quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

                       Agradecimento e Pedido

                                                                                                                                     Lionel Fischer

Gostaria de agradecer aos queridos parceiros deste modesto blog (já somos 200, uma verdadeira confraria!) que colocaram retratinhos ou desenhos nesta página e assim tornaram-se  "seguidores".

Acho este termo engraçado, pois dá a entender que eu saí caminhando e vocês me seguindo, quando na verdade caminhamos juntos.

Espero que juntos permaneçamos, e torço para que mais amigos se juntem a nós.

E que 2011 seja o ano mais feliz de nossas vidas!!!

Beijos,

Eu
                                      Pessoas

                                                                                                              Patricia Carvalho Oliveira


Pessoas são altas, baixas
Pessoas são gordas, magras

Pessoas são pretas, brancas, morenas
Algumas são divididas e outras são plenas

Pessoas são gente por baixo da casca
Pessoas são do universo uma lasca

Pessoas são olhos, narizes e bocas
Pessoas são mundos, pessoas são loucas

Pessoas são ilhas, mistérios
pessoas são labirintos etéreos

Independente da cor, raça, passaporte ou país
Somos todos os mesmos existencialmente
Essencialmente pessoas

Pessoas presentes, pessoas ausentes
Pessoas são árvores, ou são sementes

Pessoas são alma embaixo do corpo
Pessoas sem alma, pessoas sem sopro

Pessoas vivem, pessoas buscas
Algumas brilham e outras se ofuscam

Pessoas são olhos, narizes e bocas
Pessoas são mundos, pessoas são loucas

Pessoas são universos dentro de "eus"
Pessoas são versos que caem de Deus
____________________________________
Extraído do livro "Passaporte 8574"
MULHERES

Entediado, o Senhor vaga pelo universo na esperança de que algo o surpreenda, mesmo sabendo que nada pode surpreendê-lo, já que tudo que existe é obra da sua vontade e segue o inexorável destino que ele próprio traçara. Mas, ainda assim, ele vaga...amaldiçoando sua onipotência e desejando ardentemente o impossível, ou seja, se deparar com algo que, por qualquer razão, pudesse ter escapado ao seu rígido controle.

Sim, Deus vaga desesperado à procura de algo que o negue, de uma centelha de revolta, mesmo que partindo da mais ínfima criatura, do menor dos átomos, da mais insignificante das moléculas! Mas é tudo inútil...

Então, sentindo-se uma espécie de náufrago de si mesmo, Deus se senta – não sei bem aonde, mas isso é um detalhe – e chora de raiva de seu monumental engano: o de imaginar que poderia ser feliz em um universo isento de espantos!

E foi exatamente enquanto carpia como uma lavadeira grega que Deus, subitamente, teve o insite!  Sim, seria preciso inventar uma criatura inteiramente diferente de todas as outras. Uma criatura ao mesmo tempo divertida e trágica, insolente e delicada, frágil e transgressora. Uma criatura que jamais poderia ser plenamente apreendida, já que estaria sempre em permanente processo de mutação.

E foi nesse momento que Deus concebeu e deu forma à sua mais esplêndida criação: a mulher!!!   (LF)
____________________

Para os homens que
amam suas mulheres

Mulher
(Woman)

Mulher
eu posso com dificuldade expressar minhas emoções
confusas em meus atordoamentos. Afinal de contas,
estou eternamente em dívida para com você.

Mulher
eu tentarei expressar os meus sentimentos mais
íntimos e a minha gratidão, por você ter me mostrado
o significado do sucesso.

Mulher
eu sei que você compreende a criança que existe
dentro de mim. Por favor, lembre-se: minha vida está em suas mãos.

Mulher
Segure-me bem junto do seu coração, para que mesmo longe não nos afastemos. Afinal, está escrito nas estrelas...

Mulher
Por favor deixe-me explicar, nunca tive a intenção de lhe causar tristeza ou dor. E então, deixe-me dizer-lhe outra vez, outra vez e outra vez:

Eu te amo, sim, sim
Agora e para sempre.
         (John Lennon)



Cenas de sangue num bar da Av. São João

de Ricardo Hofstetter


Personagens:
                                   Waldemar
                                   Amélia

(Ao fundo ouve-se “Ronda”, de Paulo Vanzolini. Waldemar está sentado numa mesa de bar. À sua frente um copo de chope pela metade. Ele tem um olhar desanimado. Bebe pequenos goles, pensativo)

