quarta-feira, 27 de abril de 2011

Constantin Stanislavski
Trechos selecionados do livro
Manual do Ator


As ações criam a vida física de um papel

Um papel em um espetáculo, mais do que a ação na vida real, deve ser uma fusão das duas vidas - a da ação exterior e a da ação interior - num esforço mútuo que visa a alcançar um determinado objetivo. Sintam-se, ainda que parcialmente, em seu papel, e deixem que seu papel sinta-se, ainda que parcialmente, em vocês mesmos: isso é para que vocês consigam vê-lo.

Acentuação

A acentuação é um dedo em riste, que aponta para algo e lhe desvenda o significado. Ela acentua a palavra-chave, o ponto culminante do subtexto. O ponto principal não é tanto o volume, e sim a qualidade da acentuação, que pode combinar-se com a entonação; este última confere à palavra várias nuanças.

Análise

O objetivo da análise é o aprofundamento emocional da alma de um papel. A análise não é um processo exclusivamente intelectual. A análise é um meio de vir a conhecer uma peça, isto é, senti-la. Ter um domínio pleno das ações físicas representa a chave da liberdade. Ao nos deixar-mos absorver pelas ações físicas imediatas, não refletimos sobre o complexo processo de análise interior, que, natural e imperceptivelmente, se desenrola dentro de nós, e nem temos consciência do mesmo.

Aqui e agora

Pensem sempre nisso na hora de interpretar um personagem: o que EU faria aqui e agora, SE na vida real, tivesse que agir em circunstâncias parecidas àquelas determinadas pelo meu papel?

Arrebatamento interior

Um verdadeiro artista deixa-se arrebatar por tudo que acontece ao seu redor. Não se pode ser frio quando se trabalha com arte. O entusiasmo artístico é a força motriz da criatividade.

Atitude amadorística

O pior inimigo do progresso é o preconceito. Não pode existir arte alguma sem virtuosismo, prática e técnica, tanto mais necessários quanto maior for o talento. Os amadores rejeitam a técnica numa atitude que não reflete suas convicções conscientes, mas sim e tão somente uma preguiça desenfreada. Sem um completo e profundo domínio de sua arte, o ator é incapaz de transmitir ao espectador tanto a concepção e o tema quanto o conteúdo vivo de qualquer peça. Ator, senhor de sua arte.

Ator em seu papel

Em seu íntimo, paralelamente à linha das ações físicas, os atores possuem uma linha contínua de emoções que beiram as raias do subconsciente. Trabalhem para chegar ao ponto de assumir corretamente um novo papel, como se este fosse a sua própria vida. O ser recém-nascido criados por vocês se tornará alma de sua alma e carne de sua carne. Personagem + Ator =  uma nova alma única pulsante no mundo.

Atores inspirados

Quanto menos talentoso for um ator, maior será o seu "gênio", que não lhe permite fazer uma abordagem consciente de sua arte. Tais atores consideram um incômodo todo fator consciente que interfira em sua criatividade. Acham mais fácil ser ator pela Graça de Deus. Um ator, porém, não pode arriscar sua carreira em alguns sucessos ocasionais. O acaso não é arte. Sobre ele, nada pode ser construído.

Atuação em conjunto

A despeito de minha grande admiração pelos extraordinários talentos individuais, não aceito nenhuma forma de estrelismo; o esforço criador em comum será a raiz da arte que praticamos.

Atuação mecânica

Na atuação mecânica não há necessidade de um processo vivo. O pior de tudo é que os clichês preencherão todos os espaços vazios de um papel ao qual o sentimento vivo ainda não conseguiu atribuir um corpo sólido. Os artifícios que funcionam são quando o ator usa as emoções teatrais (emoções não verdadeiras).

Autocrítica

Temam os seus admiradores! Aprendam a entender e a amar a verdade cruel a respeito de si próprios. Falem a respeito de sua arte somente com aqueles que podem lhes dizer a verdade. A maioria dos atores tem medo da verdade, não por serem incapazes de suportá-la, mas porque ela pode destruir, no ator, a fé que ele tem em si próprio.

Clareza

As ações devem ser claras como as notas de um instrumento, de outra forma estarão sujeitas, tanto interior quanto exterimormente, a serem indefinidas e desprovidas de arte. O acabamento é essencial. O erro dos atores consiste em não se preocuparem com a ação em si, mas com seus resultados.

Comunhão

Quando falarem com a pessoa com quem estiverem contracenando, aprendam a manter sua atenção fixa, até certificarem-se de que seus pensamentos penetraram no subconsciente de seu coadjuvante. Por sua vez, vocês devem aprender a assimilar, a cada vez como se fosse a primeira, as palavras e os pensamentos de seu coadjuvante, para cujas falas devem estar muito atentos, mesmo que as tenham ouvido inúmeras vezes nos ensaios e nas representações diante do público. Esta relação deve estabelecer-se cada vez que atuarem juntos e isto requer uma grande concentração de atenção, técnica e disciplina. Se um ator tem que ouvir, que haja intenção no seu ato. Se tiver que olhar para algum lugar, que use plenamente os seus olhos.

Cópia

Há o diretor de exepcional talento que mostra ao ator como deve representar o seu papel. Devemos permitir que cada ator produza aquilo de que é capaz, em vez de perseguirmos um objetivo que se encontra além de sua capacidade de criação.

Criação da vida interior de um papel

O objetivo fundamental da nossa arte é a criação da vida de um espírito humano e sua expressão numa forma artística. O processo criativo de viver e experimentar um papel é um processo orgânico, fundamental nas leis físicas e espirituais que regem a natureza humana.

Disciplina

A disciplina férrea é absolutamente necessária em qualquer atividade de grupo. Sem disciplina não pode existir a arte do teatro!

Emoções teatrais

Emoção teatral é uma espécie de imitação artificial da periferia das sensações físicas. Ou o ator pode sentir tão intensamente a situação da pessoa num papel, que acaba colocando-se no lugar desta pessoa.

Ensaio

Alguns atores têm o hábito intolerável de ensaiar num tom de voz baixo quando estão dizendo suas falas. Um ator é obrigado a representar plenamente o seu papel. De outra forma o ensaio perde o seu sentido. Se os atores chegarem adequadamente preparados para o ensaio (corpo, voz, intenção) estabelecer-se-á uma esplêndida atmosfera de trabalho. Só os diretores sabem quanto trabalho, inventividade, paciência, desgaste e tempo são necessários para fazer com que esses atores dotados de fraco impulso criaitvo sejam estimulados a ultrapassar os limites de seu ponto morto. Não se pode ensaiar às custas dos outros. Atores não são marionetes.

Ética no teatro

A ética estimula a criação. O ator precisa de ordem, disciplina e um código de ética, não apenas para as circunstâncias gerais do seu trabalho, mas para atingir seus objetivos artísticos. O ator recebe elogios e começa a ter uma ânsia incontrolável de ter sua vaidade pessoal constantemente estimulada. Só uma pessoa medíocre se fascina com elogios.

Forças motivadoras interiores

O primeiro e mais importante mestre é o sentimento. Que, infelizmente, não é manipulável. O segundo mestre é a mente. E o terceiro é a vontade. Esses três mestres interiores são os motores que nos impelem na nossa vida psíquica na criação de um personagem.

Imaginação

Não podemos atuar diretamente sobre as nossas emoções, mas podemos atuar diretamente sobre as nossas fantasias criadoras; por sua vez, estas estimulam nossa memória ou memória afetiva, evocando, de suas profundezas secretas, fora do alcance da consciência, elementos de emoções já experimentadas, e reagrupando-as de forma a corresponderem às imagens que surgem em nós. Em cena, nenhum passo deve ser dado sem o auxílio de sua imaginação.

Mágico SE

Para envolver-se emocionalmente com o mundo imaginário que o ator cria numa peça, e para deixar-se envolver pela ação em cena, ele deve acreditar no que faz. Ele (ator) deve perguntar-se: "Se tudo isso fosse real, de que forma eu reagiria? O que é que eu faria?" Este Se funciona como uma alavanca que lhe permite alcançar um mundo de criatividade.

Olhos

Quantas vezes nós, atores, estamos em cena e não vemos nada! Um olhar vazio faz com que o espectador não se concentre no palco. Não preciso dizer-lhe que o olho é o espelho da alma. O olhar vazio é o espelho de uma alma vazia. O ator precisa SUNTENTAR o seu olhar.

Pausas nas falas

A pausa psicológica dá vida aos pensamentos. Se a ausência da pausa lógica torna a fala ininteligível, sem a pausa psicológica ela não tem vida.

Senso da verdade

O senso da verdade é o melhor estímulo para a emoção, imaginação e a criatividade. Em cena, a realidade não existe. A arte é produto da imaginação, o mesmo ocorrendo com a obra de um dramaturgo. O objetivo do ator deve ser o de transformar a peça numa realidade teatral. Na vida imaginária de um ator tudo deve ser real.

Subtexto

No momento em que as pessoas, músicos ou atores, colocam sua própria vida no subtexto de qualquer material escrito a ser apresentado diante de um público, libertam-se as fontes espirituais e a essênia interior. A linha de um papel é tirada do subtexto, e não do texto em si. Para o ator as palavras não são meros sons, mas sim desenhos de imagens visuais. O trabalho é comunicar aos outros o que vocês vêem na tela de sua visão interior. As palavras são parte da corporificação externa da essência interior de um papel. Cabe a vocês transformar essas imagens em realidade.

Talento

A técnica existe, sobretudo, para aqueles que possuem talento e inspiração. Quanto mais talentoso for o ator, mais ele se preocupará com a sua técnica. Em nossa arte é muito perigoso amadurecer rápido demais, sem esforços decididos.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

5º Prêmio APTR de Teatro:
Uma noite inesquecível!

