual seria, então, o sentido do surgimento de uma forma teatral diferenciada da totalidade da produção teatral contemporânea ocidental, cuja definição sugere uma fisicalidade associada à teatralidade? Em qual dos dois termos da equação reside a especificidade do Teatro Físico? Que inovações ou herança de continuidade vem representar? A quais necessidades atenderia a criação de um novo termo, caracterizando uma área de trabalho teatral com limites ainda por delinear?
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Extraído de O Teatro do Corpo Manifesto: Teatro Físico, Editora Perspectiva, 2005.
         

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