W – Garçom, mais um chope! A vida é uma merda. O casamento é uma merda. Esse bar é uma merda! Garçom, cadê meu chope? Esse garçom é uma merda. Os filósofos perderam tanto tempo tentando descobrir o sentido da vida. Heidegger, Sartre, Hegel, Kant. Um bando de idiotas. É tudo muito simples: a vida é uma merda. Só isso. Eu vou lançar a filosofia do materialismo fecal: o homem  veio da merda, vive na merda e à merda reverterá. Revertere ad bostum tum. Esse é o verdadeiro sentido da vida. E as mulheres? As mulheres principalmente. São todas umas merdas! Sabe de uma coisa? Dá pra ser feliz com uma mulher, dá sim. Desde que você more no Rio e ela no Acre. Aí dá pra ser feliz. Ô garçom, esse chope vem ou não vem? (Entra Amélia, uma fera)
A – Waldemar, seu cachorro! Só podia estar enchendo a cara no bar.
W – Mas Amélia...
A – Cala a boca, seu canalha. (Examinando as mulheres da platéia) Com qual dessas peruas você está arrumando um cacho?
W – Meu amor, eu só estava aqui...
A – Cala a boca, Waldemar! Eu te conheço, você não pode ver um rabo de saia que já se assanha todo.
W – Amélia, eu só vim tomar um chopinho. Tava muito calor lá em casa...
A – E por que não me chamou?
W – Você não estava em casa!? Eu até te esperei, mas como você demorou eu...
A – Como eu demorei você aproveitou para vir galinhar, não é? Ah, meu Deus, o que é que eu fiz para merecer um homem como esse? Por que eu, meu Deus? Por que eu? Olha aqui, Waldemar, eu sei que você está me traindo. Eu tenho certeza. Mas eu ainda vou te dar um flagra. E nesse dia, nesse dia...(Amélia congela na posição, dedo em riste para Waldemar. Toca “Ronda” de novo, exatamente no trecho que diz “e nesse dia então, vai dar na primeira edição...”. Waldemar se levanta da mesa e fala para a platéia)
W – Amélia dos Santos Pereira, 26 anos, minha esposa. Eu tinha 29 anos quando a gente se conheceu. Eu era o garanhão da rua. Comia todas, me chamavam de Wal, o animal. Tendo um par de coxas e alguma coisa no meio das pernas, eu traçava. Eu era uma lenda viva lá no Méier. Durante um ano, namorei cinco mulheres ao mesmo tempo e ainda arranjava tempo pra comer a mulher do açougueiro, que era a maior vadia lá do bairro. Depois dessa me elegeram o rei do Méier. Mas quando eu conheci a Amélia, tudo perdeu a graça. Amélia era um doce. Meiga, delicada, falava baixinho e sorria pra tudo que eu dizia. Desde a primeira noite que saímos, não quis mais nada com outra. Eu tive a certeza absoluta de que era com essa mulher que eu queria passar o resto dos meus dias. Mal sabia eu...Naquela noite, depois de deixar a Amélia em casa, eu deitei na cama e fiquei imaginando o futuro: eu em casa, tranqüilo, lendo o meu jornal, meus filhos brincando no chão da sala, e a Amélia deitada no meu colo. Meus amigos acharam que estava armando alguma, mas quando eu troquei a despedida de solteiro por um jantar com os pais da Amélia, eles viram que o caso era sério. (Para Amélia) Depois que eu te conheci, Amélia, eu nunca mais quis saber de mulher alguma. Tudo que eu queria era viver feliz com você. Uma vida tranqüila, era só isso que eu queria. (Para a platéia) Mas depois de um ano de casamento parece que a Amélia ficou maluca. Deu pra andar atrás de mim o tempo todo, me acusava de estar transando com as suas amigas, dava incertas no meu escritório. Chegou a dizer que eu estava comendo a mãe dela! E eu já tinha largado aquela vida, era um santo, não comia nem coxinha de galinha no boteco da esquina. Mas ela acreditava? Minha vida virou um inferno e aquela Amélia doce e meiga se transformou nessa onça selvagem. (Waldemar senta na mesa e Amélia descongela)
A – Olha aqui, Waldemar...(Ela puxa de dentro da bolsa um rolo de amassar pastel) Você não mente pra mim que eu te conheço. Eu sei muito bem que você estava galinhando. Quem é a vagabunda? (Ela examina a platéia) Ah, deve ser aquela loura ali. Você é chegado numa loura.
W – Amélia, deixa de bobagem...
A – Bobagem? Você vai ver a bobagem. (Amélia avança para a loura com o rolo na mão, ameaçadora)
W – Amélia! (Quando Amélia chega na loura assume um ar amistoso)
A – Amiga, quer um conselho? Sai dessa que o Waldemar é a maior furada. Ele tem essa pinta toda, faz uma onda, mas na hora do vamo ver não é de nada. É uma merda na cama. É o tempo todo papai-mamãe, papai-mamãe. E isso quando rola!
W – Amélia, não incomoda a moça.
A – Você devia ter visto a última vez. Aquilo já não era nem papai-mamãe, era vovô e vovó. Sabe como é vovô e vovó? A dentadura cai, dá cãibra na hora, tem que parar tudo pra fazer massagem. É uma merda. E depois tu ainda vai ter que passar pomadinha nas costas dele, senão o desgraçado não consegue dormir. Vale a pena não, filha. Waldemar é perda de tempo. Melhor ficar com teu amigo aí, que parece que ainda dá pro gasto.
W – Amélia, quer parar de incomodar a moça? (Amélia avança ameaçadora para Waldemar com o rolo na mão)