Lionel Fischer


          Acossado por um dilúvio de proporções bíblicas, o Teatro Carlos Gomes abrigou, ontem, a cerimônia de premiação da 5ª edição do  Prêmio APTR de Teatro, que homenageou Bibi Ferreira. Tendo como apresentadores Cissa Guimarães e Fernando Eiras, acompanhados pelo pianista João Carlos Assis Brasil, a festa dirigida por João Fonseca ganhou contornos emocionantes quando Fernanda Montenegro subiu ao palco para falar sobre Bibi Ferreira.

          Inicialmente, a grande dama do teatro brasileiro leu um resumo dos  principais êxitos artísticos de Bibi, aqui e no exterior. Finda a leitura, deu um depoimento pessoal sobre a extraordinária artista, durante o qual se emocionou a ponto de ficar com os olhos marejados de lágrimas, o mesmo ocorrendo com todos que ali estavam. E dentre as muitas revelações que fez, uma delas encheu de assombro o teatro: Bibi Ferreira estreou nos palcos quando tinha, exatamente, 24 dias de vida!!! - um contra-regra não conseguia achar uma boneca e a mãe de Bibi resolveu antecipar a estréia da filha como atriz.

          Num dado momento, já perto do final da cerimônia, eis que surge Bibi Ferreira, que completa 90 anos em junho. E aí o teatro, literalmente, "veio abaixo!". Exibindo toda a sua inteligência, humor e carisma, Bibi conversou com a platéia durante alguns minutos e depois cantou "Gota d'água", composição de Chico Buarque e Paulo Pontes, título do musical homônimo protagonizado pela atriz. E o fez com tamanha perfeição técnica e inenarrável capacidade de entrega que, concluída a canção, todos os espectadores se ergueram, a maioria aos prantos, e brindaram a grande atriz com uma ovação que parecia não ter fim.

         Em resumo: os sempre caprichosos deuses do teatro facultaram a cerca de 800 pessoas o supremo privilégio de ver em cena duas das maiores artistas que este país possui, o que certamente conferiu à festa um brilho extraordinário, que jamais será esquecido. 

         Tendo como jurados Barbara Heliodora, Carlos Henrique Braz, Daniel Schenker, Daniele Ávila, Macksen Luis, Mauro Ferreira, Norma Thiré, Tânia Brandão e eu, a 5ª edição do Prêmio APTR de Teatro contemplou os seguintes profissionais:

Categoria ESPECIAL - Cia. Pequod, pelo trabalho desenvolvido para a realização do espetáculo "Marina".

ILUMINAÇÃO - Renato Machado ("Marina"/ "Senhora dos afogados"/ "Hamelin"/ "Deus da carnificina")

FIGURINO - Marcelo Pies ("Hair")

CENOGRAFIA - Daniela Thomas ("Pterodátilos")

DIREÇÃO - André Paes Leme ("Hamelin")
  
AUTOR - Rodrigo Nogueira ("Ponto de fuga")

ATOR COADJUVANTE - André Dias ("Era no tempo do rei")

ATRIZ COADJUVANTE - Dani Barros ("Maria do Caritó"/ "As conchambranças de Quaderna")

ATOR PROTAGONISTA - Marco Nanini ("Pterodátilos")

ATRIZ PROTAGONISTA - Julia Lemmertz ("Deus da carnificina")

ESPETÁCULO - "Pterodátilos" (direção de Felipe Hirsh)

PRODUÇÃO - Fernando Libonati e Pequena Central ("Pterodátilos) - esta premiação é resultante dos votos de todos os membros da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro).

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segunda-feira, 25 de abril de 2011

O caso do espelho e
O caso do sapato

Domingos Oliveira


          Conta a lenda que uma grande atriz brasileira representava um vaudeville no qual, em certa cena, se olhava num espelho de mão. Durante os ensaios essa atriz recobriu o espelho com um pedaço de jornal, recortado em forma oval. Na estréia, o contra-regra retirou o jornal. Qual não foi sua surpresa quando, entre um ato e outro, foi eloqüentemente repreendido pela grande atriz: "Meu filho, pelo amor de Deus, assim você me estraga a representação! Eu estou em cena, olho o espelho e, de repente, vejo minha cara? Não posso, eu não estou com a minha cara no personagem! Assim você me atrapalha..."

           Conta a lenda que um grande ator russo (Tchecov) ensaiava uma peça de seu irmão dramaturgo, Anton Tchecov, na qual fazia o papel de um aristocrata decadente. Apesar de sua grande categoria profissional, o ator estava sofrendo muito, não conseguia resolver o personagem: "Não consigo. Se trabalho seriamente sobre o aristocrata, pouco a pouco perco a decadência. Se trabalho sobre a decadência, vou imperceptivelmente perdendo a aristocracia! Estou desesperado, num beco sem saída".

          Foi quando surgiu Stanislavski para fazer-lhe uma visita. Numa conversa de camarim, o grande ator confessou sua angústia ao grande diretor. Stanislavski, numa tirada digna de Sherlock Holmes, retrucou: "É simples a solução. Faça um buraco na sola do sapato".

          E assim fez o ator, com o auxílio de um canivete. Um buraco na sola do sapato direito! Um buraco que ninguém percebia, nem o colega, nem os espectadores. Mas que ele sabia que tinha! Um buraco no sapato que não lhe permitia cruzar as pernas com a mesma impunidade. Um homem não anda da mesma maneira quando sabe que tem um buraco no sapato...Não fala, não pensa do mesmo jeito, pois sabe que, embora ninguém o perceba, seu sapato está furado! E assim ficou resolvida a interpretação. Através de um buraco na sola do sapato.
          
          Um grande amor não pode sobreviver sem que haja segredos entre os amantes, assim como os há entre o céu e a terra. Do mesmo modo, deve haver segredos entre o personagem e a pessoa do ator que o concretiza.
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Extraído de Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro (Coleção "Documentos". MINC/INACEN)
SITE DRAMA DIÁRIO REESTREIA DIA 02 DE MAIO E TRARÁ SETE HISTÓRIAS INÉDITAS, UM CAPÍTULO POR DIA.





O site Drama Diário está entrando no seu quarto ano de existência com uma nova proposta: Dramaturgia em série. Cada um dos sete autores irá atualizar o site com textos inéditos diariamente, mas aos invés de cenas curtas, com temas pré-definidos, os autores se lançam ao desafio da continuidade. Um capítulo por semana, sete histórias diferentes, podendo resultar num roteiro de cinema, uma novela, um seriado, ou até mesmo numa peça de teatro.


O que é o Drama Diário?


Sete dramaturgos com forte atuação na cena contemporânea carioca se reúnem com o objetivo de desenvolver um site para exercitar diariamente a escrita e disponibilizar textos para amantes de dramaturgia ou para o simples entretenimento dos internautas.


O resultado deste encontro é o Drama Diário (www.dramadiario.com), lançado em maio de 2008 no Ciclo de Leituras da Casa da Gávea/RJ e que desde então tem recebido grande destaque da imprensa e reconhecimento da classe artística, hoje contando com mais de 500 cenas publicadas e tornando-se o maior acervo dramatúrgico inédito da web.


Formado por Camilo Pellegrini, Carla Faour, Felipe Barenco, Henrique Tavares, Leandro Muniz, Renata Mizrahi e Rodrigo de Roure – sete autores atuantes da nova geração, todos com já alguma obra realizada.


Cada autor escreve em um dia da semana:


SEGUNDA-FEIRA - Renata Mizrahi é roteirista e dramaturga, ganhou o Prêmio Zilka Salaberry 2010, na categoria melhor texto com Joaquim e as Estrelas. Atualmente trabalha como roteirista na Conspiração Filmes. Integrante da Companhia Teatro de Nós.

TERÇA-FEIRA - Camilo Pellegrini é autor da “Trilogia das Assassinas”, do espetáculo “Brecht Morreu” e hoje trabalha como colaborador em sua quarta novela da Rede Record, “Vidas em Jogo”.

QUARTA-FEIRA - Leandro Muniz é roteirista das series Amor & sexo e Junto & Misturado, na Rede Globo, e também colabora com os roteiros de duas séries do canal Multishow, "Morando Sozinho" e "Na fama e na lama". Escreveu e dirigiu o espetáculo Relações - peça quase romântica, obtendo 4 prêmios no XVI Festival de Teatro do Rio 2009, inclusive o de melhor texto.


QUINTA-FEIRA - Carla Faour, Indicada como melhor autora aos principais Prêmios do Teatro Carioca: Shell, APTR e Contigo de Teatro por A Arte de Escutar. É também autora do romance A Arte de Escutar, baseado em seu texto teatral. Atualmente está em turnê com seu último espetáculo Açaí e Dedos.


SEXTA-FEIRA - Rodrigo de Roure é autor - dentre outros textos - de “Senhora Coisa” e “Os Últimos dias de Gilda”, ambas as peças traduzidas para o francês e lançadas na coleção Palco Sur Scène pela Impressa Oficial no Brasil e na França. “Os Últimos Dias de Gilda” teve montagem em Londres (2009) e participará do Festival de Edimburgo (Escócia) neste ano de 2011. “Os Últimos Dias de Gilda” estreia em Paris no ano de 2012. “Gilda” está em fase de captação e produção pela Saraguina filmes com estreia no cinema em 2013. Rodrigo de Roure assina o roteiro do programa “Penetra!” no canal Sexy Hot / Playboy TV desde 2010.


SÁBADO - Henrique Tavares é autor e diretor dos espetáculos Epheitos Kolaterais, Cidade Vampira e Barbara Não Lhe Adora; e roteirista da série Vampiro Carioca do Canal Brasil.


