segunda-feira, 16 de maio de 2011

Jacques Lecoq

Lúcia Romano


           Lecoq foi ator, professor de educação física, reeducação corporal e movimento para o teatro, diretor de movimento, com Strehler, Grassi e Jean Villar, e pesquisador na Escola de Arquitetura, em Paris (U.P6, em 1969). Quando fundou em 1956 a École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, em Paris, voltada para o estudo da intepretação a partir da observação da vida cotidiana e da natureza do movimento e ritmos do corpo, Lecoq já acumulava uma trajetória significativa.

          Para Jacqueline Robinson, seu caráter de pesquisador foi marcado em definitivo pelos oitos anos em que viveu e trabalhou na Itália, culminando na experiência junto ao Piccolo Teatro de Milano. Na Itália, Lecoq descobriu as máscaras da commedia dell'arte, os princípios de Copeau - do palco nu, onde o ator, inspirado pelo germe do texto, pode encontrar espaço para o exercício da sua imaginação - e o coro grego.

          Com um rigor maior do que Gaulier no que tange à qualidade e à formalização do movimento, quanto ao treino do ator, considera como central a construção de uma expressividade baseada no domínio da fisicalidade do gesto; construção que se fundamenta na redescoberta das tradições teatrais, como a commedia dell'arte e a tragédia grega. A mímica corpórea é o treino que aviabiliza o desenvolvimento da precisão e da consciência do movimento; mas o ator deve superar os limites expressivos da mímica e buscar suas próprias ferramentas.

          O curso na École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq é dividido em dois anos. No primeiro ano, o programa prepara o vocabulário técnico do ator (voz e movimento), relacionando a observação da natureza e seus elementos - plantas, animais, cores, materiais, aspectos da vida cotidiana, obras de arte literárias, musicais e visuais - à expressividade no teatro. São desenvolvidos trabalhos com objetos, estruturas móveis, máscaras (neutra e expressiva) e acrobacia.

           No segundo ano, alguns alunos são convidados a continuar a formação, cuja ênfase recai sobre o trabalho coletivo e o processo de criação, tomando como vocabulário e estímulo para a imaginação diferentes estilos da tradição teatral - commedia dell'arte, tragédia grega, melodrama e bufonaria, entre outros.

          O treinamento de mímica na escola de Lecoq segue a tradição de Etienne Decroux, que concebeu uma nova visão para a expressividade do corpo, influenciando fortemente todo o teatro corporal. Nascido em 1898, ele estudou no Vieux Colombier com Copeau (onde aprendeu o trabalho com máscaras) e integrou o grupo do Atellier por dez anos, com Dullin, que o impulsionou na pesquisa de "jogo corporal" (pesquisa que já desenvolvia anteriormente, ao lado de Dorcy).

          Barault foi seu companheiro na busca de uma nova mímica, que frutificou em peças sem palavras, aulas e conferências. Nos anos de 1950, ministrou cursos no Actor's Studio, em Nova York, e no Piccolo Teatro de Milano, cessando as atividades pedagógicas em 1986, já com 86 anos.

          Decroux chegou a lamentar ter denominado seu método de mímica corpórea, "pois mímica evoca a pantomima, ao passo que o jogo corporal é muito mais amplo em suas implicações". Para ele, a pantomima, voltada para a narração de uma história por meio de gestos, diferencia-se do mimo - mais aberto às explorações poéticas do movimento, mas ainda seria uma tentativa inficiente de comunicação.

           Patrice Pavis observa que a intenção de Decroux foi construir um mimo corporal à maneira de Copeau, diverso tanto do mimodrama de Marcel Marceau quanto do mimo dançado do ballet clássico. A pesquisa que desenvolveu caracterizou-se enfim pelo rigor na observação, classificação, separação e codificação - obtida pela condensação, oferecendo seu resumo no tempo e no espaço - do movimento corporal.

          Sua busca perfeccionista pelos princípios geométricos do movimento humano, realizada em nome da expressividade essencial do corpo do ator, não considerou apenas os movimentos, mas também a respiração, a elocução e a voz. Por causa desse rigor, Decroux é tido por Eugenio Barba (Grupo Odin) como um dos poucos mestres no ocidente que constituíram um treinamento comparável às tradições orientais.

          Seu foco restrito nas bases do movimento humano permitiu alcançar o essencial para a geração do corpo cênico ficcional. Para Barba, Decroux conseguiu sistematizar os fundamentos do treinamento corporal do ator, que residem na criação do equilíbrio extracotidiano, na dança das oposições, no destaque para o papel do tronco (centro do corpo) para a concentração da energia do movimento e no princípio da substituição, operando não pela imitação direta, mas pela recriação do real por equivalência.