A – Eu incomodo quanto eu quiser, tá legal? Incomodo, atrapalho tua azaração, e ainda te racho a cabeça no meio, seu cachorro! (Levanta o rolo para bater em Waldemar, que se encolhe todo e congela) Waldemar Olinto Pereira. Eu tinha 21 anos quando conheci o Waldemar. Ele era o cara mais falado lá da rua, o maior galinha do Méier, não livrava a cara de ninguém. Uma amiga me contou que ele chegou a atacar a mãe dela. Não dispensava ninguém, o safado. E eu, na inocência dos 20 anos, achei que o Waldemar era o homem perfeito pra mim. Uma vez eu fui assistir a uma peça, aliás foi a única vez que eu fui ao teatro na minha vida, era uma peça esquisita, de um tal de Nelson Rodrigues. O cara devia ser meio maluco, só escrevia sacanagem. Mas no meio da peça, eu fui fulminada pela maior certeza da minha vida: pra ser feliz no casamento, a mulher precisa sofrer. Era isso: casar era sofrer, era ser traída, era pegar o marido na cama com sua melhor amiga e ainda tomar umas porradas pra aprender. Só assim uma mulher podia ser feliz. E eu queria ser muito feliz no meu casamento. Por isso escolhi o Waldemar pra marido. O rei do Méier não ia me decepcionar. No altar, logo depois do sim, eu já me imaginava passando pela rua, triste, cabisbaixa, e as amigas comentando: “Coitada...lá vai a Amélia, mulher do Waldemar, aquele safado. Como sofre a pobrezinha. Também, com o marido que tem!? Coitadinha...só Deus sabe o que ela passa  não mão daquele homem.” Ah, aquilo sim é que era felicidade, um verdadeiro casamento feliz, pensei, enquanto a chuva de arroz caía na minha cabeça. Mas depois da lua de mel, o canalha do Waldemar se transformou num santo. Nem olhar pra outra mulher o desgraçado olhava. Fiel até os fundilhos. E olha que eu vigiava. Foi um ano de fidelidade total e um casamento mais modorrento do que programa de Tv aos domingos. Mas isso não vai ficar assim não, Waldemar. De hoje não passa. (Waldemar descongela) Olha aqui, Waldemar: eu te aturei esse tempo todo, fui infeliz que nem uma porca de chiqueiro. Mas agora eu cansei. Ou você me trai ou eu te racho a cabeça.
W – Amélia, você ficou louca?
A – Não, não fiquei louca, eu quero ser traída, corneada, sacaneada. Eu quero ser feliz, Waldemar! Eu quero que todo mundo tenha pena de mim, que lembrem a mulher de verdade que eu fui pra aturar um safado como você. Até nome de mulher de verdade eu já tenho. Só falta tu entrar com a atua parte, Waldemar!
W – Amélia, o que aconteceu com você, meu amor?
A – Não me chama de meu amor. Está vendo aquela loura ali?
W – O que é que tem a loura, Amélia?
A – Tu vai lá azarar aquela loura.
W – Você está brincando...
A – Brincando? Eu te racho a cabeça, Waldemar! Tu está vendo ou não está vendo a loura?
W – Estou vendo, Amélia.
A – Pois tu vai até a mesa dela e vai dizer que ela é a nora que tua mãe pediu a Deus. Que ela é o tijolinho que falta na tua construção, sei lá qual é conversa que você usa. Mas tu vai até lá dizer umas bobagens pra ela. E não me volta aqui sem arrancar pelo menos um amasso dela.
W – Amélia, eu não quero saber de mulher nenhuma. Você me basta, minha flor.
A – Não me chama de flor: tu não é jardineiro!? Anda, Wal, o animal! Não era assim que te chamavam lá no Méier? Vamo que eu quero ver o animal em ação.
W – Amélia, eu que não quero saber de mulher nenhuma...
A – Vai me dizer que a loura não faz teu tipo?
W – Meu tipo é você, Amélia! Será que você ainda não entendeu?
A – Eu te conheço, Waldemar...sendo mulher pra você está bom. Não era assim lá no Méier? Waldemar, o rei do Méier, namorava cinco ao mesmo tempo e ainda comia a mulher do açougueiro, aquele santo homem. Ele é que era feliz. Anda, traste, vai logo.
W – Amélia, vai pra casa. Você está nervosa.
A – Nervosa? (Guarda o rolo e saca um revolver) Você ainda não viu nada. Agora é que eu vou começar a ficar nervosa.Se você não for até aquela loura, eu te mato.
W – Vira esse revolver pra lá, Amélia. Alguém pode se machucar com essa brincadeira.
A – Isso não é brincadeira, Waldemar. Eu nunca falei tão sério na minha vida. (Amélia engatilha o revolver e mira)
W – Amélia, eu não estou te reconhecendo. Calma, calma!
A – A loura, Waldemar, a loura!
W – Tudo bem, tudo bem, eu vou. Mas abaixa essa arma.
A – Eu só vou abaixar essa arma quando você sair agarradinho desse bar com a loura.
W – Está bom, eu estou meio fora de forma, mas eu vou lá. Mas fica calma, Amélia. (Waldemar vai até a loura completamente sem jeito. Amélia abaixa a arma)A moça é nova no bairro? Como é seu nome? (Tempo) Não está dando certo, Amélia. A moça fica o tempo todo rindo da minha cara. (Amélia volta a apontar o revolver) Tudo bem, eu azaro!  (Amélia abaixa o revolver. Waldemar para a loura, nervosíssimo) Sabe que quando eu te vi entrar, eu senti uma coisa estranha? Era como se a gente já se conhecesse há muito tempo.  A gente não se conhece de algum lugar? Já sei, são seus olhos. Eles são igualzinhos aos olhos da minha mãe. É isso. Você gosta do Wando? Eu tenho a coleção completa dos discos do Wando. Você não quer ir lá em casa pra gente ouvir? Não tem perigo, a minha mulher vai junto. (Amélia aponta o revolver de novo, Waldemar se desespera) Pelo amor de Deus, vamos ouvir Wando lá em casa, é um caso de vida ou morte. Por favor! (Amélia vem caminhando lentamente na direção de Waldemar, a arma apontada pra ele) Por favor, diz que está a fim de mim, diz que me acha um tesão, diz qualquer coisa, pelo amor de Deus! A gente sai de mão dada do bar, depois você volta e eu saio correndo! Pode deixar, eu não vou encostar um dedo em você! Pelo amor de Deus!
A – Tu é um merda mesmo, Waldemar. Nem uma loura no bar você consegue ganhar.
W – Calma, Amélia, calma!
A – Canalha! (Amélia atira. Waldemar cai fulminado) Os homens são todos iguais...(Amélia vai saindo ao som de “Ronda” na parte que diz: “E nesse dia então, vai dar na primeira edição, cena de sangue num bar da Av. São João”)