DOMINGO - Felipe Barenco é o criador da personagem @donaheliodora no twitter e por duas vezes foi contemplado com o patrocínio dos Correios pelos espetáculos "Meu caro amigo" e "Chuva de arroz".


A união desses autores faz do Drama Diário um projeto de referência tanto no teatro quanto na internet. O projeto, hoje, tornou-se um valioso banco de textos para estudantes e professores de teatro em todo o Brasil.


Criado por Felipe Barenco e idealizado para difundir a criação dramatúrgica brasileira, o site surge como uma ferramenta que produz conteúdo e discussão sobre dramaturgia, é um valioso e instigante meio de experimentação e, aproveitando-se da internet como meio de produção. Drama Diário é um projeto pioneiro e que põe em discussão as possibilidades de se pensar uma “dramaturgia para a internet”.


CONTATOS

Camilo Pellegrini --- 21-9999-8518 --- camilopellegrini@gmail.com

Carla Faour --- 21-97038011 --- carla.faour@gmail.com

Felipe Barenco --- 21-8229-6562 --- felipebarenco@uol.com.br

Henrique Tavares --- 21-9213-8495 --- henrique@dramadiario.com

Leandro Muniz --- 21-9564-1138 --- leandromuniz@globo.com


Renata Mizrahi --- 21-8201-2087 --- renata.mizrahi@gmail.com


Rodrigo de Roure --- 21-8620-2585 --- rodrigoderoure@gmail.com







quinta-feira, 21 de abril de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Os 39 degraus"

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Humor, fantasia e cumplicidade


Lionel Fischer


Após cumprir excelente temporada em São Paulo, chega ao Rio um espetáculo delicioso, baseado no filme homônimo de Alfred Hichcock. E a delícia em questão fica por conta, dentre outros fatores, da capacidade do autor Patrick Barlow de parodiar a obra do genial cineasta sem, em momento algum, desrespeitá-la. Em cartaz no Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra), "Os 39 degraus" tem direção assinada por Alexandre Reinecke e elenco formado por Dan Stulbach, Fabiana Gugli, Danton Mello e Henrique Stroeter. 

Como se trata de uma obra baseada em filme muito conhecido, não julgo necessário reproduzir seu enredo. Mas ainda que se tratasse de um filme pouco visto, detalhar a trama privaria o espectador de uma série de surpresas hilariantes e desvairadas, o que terminaria por minimizar o efeito dos acontecimentos que povoam este verdadeiro "trem fantasma" impregnado de humor e fantasia. 

Como todos sabemos, produzir humor não é tarefa nada fácil e, menos ainda, quando a direção investe corajosamente numa linguagem que despreza por completo o realismo e expõe, de forma absolutamente explícita, o lúdico inerente ao jogo teatral, ao invés de ocultá-lo.

Isto certamente coloca o espectador em um outro lugar, diria mesmo que o transforma numa espécie de cúmplice, não estando afastada a hipótese de que muitos devem ter desejado estar em cena e assim exercitar a criança que existe em todos nós, mas em geral tão esquecida.

Valendo-se de marcações engraçadíssimas, conferindo a objetos inusitadas funções e trabalhando de forma notável os tempos rítmicos, o diretor Alexandre Reinecke exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações do elenco.

Na pele de Richard, Dan Stulbach confere total veracidade ao sedutor irresistível, o mesmo ocorrendo com Fabiana Gugli nas três personagens que interpreta (a agente secreta Annabela Schimit, a inconstante Pamela e a camponesa Margaret) e com Danton Mello e Henrique Stroeter, que encarnam múltiplos papéis. E aqui me parece de suma importância destacar não apenas a eficiência do elenco no que diz respeito ao texto articulado, mas também a expressividade do trabalho corporal de todos.

Na equipe técnica, todos os profissionais envolvidos nesta deliciosa empreitada teatral realizam trabalhos de altíssimo nível - Cyro Del Nero (direção cenográfica), Cássio Brasil (figurinos), Paulo César Medeiros (iluminação), Daniel Maia (trilha sonora) e Carol Mariottini (direção de movimento). Faço também questão de registrar as impecáveis operações de luz (Lucas Gonçalves) e som (Bruno dos Reis), cuja precisão em muito contribui para o êxito do espetáculo.

OS 39 DEGRAUS - Texto de Patrick Barlow. Direção de Alexandre Reinecke. Com Dan Stulbach, Danton Mello, Fabiana Gugli e Henrique Stroeter. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.              

terça-feira, 19 de abril de 2011

Teatro/CRÍTICA

"A estupidez"

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Hilariantes desvarios no CCBB


Lionel Fischer


Como todos sabemos, a estupidez humana se manifesta de diversas formas e em variados contextos. Aqui, podemos identificá-la na Arte, na Ciência, na Justiça, na forma como lidamos com o dinheiro e também no que concerne às relações familiares. Tendo como cenário diversos hotéis de beira de estrada em Las Vegas, o autor argentino Rafael Spregelburd criou cinco núcleos e 24 personagens (mafiosos, cientistas, atores, policiais, marchands e doentes mentais, dentre outros), cujas histórias se cruzam a todo momento.

Mais recente produção do grupo Os Dezequilibrados, "A estupidez" (Teatro II do CCBB) chega à cena com direção de Ivan Sugahara e elenco formado por Alcemar Vieira, Cristina Flores, José Karini, Letícia Isnard e Saulo Rodrigues.

Como bem define o diretor em texto que consta do programa, a peça "...lembra a obra de Quentin Tarantino e seu 'Pulp Fiction' ou os irmãos Cohen e seu 'Queime depois de ler'. A estetização da vulgaridade das produções B que, em alguma medida, ocorre nesses filmes, é semelhante à que ocorre na peça. Como se o matiz de 'A estupidez' fosse um seriado tosco (e por isso mesmo atraente), tal como os clássicos 'Dallas' ou 'Chips', ou um bom filme fuleiro, desimportante e interessante como as nossas vidas". 

Isto posto, cumpre salientar que o presente texto é bastante engraçado, sempre apoiado em um humor crítico e a vasta galeria de personagens se encaixa perfeitamente na proposta do autor de salientar múltiplos aspectos da estupidez humana. No entanto, acredito que o resultado seria ainda mais contundente se o texto tivesse sido um pouco reduzido, não me parecendo que tenha estofo para sustentar dois atos.

Quanto à direção, Ivan Sugahara impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, para tanto valendo-se de marcas tão imprevistas quanto desvairadas, executadas de forma primorosa por um elenco que mergulha de cabeça neste universo divertido e crítico. E aqui cabe ressaltar a maravilhosa capacidade dos atores de criarem tipos completamente diferentes, a cada um deles impondo diversificadas vozes e hilariantes composições físicas. 

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta curiosa e oportuna empreitada teatral - Rui Cortez (direção de arte e figurino), Cortez e Nello Marrese (cenografia), Ivan Sugahara e Álvaro Lazzarotto (trilha sonora), Lazzarotto (música original) e Paula Maracajá (preparação corporal).

A ESTUPIDEZ - Texto de Rafael Spregelburd. Direção de Ivan Sugahara. Com a grupo Os Dezequilibrados. Teatro II do CCBB. Quinta a domingo, 19h30.     

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Ninguém falou que seria fácil"

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Adorável brincadeira de criança


Lionel Fischer


"Como em uma brincadeira de criança, um jogo de amarelinha fragmentado e mutável, os personagens saltam da infância para as angústias da vida adulta, da velhice para o encontro amoroso, da sala de parto para a morte. Assim que os espectadores se acomodam, uma discussão de casal inicia uma vertiginosa troca de papéis, que irá carregá-los por lugares, épocas e situações diversas. Um homem se torna pai mas não quer deixar o colo da mãe, uma filha argumenta racionalmente sobre as razões para não largar a chupeta, um jovem recém-formado decide hibernar, irmãos disputam comida e carinho em duelos cinematográficos, os filhos crescem e se tornam pais..."

O trecho acima, que consta do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Mônica Riani, sintetiza de forma irrepreensível não apenas algumas das mais significativas passagens do presente espetáculo, mas sobretudo o espírito que o anima: uma brincadeira de criança.

Mas isto não significa, obviamente, que estejamos diante de uma montagem dirigida ao público infantil, e sim de algo que, através do lúdico, nos convida a sermos cúmplices de permanentes construções e desconstruções, inversões de papéis, recriação do real, e assim por diante, exatamente como fazem as crianças.  

Em cartaz no Teatro Municipal Maria Clara Machado, "Ninguém falou que seria fácil" é o segundo espetáculo do grupo Foguetes Maravilha (o anterior foi "Ele precisa começar"). De autoria de Felipe Rocha, a montagem chega à cena com direção de Alex Cassal (co-direção de Rocha) e elenco formado por Felipe Rocha, Renato Linhares e Stella Rabello. 

Como já deve ter ficado implícito, estamos diante da rara oportunidade de rever nossa postura no que concerne ao ato de assistir a um espetáculo. Se nos mantivermos aferrados à crença de que um bom texto deve seguir à risca os cânones que norteiam a dramaturgia tradicional, estaremos perdidos.

Mas se, ao contrário, nos colocarmos disponíveis para apreender o que nos é oferecido muito mais através de sentimentos e sensações do que de procedimentos lógicos e racionais, aí então deixaremos o Planetário convictos de que, a exemplo das crianças, podemos perfeitamente lidar com o real da vida sem que isto implique em renunciar à nossa tão esquecida capacidade de recriá-la por meio da fantasia. 