           Decroux formou muitos artistas na mímica corpórea, responsáveis pelos destinos diversos de seus princípios. Seu filho Maximilien - que mais tarde tornou-se professor na escola de Marcel Marceau, outro aluno de Decroux - e a dupla Soum e Wasson - dois dos últimos assistentes de Decroux, criadores do grupo Théâtre de l'Ange Fou - exemplificam duas das vertentes surgidas a partir do legado do mestre, que são a mímica "pura" e a mímica corpórea em cruzamento com as formas do espetáculo teatral.

          Em decorrência do fértil campo de influências que gerou, considera-se o valor de Decroux não na invenção de uma técnica, mas na constituição de uma abordagem cinésica do fenômeno teatral, o que cumpre a missão muito mais abrangente de investigar no teatro a "comunicação pelo gesto e pela expressão facial".

          Deidre Sklar vê na figura de Prometeu a síntese da estética, técnica física e visão de mundo do mestre da mímica corpórea. O personagem do mito grego simboliza a condição humana, nos aspectos do sofrimento, do esforço, da rebeldia, da autocriação e do predomínio do artifício racional sobre a natureza. O ator de Decroux, como Prometeu, almeja a ação transformadora e não teme o preço de sua escolha.

          Lecoq conheceu o trabalho de Decroux e teve contato com fontes semelhantes às dele, no período de trabalho na Itália e nos anos de aprendizado e criação na França. Investigando o mesmo universo que o mestre da mímica corpórea, no que diz respeito à geração no palco da presença (o aqui/agora material) do corpo do ator, por meio do emprego de signos não convencionais, Lecoq colaborou para a expansão das fronteiras da mímica. John Daniel ressalta que isso ocorre também porque seu método enfatiza a inspiração nascida do contexto social, ao invés da busca pela perfeição do movimento apenas no treino solitário do artista.

          A superação dos limites da mímica, em favor do livre emprego da imaginação e da expressividade do ator, propostas por Lecoq, foi relevante não só para a mímica, mas principalmente para o teatro. De acordo com o mestre, o que caracteriza a mímica e melhor exprime suas potencialidades comunicativas e artísticas não é a ausência de textos falados, mas a geração de um corpo expressivo que emprega o visual e o sonoro, numa revalorização do silêncio e do som: o visual é meio e não fim para o estabelecimento da presença expressiva do ator.

           Também as máscaras, tanto nas tragédias e comédias gregas como na comédia italiana, auxiliam essa presença, porque implicam na reestruturação da exprssão do som e do corpo. "Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá à palavra sua profundidade. Um discurso que ignorasse a qualidade do silêncio não passaria de verborragia".

          No ensino da École Jacques Lecoq, muitas premissas do Teatro Físico estão presentes: são exemplares a estilização como recurso natural da linguagem do movimento e da cena; o emprego da improvisação; o resgate de formas populares como o melodrama e o clown; o emprego da mímica (com ou sem o acompanhamento do texto falado); a contraposição do estilo do bufão à personagem psicológica; a fusão de estilos; a ênfase no processo de criação e a aposta no processo colaborativo - desde 1968, os alunos praticam autocours, quando novamente trabalham as improvisações feitas em aula e desenvolvem em conjunto os aspectos técnicos e artísticos da performance.

           O fundamental, entretanto, está na ampliação da função do ator, convertido em criador do espetáculo e não apenas intérprete de um papel: quando a autoria da obra é democratizada, o ator-intérprete é substituído pelo ator-criador, um ator consciente de suas ferramentas expressivas, treinado na linguagem do teatro corporal e maduro para capitanear o processo criativo. O corpo do ator-criador, recriando-se na relação com o espaço, espelha as estruturas do drama, a construção arquitetônica do fenômeno teatral que ele faz efetivar.

           A influência de Lecoq é marcante não pela determinação de um modelo de espetáculo, mas na intenção criativa que impulsiona os espetáculos e dá unidade à diversidade de resultados do Teatro Físico. Os grupos assemelham-se na eleição de um processo criativo que reiventa as formas teatrais por meio da exploração do repertório expressivo do ator, nos seus aspectos gestual e vocal. Assim, cada artista ali formado pôde explorar a mímica e o teatro, em direção a um terreno que mistura as duas linguagens, oferecendo sua própria versão dos princípios de Lecoq.
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Extraído, e um pouco reduzido, de "O Teatro do Corpo Manifesto: Teatro Físico", Editora Perspectiva/2008.

Um comentário:

  1. Lúcia Romano, sempre segura como um capitão de navio. Corretíssima, lógica e competente. Demora o reconhecimento de seu valor à nossa cultura. Não existe nada ao seu nível na área.

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