FIM



Balcão

                                                                                                                                             de Lionel Fischer

Personagens
                                      Um homem

Cenário                        Um balcão

                        (O Homem se acha diante de um balcão. Carrega uma pasta e um              guarda-chuva. Dirige-se a alguém que jamais é visto)

Homem - Bom dia. Eu pensei que o senhor não estivesse aqui, hoje. Cheguei mesmo a me assustar. Afinal de contas, eu já me habituei ao senhor. Não saberia lidar com outro funcionário. Eu sou uma pessoa que se habitua e depois sente muito qualquer alteração em seus hábitos. É claro que eu não estou querendo dizer que não poderia ser atendido por outro funcionário, pois isso equivaleria a duvidar da competência dos elementos selecionados para prestar serviço aqui, não é mesmo? Ao contrário. Longe de mim tal idéia. Sei que numa repartição de tal porte só são encaixados os indivíduos de maior inteligência e capacidade de trabalho. E só poderia ser assim mesmo. Imagine o senhor se de repente colocassem junto a si um sujeito que não tivesse a menor...Trouxe! Está tudo aqui! Hoje é o último dia, não é mesmo? Felizmente não falta nada. O senhor quer ver? É claro que o senhor quer ver...que pergunta mais desnecessária...bem...(Abre a pasta e espalha seu conteúdo sobre o balcão) Não, o guarda-chuva não tem relação alguma com os papéis. É que ele prendeu aqui, nesta pequena alça, e parece que se nega a... Carimbo? Que carimbo? Precisa carimbar? Todos? Mas eu não sabia que...17 carimbos? Cada folha leva 17 carimbos? Sei...sei...compreendo...Todos eles? Quer dizer que, sem deixar as dependências deste prédio, eu consigo carimbar todos os meus papéis? Oh, meu Deus, que bom! E como devo proceder? Sei...sei... compreendo...Eu carimbo, volto aqui e entrego ao senhor. Torno a sair, vou a outra repartição, carimbo, volto aqui e entrego ao senhor. Claro, não resta dúvida! Mas será que eu...o senhor me permitiria uma sugestão? Será que eu não poderia carimbar todos os meus papéis e depois voltar aqui e entregá-los todos de uma vez ao senhor? Perdôe...foi apenas uma sugestão...Pela expressão de seu rosto parece até que fui grosseiro consigo. Não era essa absolutamente a minha intenção, longe de mim tal...(Soam nove badaladas. Percebe-se pela expressão do Homem que o funcionário a quem se dirigia se retirou) Meus Deus! Já são nove horas! Quer dizer que só me restam oito horas para carimbar todos os meus papéis!?
(Ele sai. A cada nova entrada surge com um número cada vez maior de folhas grudadas no corpo. E a cada nova entrada o balcão assume posições diferentes.  Por fim,o Homem é engulido pelo balcão)

FIM  
A farsa do mancebo
que casou com a mulher geniosa

                                                                                                              de Alejandro Casona
                                                                                                              tradução de Walmir Ayala