Isto posto, torna-se evidente que tanto o ótimo texto de Felipe Rocha quanto a direção de Alex Cassal (com a parceria de Felipe) nos propõem uma espécie de co-autoria, nos demandam uma postura muito mais de cúmplices do que de meros espectadores. Ou seja: ou você entra no jogo ou não entra. Ou você é "capturado" ou não é. No meu caso, entrei no jogo e fui totalmente capturado. Daí minha felicidade durante todo espetáculo e após o mesmo ter-se encerrado.

Valendo-se de uma dinâmica cênica em total sintonia com o material dramatúrgico, com permanente alternância de climas e abruptos cortes que surpreendem e encantam em igual medidaCassal e Rocha exibem o mérito suplementar de haverem extraído ótimas atuações do elenco - no caso de Rocha, suponho que deva ter permito ao parceiro de direção um valioso "olhar de fora".

Renato Linhares, Stella Rabello e Felipe Rocha parecem ter nascido com a expressa finalidade de encarnar os muitos personagens de "Ninguém falou que seria fácil" - no caso de Rocha, é até compreensível...Exibindo performances irretocáveis, tanto no que diz respeito ao texto articulado como em relação às diversificadas composições físicas, o trio ainda evidencia maravilhosa contracena e comovente prazer de compartilhar o mesmo palco. Aos três, portanto, só me resta agradecer a noite tão emocionante e divertida que me proporcionaram, e desejar uma longa carreira para esta montagem tão apaixonante.

Na equipe técnica, Alice Ripoli assina uma impecável direção de movimento, sendo de altíssimo nível a expressiva iluminação de Tomás Ribas, a mesma expressividade presente na despojada e inventiva cenografia de Aurora dos Campos, na direção musical de Rodrigo Marçal e nos figurinos de Antônio Medeiros.

NINGUÉM FALOU QUE SERIA FÁCIL - Texto de Felipe Rocha. Direção de Alex Cassal (co-direção de Rocha). Com Felipe Rocha, Renato Linhares e Stella Rabello. Teatro Maria Clara Machado. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A matéria-prima do enredo

Eric Bentley


          A experiência viva de uma peça de teatro, como de uma novela, ou de uma peça musical, é um caudal de sentimentos que flui dentro de nós, ora célere, ora lento, aqui placidamente espraiando-se entre as margens largas, além precipitando-se em torrentes entre as ribas estreitas, agora deslizando por uma vertente, logo atirando-se em vertiginosos rápidos, depois precipitando-se de uma catarata, adiante sustado por uma represa, até desaguar num oceano.

          Com tudo isso, a imediata experiência, a erudição e a crítica e a pedagogia, surpreendentemente, pouco têm a ver. Os especialistas dispõem de teorias a respeito do Hamlet e têm certeza de que são corretas. Mas pergunte-se-lhes por que vão a um show ou ao cinema num sábado à noite e vê-los-emos muito menos seguros de si.

          Ora, deverá parecer um tanto suspeito que se pretenda resolver os problemas mais avançados sem que se tenham solucionado os mais elementares. Mas alguma vez foram solucionados os elementares? As perguntas mais fáceis são as mais difíceis. E só é possível começar a discuti-las tal como se discutem as mais complexas: fragmentando-as em suas parcelas componentes, detendo as mais cruas e tratando de abrir caminho através das menos cruas.

          O que é enredo? O produto acabado que ocorre à mente é, sobretudo, intrincado e sutil. De que matérias-primas se fez o produto? Da vida, poderíamos confiantemente aventar, a vida em sua diversidade e sem exclusão do seu aspecto mais desagradável. Mas não pode haver respostas, mesmo provisórias, enquanto as perguntas forem tão genéricas.

          A análise do material do enredo só poderá começar quando for isolada alguma unidade menor que a "vida", de preferência - uma vez que o nosso tema é o enredo no teatro - uma unidade característica do teatro, em particular. Na busca dessa unidade, aproveito uma sugestão de George Santayana para efeito de que, enquanto o novelista verá os acontecimentos por intermédio da mente de outros homens, o dramaturgo, por seu lado, "consente que vejamos a mente de outros homens, por intermédio de eventos". Se o enredo é um edifício, os tijolos de que está construído são acontecimentos, ocorrências, sucessos, incidentes.

           Os eventos não são dramáticos em si. O drama requer os olhos do espectador. Ver drama nalguma coisa é perceber os elementos de conflito e reagir emocionalmente a esses elementos. Essa reação emocional consiste em ficar impressionado, ser atingido de espanto, na presença do conflito. O próprio conflito também não é intrinsicamente dramático. Se todos perecermos numa guerra nuclear, continuará havendo conflito - nos domínios da Física e da Química. Não se trata de um drama e apenas de um processo. Se o drama é uma coisa que se vê, tem de haver alguém para ver. A arte dramática é humana.

          Até que ponto a nossa vida é dramática? Existe, por certo, a opinião de que os elementos dramáticos são raros, e de que a experiência cotidiana é cacete, sem conflitos. Que as coisas passam e repassam num vaivém infindável poder-se-ia dizer, e tem-se dito, da vida em geral. Tem-se dito também de certas épocas e lugares.

          Mas se o drama é uma questão não só de acontecimentos, propriamente ditos, mas também das nossas reações emocionais, então a pergunta "até que ponto a nossa vida é draqmática?" é, em parte, uma questão subjetiva. O que uma pessoa sente como coisa aborrecida, outra acha emocionante. Mesmo um homem que considere a vida, em geral, não-dramática, notará exceções.

          Freud escreveu um livro revelador, Psicopatologia da Vida Cotidiana, em que mostrou que as atividades verbais sem conteúdo aparente encerram, na realidade, um tesouro de significações. Não poderíamos falar, numa acepção semelhante, do drama da vida cotidiana, mesmo onde o drama pareça faltar completamente?

          A idéia convencional é que a vida só é dramática depois de um jornalista ou um dramaturgo "dramatizarem" os assuntos. Sem mencionar aquilo com que os jornalistas e dramaturgos principalmente contam: o nosso insaciável apetite de drama. Consideremos a atividade conhecida como ócio. Pensemos que o cansaço é tanto que nem dá para devaneios. Cochilamos em nossa cadeira. Talvez nos sintamos relativamente serenos em nosso cochilo. Mas tão logo  adormecemos, como se diz, "o diabo fica à solta". Lutas gigantescas, perseguições terríveis, frustrações angustiosas, desencadeiam-se no íntimo dos nossos sonhos.

          Se, ao menos, cessassem quando despertamos! Mas a disposição gerada durante o sonho persiste, como é natural, se considerarmos que consubstancia as nossas principais inquietações. Descarregamnos em nossa esposa. Uma peça de Strindberg! A nossa irritação tem as mesmas dimensões do nosso pesadelo. O telefone soa. Um pequeno problema surgiu no escritório. Mas, nesse momento, o pequeno já é enorme. O problema do escritório adquire proporções de um bombardeio aéreo. Suspendemos o fone coléricos. Um drama social!

           Por um lado, os grandes dramas dos Linberghs e dos Hitlers; por outro lado, os pequenos dramas de cada um de nós, de cada dia. Mas esses pequenos dramas, para a imaginação, são grandes e estão moldados à semelhança, precisamente, dos grandes dramas descritos nos jornais. Assim é que as peças, em geral, são a respeito de grandes pessoas, embora o que elas dizem se aplique às pequenas.

          E há o inverso dessa proposição: quando um grande dramaturgo, como Tchecov, apresenta a mesquinhez da vida cotidiana, consegue sugerir - como realmente deve - a grandeza da vida de todos os dias, as dimensões daquelas fantasias que vão desde a vida secreta de Walter Mitty até os devaneios heróicos de Don Quixote.

          Virginia Woolf referiu-se certa vez à novelística como um prolongamento do âmbito de nossa bisbilhotice. O drama, sendo em geral um fenômeno mais violento, poderia ser considerado uma ampliação do âmbito do escândalo. Ambos os gêneros testemunham o amor humano à informação que diga respeito a outros seres humanos, particularmente àquele tipo de informação que, normalmente, é retido ou negado; e o dramaturgo é, nisso como em muitas outras coisas, um extremista, um homem que, noutras circunstâncias, poderia ter sido um bisbilhoteiro ou um espião da polícia.

          Se isso não for aceito como coisa certa logo de início, apenas servirá para sentirmo-nos frustrados mais tarde, como acredito que alguns em tudo o mais excelentes críticos se sentiram - Edwin Muir, por exemplo, que escreveu em seu livro sobre novelística:

          "Um deleite irresponsável nos acontecimentos vigorosos é o que nos encanta na novela de ação. Por que uma simples descrição de ações violentas nos agrada é uma questão para os psicólogos".

          O segundo período transcrito fornece, incidentalmente, uma pequena prova de que o homem literário talvez deseje evitar os fatos mais elementares da experiência literária, porquanto Muir não poderia querer dizer que é difícil encontrar o motivo para a atração exercida pelas ações violentas. Por que nos agrada mesmo uma péssima descrição de ações violentas? E como poderia deixar de agradar?

          Inclinamo-nos a sentir que a nossa vida carece de violência e gostamos de ver aquilo que nos falta. Tendemos para uma existência enfadonha, e gostamos de ser colhidos na excitação de outrem. Somos agressivos, e gostamos de presenciar a agressão. (Se não sabemos que somos agressivos, ainda mais prazer nos dá presenciar a agressão). Nunca nos vimos em tão grandes apuros, e gostamos que os outros estejam passando ainda pior.

           Esta é, portanto, a resposta a Muir: a violência interessa-nos porque somos violentos. E o exteriormente mais gentil e tranqüilo pode ser, interiormente, o mais turbulento. Essa possibilidade tem sido, de fato, acentuada a tal ponto que, hoje em dia, já suspeitamos de que todo Milquetoast é um Torquemada reprimido, de que todo Jekyll é uma simples máscara para Hyde. Mas a violência não está limitada às pessoas de comportamento não-violento. Está presente em todos nós, excetuando-se, de um lado, as pessoas exepcionalmente debilitadas e, de outro, certas espécies de santos.

          E, embora a debilidade possa ser congênita, a santidade não-violenta não o é. A violência foi expurgada no santo por meio de um incessante, um infatigável labor moral. Ora, aos santos não faz falta o dramatismo; e os pobres de corpo e espírito não podem alcançá-lo. E tenho por vezes cogitado se não faria melhor sentido ensinar aos dramaturgos incipientes, em vez da habitual Técnica Dramática, duas regras fundamentais da natureza humana: se quereis atrair as atenções da audiência, sêde violentos; se quereis mantê-la, sêde novamente violentos. É verdade que as más peças se baseiam em tais princípios, mas não é verdade que as boas peças sejam escritas desafiando-os.
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Extraído - e um pouco reduzido - de A experiência viva do teatro
(Zahar Editores/1967. Tradução de Álvaro Cabral)
         

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Maria Clara Machado


Esta noite sonhei com Maria Clara Machado. E sempre que isso acontece, é um sonho povoado de risos - para os que não tiveram o  privilégio de conviver com a fundadora do Tablado, devo informar que ela era a maior palhaça que já vi. Seja como for, o fato é que me deu uma saudade enorme, indescritível, quase física dessa mulher extraordinária e artista absolutamente genial. Então, partilho agora com vocês alguns fragmentos do livro O Teatro e Eu, por ela escrito e lançado em 1991 pela Editora Agir. (LF)

*     *     *

Mãe - minha mãe era bonita e apaixonada por meu pai. Os dois às vezes conversavam na mesa em francês. Ou estavam falando mal dos criados ou contando algum fato proibido às crianças. Até hoje a palavra amant me lembra algum caso na época terrivelmente escandaloso de alguém que tinha um amante.

Perda - minha mãe tinha 28 anos quando esperou o sexto filho. Nasceu um menino, mas ambos morreram. Isto foi em 1930. Eu tinha nove anos. Era estranho ser tão abraçada e beijada sem saber por quê. Ou melhor, eu sabia, mas tinha que guardar para mim. Para não quebrar a regra do silêncio sobre o desaparecimento de minha  mãe, me tranquei no banheiro e durante muito tempo chorei sozinha por alguma coisa que não devia saber - para me pouparem do sofrimento, suponho. Até luto nós botamos - mas não se tocava no assunto. Estranha psicologia! Precisei de 20 anos de análise para me livrar do fantasma da perda.

Sexo -  o despertar do sexo foi cheio de medos e romantismo. Enquanto as colegas faziam coleção dos retratos de ídolos da época, eu me apaixonava por todos os homens bonitos que via. No cinema, nas praias, nas revistas. Mas sempre de longe, sofrido, romântico.

Religião - a religião me fazia imaginar as ações mais incríveis. Além de colocar milho no sapato, para sofrer um pouco por amor a Jesus, eu queria ser missionária; mas uma missionária diferente. Ia tomar um avião cheio de bíblias e despejá-las na selva para os índios se converterem.

Filhos - até bem tarde eu não sabia como se faziam filhos. Achava que um beijo de amor era o bastante. Um dia vi minha irmã ser beijada e fiquei aflitíssima. Achei que ela estava grávida.

Bandeirante - a convivência com o bandeirantismo me deu um grande espírito de grupo, de camaradagem, de simplicidade, de valorização da coragem e espírito de aventura. Se naquela época as aventuras eram reais, físicas, como subir em mastros de navios de mais de 30 metros, ou viajar de caminhão até o Paraguai, ou tomar banho em rios barrentos por este Brasil afora, revivendo minha infância na fazenda, aquela coragem mais difícil que é a coragem de viver, de enfrentar o cotidiano com todas as angústias próprias da adolescência, foi também fortificada.

Paixão - uma vez em Paris me apaixonei por um estudante de medicina francês. Ele era muito bonito e muito solicitado. Era o diretor de um espetáculo que fizemos na Cité Universitaire, onde morávamos. Quando me convidou para sair tive tanto medo que durante a viagem de táxi que fizemos da Cité até Montmartre ele  tentasse me beijar, que o fiz ele recitar poemas de Verlaine. Aproveitei da vaidade dele para conservá-lo à distância.

Casa - como meu pai era crítico de arte e amigo de pintores e intelectuais, minha casa ficou famosa por receber toda a espécie de gente. De escolas de samba até companhias entrangeiras de balé e teatro, os domingos em minha casa ficaram conhecidos como um centro de encontros entre gente interessante.

Medo - meu pai gostava de conversar. Tinha o dom de suportar papos infindáveis de toda a espécie de gente. Quando perguntavam a ele por que sendo marxista convicto deixava as filhas serem educadas em colégios de freiras, ele respondia que ainda era cedo para as filhas serem comunistas. Mas cá para mim, acho que ele tinha era medo. A moral cristã era mais garantida para conservar suas seis virgenzinhas protegidas.

Educação - havia uma hipocrisia generalizada numa educação vitoriana numa casa onde freqüentavam Pagu e Oswald de Andrade. Onde a conversa era existencialista, surrealista, moderna, livre, mas a vida em família era regida pelos princípios do colégio de freiras. Buscava desesperadamente o equilíbrio porque admirava muito meu pai. Para mim ele era a pessoa mais sábia que eu conhecia. A solução foi me afastar.

Polícia - de 1951 para cá tive o prazer de conviver com diretores que muito me ensinaram. Martim Gonçalves tinha o dom do detalhe. Tudo tinha que ser bem feito, estético. Ele tinha tanto amor ao detalhe que na hora de estrear as peças ficava em pânico. Nada nunca estava pronto para ele. Uma vez íamos estrear Sara e Tobias, de Paul Claudel. Ele fez tudo para adiar a estréia. Fui contra. Na noite do ensaio geral ele me telefonou dizendo que chamaria a polícia para não deixar a peça entrar em cartaz. Então, no mesmo telefonema, eu respondi que aproveitaria a polícia para mandar prendê-lo!

Palhaço - Descobri uma tremenda vocação para liderar, para mandar, organizar, planejar e ser palhaço. Uma noite cheguei mais cedo para o ensaio. Então resolvi me disfarçar de mendiga. Maquiagem, peruca, roupas velhas e um pau na mão, saí para a rua à espera dos atores. Cada um que chegava eu saía correndo atrás e o ameçava com o porrete. Foi uma correria daquelas! Só me identifiquei quando eles já estavam morrendo de medo e a ponto de chamarem a polícia. Estava exausta. A brincadeira durou quase duas horas, mas eu estava feliz.

100 páginas - doutra vez chegou à nossa sala uma moça querendo comprar o livro que escrevi com Marta Rosman, 100 Jogos Dramáticos. Ela me pediu para comprar o livro 50 Jogos Dramáticos.  - 50 Jogos Dramáticos? - perguntei. Ela respondeu que sim. Então parti o livro pela metade e entreguei à moça. Ela certamente me achou maluca, mas o pessoal na sala morreu de rir. Até hoje contam esta história para não parecer que sou séria demais, acho.

Ação - as explicações pseudoprofundas de alguns teóricos do teatro sempre me aborreceram. Quando ensaio uma peça procuro ir diretamente à ação. É através da ação que passamos ou não a emoção. É sentir que nos faz viver.

Vaidade - sempre achei que o ator é meio infantil. A vaidade, que é a característica mais marcante no teatro, é simpática por que pertence a todos nós. O orgulho separa, afasta o homem de seu meio, torna-o solitário. A vaidade os une mesmo que seja para brigar.

Conhecimento - o teatro é o lugar onde mais se tem oportunidade de conhecer o outro. Por trás do faz-de-conta aparecem todas as qualidades e defeitos do homem-ator.

Convite - se a doença e o cansaço nos espreitam a todos e a irmã morte, como diria São Francisco de Assis, está no fim do caminho, a vida ainda nos convida à alegria do convívio com os amigos, à santa preguiça das leituras inconseqüentes a que temos direito, à música dos mestres e por que não à escuta atenta aos problemas e idéias dos jovens que vêm surgindo com soluções para tudo mas com as mesmas ansiedades e dúvidas da Maria Clara de 1950.
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Teatro/CRÍTICA

"Patagônia"

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Lágrimas e risos no Planetário


Lionel Fischer


"Duas prostitutas se encontram no enterro de uma cafetina e vão, pouco a pouco, se conhecendo. Trocam confidências e informações de suas vidas profissionais, falam da infância, suas frustrações, suas dores, seus momentos de prazer e alegria e principalmente de seus sonhos. A cada revelação, a história muda de rumo. A cada instante, uma nova surpresa. O espectador é chamado para cúmplice desse diálogo cômico e acompanha passo a passo a evolução do relacionamento das duas num suspense que cresce na medida em que os pedaços do quebra-cabeça se juntam para compor um quadro de muita ternura e solidariedade".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o enredo de "Patagônia", que marca a estréia de Furio Lonza como dramaturgo - dentre outras atividades, Lonza escreveu romances juvenis ("As mil taturanas douradas"), livros de humor ("O que é isso, maconheiro?") e foi um dos editores da revista Chiclete com Banana, do cartunista Angeli. Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea), a montagem chega à cena com direção de Xando Graça e elenco formado por Joana Lerner e Diana Hime.