PERSONAGENS

Patrônio
Mancebo
Pai do Mancebo
Moça
Pai da Moça
Mãe da Moça
Músicos e Dançarinos


PRÓLOGO

(Patrônio, diante da cortina, fala com a platéia)

Patrônio – Minhas senhoras, meus senhores, um momento de atenção. Quereis divertir-vos com uma antiga história? Apresento-me: sou Patrônio, criado e conselheiro do muito ilustre Conde Lucanor, o qual costuma consultar-me toda vez que uma dúvida o assalta. A dúvida desta vez é que a um criado prepararam casamento com uma moça muito mais rica do que ele, e de alta linhagem. É um bom negócio, direis. Mas meu amo não se atreve a levá-lo adiante, por um receio que tem. Acontece que a tal moça é a mais violenta e geniosa coisa que há no mundo. De tão mau gênio que certamente não haveria marido que possa com ela. Por isso eu, Patrônio, conselheiro fiel, quero levar à cena hoje, neste palco, esta história, para que sirva de exemplo a vós todos e a meu prezado amo. Esta é, pois, a “História do mancebo que casou com a mulher geniosa” e das artimanhas que usou para dominá-la desde o dia em que se casaram. Escutai a história que está escrita num famoso livro, primeiro dos livros de contos que em terras de Espanha se escreveram. E contribua o prazer e a reflexão que vos cause, para a maior glória de seu autor, o infante Dom João Emanuel, que há 600 anos foi em Castela cortesão discreto, poeta de “cantares” e autor de livros de caçada e de sabedoria. (Patrônio se retira e sobem ao palco o Mancebo e o Pai do Mancebo)

CENA 1

Pai – Aconselho-te, meu filho, que penses melhor antes de bater nesta porta. A tal donzela que pretendes é muito mais rica do que nós e da mais alta linhagem. Não é bom que a mulher supere em dotes e fortuna a seu marido.
Mancebo – Sei disso. Mas pensai também, meu pai, que sois pobre e nada tendes para me dar que me possibilite viver honradamente. Assim sendo, se não colaborais para que este casamento se realize, serei forçado a viver com privações ou ir-me desta terra em busca de melhor sorte.
Pai – Fico espantado de teu intento e ousadia. Sois tão diferentes um do outro. Tu és pobre e ela é rica e tem mais terras do que poderias percorrer a cavalo num dia e andando a trote.
Mancebo – Não deis tanta importância a isto. Se ela tem fortuna eu a aumentarei com meu esforço. Se tem tantas terras que não se pode percorrer num dia andando a trote, andarei a galope.
Pai – Não é só isto. O quanto tens tu de boas maneiras tem essa moça de más e arrevesadas.
Mancebo – Eu vos asseguro, pai, que não há mula falsa onde for bom o cavaleiro. E que saberei manter firme a rédea desde o princípio.
Pai – Olha, rapaz, que seu pai nunca pôde dominá-la. E tem tal gênio que não há homem no mundo, a não ser tu, que queira casar com tal demônio.
Mancebo – Podeis bater na porta, pai. A moça é brava? Seja! Mas com braveza e tudo é de meu gosto. Se o seu pai consentir no casamento eu saberei como se passarão as coisas em minha casa desde o primeiro dia. Batei sem medo.
Pai – Já que insistes. Não digais depois que não te avisei em tempo. Peçamos a mão da moça e queira Deus que não no-la concedam. (Bate com o cajado) Ó de casa! Descerra-se a cortina aparecendo a casa da moça. O pai da pretendida, que está só, levanta-se a ver os vizinhos)