Ao deixar o teatro, na noite de ontem, o fiz sem saber ao certo se havia gostado ou não do texto. Mas como nutro particular simpatia pela dúvida, posto que ela me obriga a pensar, resolvi só escrever a crítica hoje, ao contrário do que pretendia. E esse intervalo maior me permitiu enxergar com clareza tanto os muitos méritos da peça como aquilo que nela me incomodou um pouco. Vamos, então, começar pelo "incômodo".

Este não constitui nada muito grave, mas realmente acho que a peça poderia ter menos "surpresas e revelações". Tais predicados, tipicos de um estrutura folhetinesca, aqui me parecem excessivos, pois fica-se com a impressão de que, na ausência das tais surpresas e revelações, o autor não conseguiria sustentar sua narrativa, o que é absolutamente falso em função das qualidades que aponto em seguida. 

Posso estar completamente enganado, mas me parece que Furio Lonza escreveu uma tragicomédia, gênero sujeito a muitos riscos pois está atrelado a uma permanente mescla de humor e dramaticidade. Isto não significa, como já foi dito, que a todo momento tenhamos que nos deparar com surpresas e revelações, mas fundamentalmente com alternâncias de climas emocionais, o que é completamente diferente. 

Afora isso, o autor criou duas personagens interessantes que, através de diálogos bem construídos, abordam temas da maior pertinência, como a solidão, o desamparo, a frustração diante de sonhos irrealizados, o cinismo como recurso para sobreviver a muitas perdas etc. Mas, ao mesmo tempo, também percebemos que a esperança de transcender um presente amargo não desapareceu por completo, o que torna coerente o desfecho da narrativa.

Com relação ao espetáculo, Xando Graça teve o bom senso de perceber que, num texto desta natureza, o que realmente importa é investir no trabalho das intérpretes, deixando de lado inúteis mirabolâncias formais. E, neste sentido, sua direção merece ser considerada excelente, pois todas as marcações visam explicitar, de forma clara e objetiva, os conteúdos em jogo. 

Joana Lerner e Diana Hime são atrizes ainda bem jovens, mas que já revelam uma maturidade artística nada desprezível. Entregando-se por completo às personagens que encarnam e conseguindo estabelecer ótima contracena, Joana e Diana revelam-se intérpretes cujas trajetórias merecem ser acompanhadas com grande interesse. 

No tocante à equipe técnica, Carlos Alcantarino assina uma cenografia simples e funcional, sendo corretas a trilha sonora de Carlos Café e  a iluminação de Paulo César Medeiros, cabendo um destaque especial aos ótimos figurinos, supervisionados por Flávio Souza.

E, finalmente, um registro que não pode passar em branco: a presente produção chegou à cena sem contar com nenhum patrocínio, o que só faz demonstrar, de maneira inequívoca, que doses equivalentes de imaginação e determinação são suficientes para materializar qualquer sonho - o pesadelo consiste no inverso, ou seja, achar que nada pode ser feito na ausência de apoio financeiro de instituições ou de utópicos mecenas.  

PATAGÔNIA - Texto de Furio Lonza. Direção de Xando Graça. Com Joana Lerner e Diana Hime. Teatro Maria Clara Machado. Terças e quartas, 21h.        

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Teatro/CRÍTICA

                                  "Adélia"

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Pureza e sensualidade no Solar


Lionel Fischer


Uma das maiores poetas de língua portuguesa, a mineira Adélia Prado é autora de obra vasta e diversificada, incluindo textos em prosa. E sua maior virtude talvez seja a simplicidade, algo dificílimo de ser conseguido, já que fruto de elaborado processo de depuramento que, sem jamais banalizar imagens e rimas, as tornam sempre acessíveis a todos aqueles (cultos ou não) que possuem uma alma passível de ser impregnada pela beleza.

Mais recente produção da Companhia de Teatro Íntimo, "Adélia" está em cartaz no Espaço II do Solar de Botafogo. Renato Farias assina a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Bellatrix, Fernanda Boechat e Letícia Cannavale.

Como o grupo não me parece ter tido interesse em criar uma história, no sentido tradicional do termo, o que assistimos é uma sucessão de momentos em que as poesias de Adélia Prado são sutil e sensivelmente teatralizadas, o que elimina por completo a perspectiva de um recital - não que seja contra um recital, mas aí não se trataria de teatro. 

Impondo à cena uma dinâmica que mescla o sagrado e o profano, utilizando elementos poderosos como a água e outros mais delicados, como cheiros e sabores, e sempre investindo na possibilidade de que nos imaginemos no "quintal" da casa da poeta, como se dela fôssemos íntimos, o diretor Renato Farias oferece ao público uma excelente oportunidade de entrar em contado com a poesia encantadora desta autora tão singular que é Adélia Prado.

No tocante ao elenco, as três atrizes evidenciam total entendimento do que é dito, afora uma evidente cumplicidade com os pensamentos, idéias e imagens da poeta, apropriando-se de suas falas como se fossem suas. Cabe também registrar a simplicidade das performances, em total sintonia com os conteúdos em jogo. Assim, só me resta parabenizar Bellatrix, Fernanda Boechat e Letícia Cannavale e agradecer a emocionada noite que me proporcionaram - e certamente a todos que compareceram ao Solar de Botafogo neste último sábado.

Na equipe técnica, gostaria de destacar com todo entusiasmo a belíssima ambientação criada pela cenógrafa Melissa Paro, que utiliza não apenas o espaço tradicional do pequeno teatro, mas também o camarim que lhe é anexo, o que só faz reforçar o que já disse: o público se sente na "casa" da poeta, sensação realmente maravilhosa. Outro grande destaque fica por conta da expressiva trilha sonora original de Rafael de Barros Castro, a mesma expressividade presente na iluminação de Paulo César Medeiros, sendo irrepreensíveis os figurinos de Thiago Mendonça, que conseguem ao mesmo tempo traduzir sensualidade e pureza.

ADÉLIA - Texto de Adélia Prado. Direção de Renato Farias. Com Bellatrix, Fernanda Boechat e Letícia Cannavale. Uma produção da Companhia de Teatro Íntimo. Espaço II do Solar de Botafogo. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 30h30.    
Teatro/CRÍTICAS

"A lição" e "A cantora careca"

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Obras-primas em excelentes versões


Lionel Fischer


Embora tenha escrito quatro romances e sete ensaios, o romeno -naturalizado francês - Eugène Ionesco (1912-1994) tornou-se imortal graças à sua atuação como dramaturgo. Considerado um dos principais autores do chamado Teatro do Absurdo, Ionesco escreveu 29 peças, sendo que duas de suas obras mais conhecidas estão reunidas no presente espetáculo: "A lição" e "A cantora careca".

Na primeira, a ação se dá entre uma aluna e seu professor particular, supostamente detentor de todo o conhecimento. Aos poucos, porém, em meio a diálogos absurdos e muito engraçados, fica claro que o que está em jogo é algo muito mais complexo, com especial ênfase nas relações de poder - na casa do dito professor mora uma curiosa governanta, que possui uma percepção da realidade bem mais aguda do que a de seu patrão.

Na segunda, o Sr. e a Sra. Smith trocam banalidades sobre o cotidiano na sala de sua casa, até o momento que surgem o Sr. e a Sra. Martin, convidados para jantar. O quarteto prossegue no mesmo tom, valendo-se de frases desconexas e também muito engraçadas. São eventualmente interrompidos pela Empregada e mais adiante pelo Bombeiro. Aqui fica evidente um dos temas principais da obra do autor: a impossibilidade de uma verdadeira comunicação entre as pessoas.

Em cartaz no Teatro Maison de France, "A lição" e "A cantora careca" chegam à cena com direção de Camilla Amado e Delson Antunes, estando o elenco formado por Renata Paschoal, Nelson Xavier, Cecil Thiré, Thelma Reston, Maria Gladys e Roberto Frota.

Em "A lição", como já foi dito, talvez o principal tema seja a relação de poder que se estabelece aos poucos entre o Professor (Nelson Xavier) e a Aluna (Renata Paschoal), passando a um plano secundário os objetivos dela de obter conhecimentos e o dele de fornecê-los. Do embate entre ambos acaba resultando um final trágico, sabiamente previsto pela Governanta.

Como não objetivaram criar uma dinâmica cênica "moderna" através de inúteis mirabolâncias formais, os diretores investiram no que realmente importa: a relação entre os personagens. E aqui ocorreu algo que não compreendi muito bem: a linha adotada por Nelson Xavier. O ator está muito hesitante no tocante ao texto, a ponto de sugerir sucessivas falhas de memória. Como isto seria inconcebível num intérprete de tal categoria, sou levado a crer que se tratou de uma opção, que a meu ver não funciona. Além disso, Nelson Xavier impõe à maioria de suas falas um ritmo muito lento, e em nenhum momento se torna uma figura ameaçadora, o que torna um tanto implausível o final.

Em contrapartida, Renata Paschoal está divertidíssima na pele da Aluna, exibindo aqui uma das melhores atuações de sua carreira - a atriz trabalha de forma irrepreensível os tempos rítmicos e uma certa "robotização" da personagem, cabendo ainda destacar a propositada monocordia da maior parte de suas falas, quase sempre proferidas num tom alto e sugerindo que as mesmas advém de impulsos não processados pelo consciente. Igualmente notável a breve participação de Cecil Thiré como a Empregada, tanto no que diz respeito à composição física como no que concerne ao texto proferido, impregnado de divertido sotaque.
       