CENA 2

Pai Rico – Olá, senhor vizinho!Bons ventos o trazem! Em que lhe posso ser útil?
Pai Pobre – É um pedido que vos venho fazer para este meu filho...
Pai Rico – Posso saber do que se trata?
Pai Pobre – Amigo e senhor, tendes uma filha única...
Pai Rico – Uma única, é certo, mas que me preocupa como se fossem duzentas.
Pai Pobre – E eu só tenho este filho. Em outros tempos, quando éramos pobres os dois, unimos nossa amizade. Hoje venho pedir-vos, se for de vosso gosto, que unamos também nossos filhos.
Pai Rico – Será que estou ouvindo bem, vizinho? É de casamento que me falais?
Pai Pobre – Já adverti o rapaz de vossa riqueza e da nossa humildade. Mas ele insiste...
Pai Rico (Avançando, cheio de assombro, para o Mancebo) Então este moço quer casar com minha filha?
Mancebo (Humilde)Se for de vosso gosto...
Pai Rico – É inteiramente de meu gosto. Deus te abençoe, meu filho. Que peso me tiras das costas.
Pai Pobre – Então, está concedida a noiva?
Pai Rico – Já está entregue. Mas nunca aconteceu que homem algum quisesse carregar com ela de minha casa. Antes porém, por Deus, eu seria um falso amigo, se não vos avisasse do que pode acarretar essa decisão. Somos amigos e tendes um ótimo filho, seria grande maldade consentir em sua desgraça. Certamente sabeis que minha filha é áspera e geniosa como uma megera, e se o rapaz chegar a casar com ela mais lhe valeria uma boa hora de morte do que tão difícil vida.
Pai Pobre – Tranqüilize-se, senhor. Quanto a isso podeis ficar descansado. O rapaz bem sabe do temperamento da noiva e mesmo assim deseja casar-se. Não foi enganado.
Pai Rico – Então não se fala mais. Se assim é eu a entrego de bom grado, meu filho. E que o céu te auxilie nesta empresa. (Ouve-se de dentro da casa grande ruído de gritos e pratos quebrados) Não se espantem: é a moça que discute amigavelmente com sua mãe. (Chama) Olá, menina! Senhora minha mulher! Vinde aqui! Temos grandes novidades! (Saem mãe e filha, muito furiosas, em grande discussão, disputando um pano que ambas puxam cada uma para si) Mas que é isso, senhora? Filha indomável! Assim apareceis? Não vedes que temos visitas?
Moça (Atrevida, olhando-os de alto a baixo) E que visitas são estas?
Pai Rico – Este rapaz, minha filha, é teu futuro marido.
Moça – Meu marido? Este? (O Mancebo faz uma reverência. A Moça ri às gargalhadas) Não me pudeste encontrar coisa melhor na feira, meu pai?
Mãe – Muito me espantaria, marido, se fizésseis alguma coisa usando a cabeça. Então, com o mais esfarrapado da cidade haveria de se arruinar nossa filha?
Pai Rico – Calai, senhora, e não retruqueis mais. É de minha vontade e está decidido. Amanhã será o casamento.
Mãe – Vossa vontade! E que vontade é a vossa, seu frouxo? Ai, minha filha, minha pobre filha...
Pai Rico (Confidencialmente para o vizinho) – A mãe não é menos tirana, amigo. Mas esta já não há quem me tire de casa. (Fecha a cortina e volta a aparecer Patrônio)

CENA 3

Patrônio – Assim começa a nossa história. Logo veremos como prossegue e termina. Forte é a moça e bem decidido o mancebo. O que resultou desta união logo sabereis. Eu me retiro, que o cortejo está por chegar, e só vim aqui para vos avisar que o casamento se fez e já trazem a noiva à casa de seu marido. (Saúda o cortejo que vem pelo meio da praça e sai. O cortejo desfila diante do público e sobre no palco, tocando gaitas, tambores e pandeiros. Em seguida, o Pai Rico e a Mãe. Atrás os noivos e os pares de moços e moças coroadas de grinaldas em flor. Cantam e dançam “Um romance de bodas”)

Cortejo – Maio em flor vos traz
                gentis atavios
                os alegres campos,
                as fontes e os rios.
                Erguem a cabeça
                salgueiros bravios,
                e as verdes espadas
                de onde apontam lírios (Dançam e repetem cantando a primeira estrofe)

Pai Rico (Chamando a Moça à parte) – Estás casada, minha filha, ouve agora meu conselho: obedece e serve a teu marido, que há mais sossego em obedecer do que em mandar.
Mãe (Tomando a Moça pela mão e levando-a para o outro lado) – Estás casada, minha filha, ouve agora um conselho: não te deixes abrandar nem por bem nem por mal; que ao que lambe as mãos, a este dão pancadas.
Pai Rico – Ei, senhores. Retire-se agora o cortejo. Que fiquem sós os noivos. Até outro dia. (Despedem-se entre risos e abraços e saem todos cantando. O Mancebo descerra a cortina e entra coma noiva em sua casa. Está posta a mesa e sobre ela um candelabro aceso. Ao fundo, por uma janela, vê-se a cabeça de um cavalo ruminando no curral. Enquanto a noiva retira a grinalda e os enfeites, ouve-se cantar o cortejo, distante).   