Já em "A cantora careca", também dirigida de forma simples e objetiva - o que confere à peça o absurdo e humor que lhes são inerentes - Nelson Xavier está excelente vivendo o Sr. Martin, numa composição cujo principal mérito consiste na capacidade do ator de jamais alterar o tom de voz, a cadência de suas falas e a expressão de seu rosto, o que produz um resultado tão inusitado quanto divertido. Renata Paschoal intepreta com segurança a Sra. Martin, sendo irrepreensíveis as performances de Cecil Thiré (Sr. Smith) e Thelma Reston (Sra. Smith). Os dois, diga-se de passagem, conseguem estabelecer divertidíssima contracena, sobretudo  através das pausas e dos momentos em que "congelam", como se algo de gravíssimo tivesse sido dito, o que jamais ocorre.

Na pele da Empregada, Maria Gladys exibe todo o seu carisma e talento de comediante, valorizando ao máximo sua breve participação. Finalmente, um destaque todo especial para Roberto Frota encarnando o Bombeiro. Quase sempre mantendo uma postura grave e um tanto alterada, o ator dá um show sobretudo quando conta sua interminável e última piada. Gladys e Frota demonstram, de maneira inequívoca, que é perfeitamente possível extrair o máximo de papéis coadjuvantes, desde que, dentre outros fatores, contem com a preciosa colaboração de uma dupla de diretores como Delson Antunes e Camilla Amado, esta última uma das mais brilhantes, cultas e instigantes atrizes deste país, além de notável professora da complexa arte de interpretar.

Na equipe técnica, Fernando Mello da Costa assina cenografias corretas para os dois espetáculos, a mesma correção presente na iluminação de Paulo César Medeiros. Quanto aos figurinos, Marcelo Marques veste os personagens em total sintonia com o contexto e personalidades retratadas.

A LIÇÃO e A CANTORA CARECA - Textos de Eugène Ionesco. Direção de Delson Antunes e Camilla Amado. Com Nelson Xavier, Cecil Thiré, Thelma Reston, Renata Paschoal, Maria Gladys e Roberto Frota. Teatro Maison de France. Quinta a sábado, 20h. Domingo, 19h.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Variedades da experiência cômica

Eric Bentley


Só uma comédia, e nada mais que uma comédia, é uma comédia.
(HENRY JAMES)


          Os teóricos têm buscado, de todas as formas, uma definição quase-final para a comédia. O procedimento é, ou legislar a priori, "A essência da comédia é A, B, e C", ou, se o método indutivo apresenta associações mais científicas, generalizar a partir de uma escola ou prática particulares - a que o teórico gostar mais - e dizer: "A essência da comédia é D, E e F". Os dois métodos dão uma resposta precisa e este é um motivo suficiente para não adotar nenhuma delas.

          Nem encontraremos uma chave para a arte da comédia na psicologia do riso. Devemos lembrar que o título do livro esplêndido de Henri Bergson é O Riso. Seu assunto principal não é a comédia, mas um subproduto da comédia. Sua primeira função é a análise da natureza humana, não a avaliação de obras de arte. O que significa a comédia como obra de arte?

          Para responder essa pergunta, teríamos que ponderar sobre vários fenômenos que têm sido chamados de comédia, levar em consideração o que eles têm em comum, e, na pior das hipóteses, descobrir por que recebem o mesmo nome. Termos críticos nunca podem significar mais do que aproximações e conveniências. Quando tornam-se campos de batalha, quando alguém deseja saber qual das variedades significa a coisa real, escapamos do discurso racional para a superstição.

          Pensando em um grande número de peças conhecidas como tragédias e comédias, podemos apreciar todo o bom senso de uma das dicotomias de Bergson. O escritor trágico geralmente tem se preocupado com as coisas derradeiras, com a morte, com o significado da vida como um todo, com o "destino" e a "sorte", com o Homem em relação com o universo e com o aspecto da eternidade.

          Com relação a essas preocupações, em qualquer escala, podemos analisar os esforços trágicos de Sófocles, Shakespeare, Strindberg e O'Neill. Por outro lado, a comédia tem se preocupado mais com o social, o histórico, o temportal. Onde o escritor trágico procurou retratar o indivíduo e vê-lo como o Homem universal, o escritor cômico tem tentado reproduzir tipos, grupos e classes, e, portanto, mostrar as diferenças entre os homens.

          Partindo de tais divergências e preocupações, poderíamos elaborar dois esquemas opostos de vida, um, religioso ou quase-religioso, postulando um significado definitivo para a vida, o outro secular e ético, postulando um significado moral imediato para a vida. Podemos dizer que a tragédia começa com a calamidade e termina com a beleza, a reconciliação e a esperança; a comédia começa com o riso e termina em julgamento, reprovação e talvez com amargura...

          Tais elaborações podem ser ilustradas em várias peças importantes; possuem o mérito de clarear um pouco as coisas para nós; mas espero que possamos ver também o perigo de elaborá-las em demasia. Quanto mais adiante formos, tornam-se mais ricas e mais atraentes nossas racionalizações de tragédia e comédia. Mas é isso que pode nos confundir.

          Macbeth sempre foi encarada como uma tragédia. Ela afirma a vida do herói? Termina em reconciliação, beleza e esperança? Obviamente que não. A tragédia é um tópico que tenta o crítico a dizer lindos absurdos. Neste assunto, ainda mais do que em outros, ele tem a tendência de generalizar, ou simplesmente jogar, com cadenzas inteligentes. O problema é que a tragédia tem sido sempre uma coisa diferente para cada praticante maior. E se há alguma coisa mais enganosa do que uma descrição correta do trágico, essa coisa é uma descrição correta do cômico.

          Se procurarmos nos arquivos históricos, encontraremos elementos cômicos em quase toda parte e uma grande aquisição cômica, praticamente em lugar algum. Talvez isso seja ainda mais raro de ser encontrado do que a grande tragédia. Também não é fácil discernir uma coerência ou continuidade como a que encontramos na história da tragédia. Nossa sociedade industrial não parece ser o lar adequado para a musa cômica.

           A verdadeira classe dominante da sociedade, a burguesia, tem sido, por séculos, o alvo da sátira, precisamente porque parece ser insconsciente, desprovida de humor, limitada e aculturada. Os reis riam das tentativas de M. Jourdain em se tornar aristocrata, mas, agora, M. Jourdain encontra-se no trono e não foram necessárias maneiras aristocráticas para mantê-lo lá.

            O Ensaio sobre a Comédia, de George Meredith, por todas as suas frases de efeito, afetação e arbitrariedade, tornou claro, para muitos de nós, a base social da comédia crítica. A comédia de um Molière ou de um Congreve, poderíamos concluir, pressupõe uma minoria compacta de aristocratas governantes que possuem cultura sem ler livros e que são inteligentes sem necessariamente ser especulativos. Formam um grupo para quem a conversação é o meio principal de expressão e cujos valores são, conseqüentemente, os que Samuel Butler teria chamado de laodicianos, isto é, mundanos embora não necessariamente egoístas, despreocupados mas graciosos, negligentes mas razoáveis, satíricos mas não necessariamente sarcásticos...

          Se esta análise social é pelo menos metade verdadeira, não precisamos ir muito longe para procurar uma explicação para o declínio da alta comédia. Um Sheridan ou um Goldoni, nos quais sobreviveu o espírito da comédia clássica do século XVIII, não são característicos de sua época, não apenas por seu gênio, mas por sua adesão à fórmula antiga. E ainda temos Holberg para nos lembrar que essa análise não é totalmente verdadeira e que a tradição de Molière significa tanto Louis XIV e Versailles, como também o toque comum existente na alta comédia.

          Talvez o período mais improdutivo da história da comédia seja a primeira metade do século XIX. Chegamos a desejar que Goethe, um leitor assíduo de Molière, tivesse dirigido sua pena para a comédia. Chegamos quase a pensar que descobrimos o criador da comédia moderna em Alfred de Musset, cujas peças curtas, a princípio tão insignificantes ao lado das monstruosidades "intelectualóides" de Victor Hugo e das também mosntruosidades "simplistas" de Scribe, e tendo posteriormente emergido como o dramaturgo francês mais encantador entre Beaumarchais e Rostand.

           Ou poderíamos redescobrir a genialidade de O Inspetor Geral, de Gogol, no qual Molière parece reviver. Mas nem Musset nem Gogol são dramaturgos suficientemente grandiosos para ficar em nossas mentes como criadores de uma nova comédia. Qualquer renascimento que desejemos dar para a comédia deve ser tratado - juntamente com o "renascimento" geral do drama - quase que no final do século.

          O mestre de uma nova comédia, se tivesse que existir, deveria ser moderno e ao mesmo tempo clássico, deveria realmente encontrar uma posição adequada para a comédia e o comediante no mundo moderno, deveria saber com que termos poderia se dirigir com vantagens à sociedade burguesa, deveria ser mesmo um gênio que pudesse criar uma nova forma e um novo padrão, pelos quais as outras formas seriam julgadas.

          Um homem que atingiu esse objetivo foi Bernard Shaw. Já descrevi seu gênio romântico e sua invenção da comédia naturalista. Podemos ainda examinar algumas de suas peças como obras de arte individuais, isto é, como um todo satisfatório.

          A tese de que Shaw e a alta comédia moderna são uma coisa só, como também o seriam Molière e a alta comédia clássica, não seria absurda. Seria uma tese mais inteligente do que aquelas que encontraram o seu caminho na imprensa. Mas, de qualquer maneira, não seria correta. A comédia da corte poderia, como já nos foi dito, pertencer a um grupo homogêneo, do qual talvez um único gênio pudesse resumir para nós através de sua obra.

          A comédia moderna - se não temos certeza de muita coisa, pelo menos podemos ter desta - não pertence a nenhum grupo homogêneo. O satírico moderno não repousa em nenhuma afirmação geralmente tida como verdadeira. Segura-se em qualquer salva-vidas que surja em seu caminho no oceano tumultuado. Nossa época não produz nenhuma chave de algum reino (exceto nos best-sellers).  Não oferece nenhuma summa de verdades estabelecidas.

          Se uma pessoa afirmar que descobriu o discurso do século XX, podemos saber que se trata de um charlatão e termos até a suspeita de que está sendo muito bem pago para isto. Não "a única verdadeira religião", mas "a variedade das experiências religiosas" é a frase dos tempos. Podemos substituir a palavra religião por qualquer outra, de acordo com o assunto que estiver em discussão. E portanto: a variedade das experiências cômicas.

           Em um capítulo sobre a comédia moderna, deveria ser discutido outros autores além de Shaw e, como este livro até aqui tem apresentado uma abundância de generalizações, podemos discutir trabalhos particulares. Digamos, duas obras de Shaw e duas outras peças. Nos anos atuais, estamos aprendendo a ler os líricos mais cuidadosamente, com maior riqueza e com mais atenção quanto à sua estrutura. Sejamos atores, diretores, freqüentadores de teatro ou estudantes, precisamos também aprender a ler bem as peças.

           As possibilidades são muito ricas. Existem as deliciosas comédias folclóricas de Garcia Lorca e J. M. Synge. Ou podemos saltar para trás, para o início do século XIX, para encontrar o protomoderno German Grabbe, cuja obra sem tradução, Scherz Satire Ironie und tiefere Bedeutun - "Pilhéria, Sátira, Ironia e Profundo Significado" - é uma das jóias da comédia fantástica, um ancestral de Him, a peça tão aplaudida de E. E. Cummings.

           A Comédia do Amor, de Ibsen, necessita apenas de uma boa tradução em versos para se revelar como uma das comédias mais notáveis do século. As comédias de Strindberg necessitam apenas ser retiradas de debaixo das cobertas da ignorância ou da solenidade que, no momento, escondem o autor e a sua obra de nossa vista.

          Semelhantes a Strindberg em sua acidez, estes são os dois maiores talentos cômicos dos últimos cem anos: Carl Sternheim e, antes dele, Henri Becque. O último é conhecido, quanto mais não seja, por sua peça diabolicamente inteligente, ainda que proibitiva, Les Corbeaux, uma fatia de vida à moda naturalista, como nem os porta-vozes do movimento, como Zola, poderiam ter criado.

          No entanto, a obra-prima de Becque é La Parisienne, uma grande comédia que deveria ter dado o coup de grâce à comédia ligeira francesa a respeito de adultério e do tipo de pessoas que apresenta. Infelizmente, as peças não possuem essa influência. Como Shaw, Sternheim tentou colocar a burguesia de volta a seu lugar clássico, de medida da alta comédia. Seu ciclo, intitulado "Da Vida Heróica da Burguesia", é uma obra-prima manqué.

          Mas, diferentemente de Shaw, Sternheim não consegue apresentar um ponto de vantagem para o seu julgamento. É uma sátira brilhante. Mas como não é mais possível rir da burguesia, como nossos dramaturgos da Restauração faziam, ele só consegue encontrar um local para tornar engraçado - a Boêmia, e muito possivelmente da sua costa marítima, ou seja, de nenhum lugar a todos.

            Quando se pensa em todo o talento cômico de nossos palcos modernos, fica-se impressionado com o fato de que quase todos se dedicaram a peças não cômicas, como Juno e o Pavão, de Sean O'Casey. Para mim, neste aspecto Tchecov e Schnitzler são os proeminentes. Tchecov não escreveu nada melhor do que O Jardim das Cerejeiras e Schnitzler, nada melhor do que Intermezzo.

          As duas peças foram descritas por seus autores como comédias, mas em nenhum dos casos aceita-se a descrição a não ser como um comentário irônico sobre a peça. Pode-se dizer que existem elementos cômicos nas duas peças. Pode-se dizer também que podemos, se quisermos, reformular nossas noções de comédia para que sirvam a elas. Mas o que podemos, com certeza, é admitir que ambas pertencem a um gênero intermediário, que ambas são dramas altamente originais. Para se medir como o termo comédia tornou-se confuso, basta examinar o título de uma das obras mais trágicas de Schnitzler: A Comédia da Sedução.

           Se devemos deixar que nossa escolha de peças a serem analisadas seja governada pelo significado individual, pela diferença umas das outras, por sua diferença de Shaw, ou pela possibilidade de serem conhecidas pelo leitor, uma escolha inteligente cairia sobre Oscar Wilde e Luigi Pirandello, dois dos melhores e mais conhecidos comediógrafos modernos, um dos quais fica próximo dos limites superiores da comédia, que é a farsa, e o outro, próximo dos limites inferiores da mesma comédia, que é a tragédia. 
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Trecho extraído de "O dramaturgo como pensador", escrito em 1946 e lançado no Brasil em 1987 (Editora Civilização Brasileira, tradução de Ana Zelma Campos)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Cozinha e dependências"

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Amargo reencontro


Lionel Fischer


Todo reencontro, como sabemos, pode ser maravilhoso ou deplorável, sobretudo quando houve um longo período de afastamento. E por duas razões básicas: se o afastamente se deu de forma civilizada, nossa expectativa é a de que o reencontro tem tudo para ser agradável. Mas se ocorreu o inverso, aí acalentamos a esperança de que o outro possa ter mudado, ou que nós mesmos tenhamos nos modificado, para que então as penosas questões de outrora não venham novamente a aflorar. Seja como for, trata-se de uma situação delicadíssima.

No presente caso, "...cinco amigos se reencontram após uma década. Os anfitriões Martine e Jacques hospedam temporariamente Georges, o amigo intelectual deprimido, e decidem oferecer um jantar a Charlotte e seu marido, um famoso apresentador de TV. Fred, irmão de Martine, e sua noiva Marilyn também comparecem. A tensão no ambiente começa com o atraso de duas horas do principal casal convidado e se estende durante o jantar, o que leva Georges, que não esconde ressentimentos do passado com Charlotte e o marido, a se comportar de forma arredia e descortês...

O clímax do desconforto acontece quando Fred, jogador e malandro incorrigível, propõe ao convidado ilustre uma partida de pôquer a dinheiro, que se prolonga indefinidamente na sala e faz explodir na cozinha as mágoas acumuladas do passado: Georges e Charlotte discutem o fracasso da relação que tiveram no passado, enquanto Martine e seu marido se desesperam, envergonhados, com a situação embaraçosa em que se meteu o apresentador de TV, presa fácil para o jogo de Fred".

Os dois parágrafos acima foram extraídos do release que me foi enviado, e sintetizam o enredo de "Cozinha e dependências", dos mesmos autores de "Um dia como os outros": Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri. Os dois espetáculos estão sendo exibidos no Teatro Poeira, sob a mesma direção (Bianca Byington e Leonardo Netto) e com o mesmo elenco, exceção feita a Analu Prestes, que só participa de "Um dia como os outros": Bianca Byington (Martine), Márcio Vito (Jacques), Kiko Mascarenhas (Georges), Silvia Buarque (Charlotte) e Leandro Castilho (Fred), cabendo registrar que os personagens Marilyn, o marido de Charlotte e o apresentador de TV não aparecem na cena, sendo apenas mencionados.

Ao contrário da peça já analisada, e ainda que contendo algumas passagens engraçadas, nesta o clima é bem mais dramático, e os desencontros, mágoas e agressividades predominam. Jacques e Martine, por exemplo, formam um casal que, se um dia se amaram, no momento apenas se suportam; ele, sempre irascível, destemperado e rígido; ela, completamente perdida em seu presente, desejando conferir um novo rumo à sua existência, mas sem a indispensável determinação para materializá-lo.

Georges, o intelectual deprimido, como já foi dito, é um personagem tipicamente francês - posso estar enganado, mas de uma maneira geral os intelectuais franceses, bem sucedidos ou não, nutrem fervorosa paixão pela melancolia, o que equivale a dizer que flertam muito mais com a morte do que com a vida. Quanto a Charlotte, pessimamente casada com um homem poderoso, tenta inutilmente compensar o vazio desta relação mantendo um caso. E no tocante a Fred, este é o único que escapa à tensão generalizada, em função de sua personalidade totalmente irresponsável e inconseqüente.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e levantando pertinentes questões sobre alguns temas já mencionados, "Cozinha e dependências" recebeu segura versão de Bianca Byington e Leonardo Netto. Mas o grande destaque fica por conta da capacidade dos intérpretes de encarnar, de forma irrepreensível, personagens completamente diferentes dos que interpretaram em "Um dia como os outros". Ou seja: só fazem ratificar minha crença absoluta de que nossos atores nada ficam a dever àqueles que, por terem nascido em países do Primeiro Mundo, adquirem uma visibilidade e um prestígio que os nossos também teriam nas mesmas condições.

Na equipe técnica, Emília Duncan criou novos figurinos que, a exemplo dos anteriores, estão em plena consonância com a personalidade e condição social dos personagens. E valendo-se praticamente dos mesmos elementos cenográficos, Marcelo Lipiani e Lidia Kosovski criaram uma ambientação em total sintonia com o contexto. Paulo César Medeiros ilumina a cena com sensibilidade e Leonardo Netto responde por uma trilha sonora eficiente, cabendo também destacar a fluência da tradução de Bianca Byington e Bárbara Duvivier.

COZINHA E DEPENDÊNCIAS - Texto de Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri. Direção de Bianca Byington e Leonardo Netto. Com Bianca Byington, Leandro Castilho, Kiko Mascarenhas, Silvia Buarque e Márcio Vito. Teatro Poeira. Quinta, 21h. Sábado e domingo, 19h30.