CENA 4

Mancebo – Digo-te, mulher, que não se cumpre conosco o costume desta terra, de servir a ceia dos noivos sem que lhes falte nada.
Moça – Mas não vês aí tudo?
Mancebo – Não vejo onde está a bacia da água para lavar as mãos.
Moça – Água para lavar as mãos! Essa é boa, marido. Contenta-te em comer e calar, que em tua casa certamente não te davas ao luxo dos lavabos.
Mancebo – Te enganas. Sempre fui pobre, porém limpo. E quero me lavar. (Pausa. Ela não liga importância. Ele dá um soco na mesa, erguendo o tom de voz) Quero me lavar, ouviste? (Olhando em volta de si) Ei, tu, dom cachorro, dá-me água para as mãos! (Outra pausa. Espera) Como! Não ouviste, cão traidor? Eu te ordenei que me trouxesses água para as mãos. Ah, calais? Não me obedeces? Não perdes por esperar. (Sai furioso para trás das cortinas e dá punhaladas no cachorro, que late espantado)
Moça – O que fizeste, marido? Mataste o pobre cão. Olhem que tipo de homem é esse...
Mancebo – Mandei que trouxesse água e não me obedeceu...(Limpa o punhal na toalha da mesa e torna a olhar ao redor de si, contrariado. Dirige-se a um suposto gato, do outro lado da cortina) E tu, dom gato, me traz água para as mãos!
Moça – Falas com o gato, marido?
Mancebo (Sem dar atenção à mulher) – Como? Tu também calas? Traidor! Não viste o que aconteceu ao cão por não me obedecer? Aviso que se insistes em teimar comigo terás o mesmo fim. Dá-me água para as mãos agora mesmo!
Moça – Mas marido, como queres que o pobre gato entenda de bacias d’água?
Mancebo (Impõe silêncio com um gesto, secamente) O quê? Nem te mexes apesar de tudo? Ah, gato traidor...Espera, espera e já verás! (Sai entre as cortinas. Ouve-se um miado estridente. O mancebo volta com um gato espetado na espada. Joga-o ao pé da moça)
Moça – Ai, pobre gatinho! (Ergue o bichano tristemente pelo rabo comprovando que está morto)
Mancebo – E agora tu, dom cavalo. Traz-me água para as mãos! Vamos!
Moça – Isso não! Pensa, marido, que cachorros e gatos há muitos, mas cavalos tens apenas este.
Mancebo – Ora, mulher, pensas que por não ter outro cavalo este vai se livrar de mim se não me atender? Que cuide de não me aborrecer, do contrário terá tão negra morte quanto os outros. (Voltando-se para ela, que retrocede assustada) E não haverá viva alma nesta casa a quem não faça o mesmo. (Para fora) Ei, dom cavalo! Ouviste? Dá-me água para lavar as mãos!
Moça (Perturbada) – Enlouqueceu! (O Mancebo puxa da pistola e dispara em direção ao cavalo. O animal cai pesadamente) Deus nos valha, marido! Mataste o cavalo!
Mancebo – E daí? Pensas que admitirei dar uma ordem em minha casa e não ser obedecido? (Dá um ponta-pé na cadeira. Volta a olhar para os lados com fúria. Fixa o olhar na Moça e se aproxima. Fala calculada e lentamente) Mulher, dá-me água para lavar as mãos.
Moça (Tremendo) – Água? Agora mesmo! Por que não pediste antes, marido? (Corre para dentro e volta com uma pequena bacia d’água e uma toalha) Espera! Não te canses! Eu mesma te lavarei!
Mancebo – Menos mal. Agora serve a ceia.
Moça – Sim, sim...agora mesmo...É só mandar, marido. (Serve, prodigalizando-lhe sorrisos. Fica em pé enquanto ele come)
Mancebo – Ah, como agradeço aos céus por teres obedecido prontamente. Caso contrário, com o tédio que tenho, faria contigo o mesmo que fiz com o cavalo.
Moça – E como não haveria de te obedecer, marido? Sei muito bem que não há qualidade que assente tão bem numa mulher como a de servir e honrar ao senhor de sua casa. Mande-me o quanto quiser. Eu juro...
Mancebo (Interrompendo) – Cala-te! Chega!
Moça – Sim, sim...perdão.
Mancebo – A ceia não esteve satisfatória. Que isso não torne a acontecer.
Moça – Não te preocupes. Amanhã eu mesma a prepararei...
Mancebo – Bem, agora eu vou ao leito. Cuidado, mulher, que nada me perturbe o sono. Com a raiva que tive esta noite nem sei se poderei dormir. Esta cadeira...
Moça – Sim, sim...(Apressa-se em pôr a cadeira no lugar)
Mancebo – Ilumina o caminho!
Moça – Sim, sim... (Acompanha-o com o candelabro, cedendo-lhe a dianteira com uma reverência. Sai o mancebo. Fora recomeça o romance de bodas. A Moça volta e corre até a janela) Loucos! Que fazeis? Psiu...Não perturbeis meu marido senão seremos todos mortos! (Cessa a música. Ela impõe silêncio ao público, na ponta dos pés) Silêncio, silêncio todos, por Deus. Meu amo está dormindo...(Fecha as cortinas levando um dedo ao lábio. Mudança de luz. Sai o pai da moça. Escuta levando a mão à orelha)

CENA 5

(Diante da cortina)

Pai Rico – Não se ouve nada...que se terá passado aqui? (Chama) Meu genro! Ó meu genro! (Sai o Mancebo) Então?
Mancebo – Já está mansa...
Pai Rico – Mansa? Minha filha?
Mancebo – Mansa como uma ovelha.
Pai Rico – Mas isto é maravilhoso! Conta-me como te arranjaste para conseguir tal milagre?
Mancebo – Puxando forte a rédea desde o princípio. Mandei o cão trazer água, como não obedeceu, matei-o a punhaladas diante dela. Fiz o mesmo com o gato e depois com o cavalo. Assim, que quando ordenei-lhe que me trouxesse água, obedeceu voando por medo de sofrer igual castigo. Eu vos garanto que de hoje em diante vossa filha será a mulher mais bem mandada do mundo. E juntos teremos uma vida muito feliz.
Pai Rico – Por todos os diabos, rapaz...Que grande idéia me estás dando...se eu puder fazer o mesmo com a mãe, que também é uma tirana!
Mancebo – Não sei o que dizer, meu sogro. Mas penso que nunca os segundos tempos foram bons...Lembrai-vos daqueles versos de Lucanor: “Se no início não mostras que és capaz, não poderás mostrá-lo nunca mais”. Cuidado, aí vem vossa mulher...
Pai Rico – Por tua alma, rapaz! Deixa comigo esta espada.
Mancebo – Aqui está. Que o céu vos ajude...Adeus, meu sogro. (Sai o mancebo. Descerra-se a cortina outra vez e entra a Mãe)

CENA 6

Mãe – Que fazeis aqui, marido, tão cedo e com uma espada na mão?
Pai – E quem sois para perguntar-me alguma coisa, senhora?
Mãe – Hein? Perguntais quem sou?
Pai – Falai quando fordes mandada e muito cuidado para não me aborrecer. (Ouve-se de dentro o canto de um galo)
Mãe – Com que então essa é a nova fala vossa, hein, marido?
Pai Rico – E antes de replicar mais uma palavra, olhai bem o que vou fazer. Ei, tu, dom galo, traz-me água para lavar as mãos!
Mãe – Mas o que fazeis, dom fulano? É com o galo essa conversa?
Pai Rico – Silêncio! E fique de olho no que se vai passar aqui! (Para o suposto galo) Não ouviste que te pedi água para as mãos? (Pausa) O quê? Não me obedeces? Espera, espera! (Sai furioso)
Mãe – pelo que vejo hoje a festa é completa...(Volta o Pai, trazendo o galo morto pelo pescoço)
Pai Rico – Viste o que aconteceu com este galo por não me obedecer?
Mãe – Vejo muito bem, marido. Porém tarde demais vos lembrastes de tal providência. Isto deveria ter começado há trinta anos. Agora tão bem já nos conhecemos que nada disso me convenceria, ainda que matásseis cem cavalos...(Arrebatando o galo da mão do marido e agredindo-o com ele) Vamos, vamos! Para dentro, toleirão! Já! Não há galo morto que te salve! Vamos, vamos!

F     I     M

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Espaço da cidade e espaço teatral

                                                                                                         
                                                                                                                         Biange Cabral
                       


                                   Esta reflexão se dirige aos diretores e atores voltados a um                                              fazer teatral em espaços urbanos alternativos, especialmente                                         àqueles que criam seus espetáculos em locais representativos                                          da memória histórica de uma comunidade.


Michel de Certeau descreve a cidade como um lugar a ser apropriado pelo uso cotidiano. As pessoas caminhando pelas ruas criam textos e constroem seus próprios significados, e estes subvertem a lógica e a justificativa dos significados oficiais que lhes são atribuídos (1984:117). A cidade, em vez de um lugar, torna-se um espaço, pela prática do caminhar. O espaço é assim por ele definido como “um lugar praticado”. Ao caminhar por certas ruas e usar seus lugares públicos, o homem cria suas próprias histórias e mitos; seus passos tornam-se a fala da língua da cidade.
Neste sentido, o espaço não é um lugar definido ou fixo, mas um não-lugar, que se torna vivo através da re-apropriação dos lugares praticados. As caminhadas e usos cotidianos dos moradores pelos espaços de sua comunidade são a origem de suas histórias, e estas cumprem um papel fundamental na formação da identidade – pessoal e social. Nós contamos a nós mesmos nossas histórias de forma a nos tornarmos conscientes, e é através delas também que se amplia nosso sentido de diferença cultural e do “outro”.
           
Significados
            O trabalho físico e mental de descobrir e criar conexões, ressonâncias e narrativas a partir da justaposição e reordenação do cruzamento espaço – texto – histórias individuais – histórias comunitárias faz emergir significados abertos a múltiplos níveis de interpretação. A textura do espetáculo contém descontinuidades de tempo, lugar, caracterização e narrativa. Este tipo de estrutura pode ser associado à noção de consangüinidade desenvolvida por Eugenio Barba: “Os vários fragmentos, imagens, idéias, vivem no contexto em que os trouxemos à vida, revelam sua própria autonomia, estabelecem novos relacionamentos, e se conectam com base em uma lógica que não obedece à lógica usada quando os imaginamos e buscamos. É como se laços de sangue ocultos ativassem possibilidades distintas daquelas que pensáramos ser úteis e justificadas” (Barba e Savarese, 1991:59).
Assim como o caminhar de um indivíduo é uma experiência que traça seu percurso, o mapa de um teatro em lugares heterogêneos (de origem tradicional ou produzidos pela imaginação), forma um quadro de conhecimento histórico-geográfico-estético. Reflete assim, os lugares que expõem apropriações e reflexões históricas com experiências reais do caminhar cotidiano de seus atores por estes mesmos lugares.
            Cenas e personagens criados em colaboração expandem os limites da subjetividade. Um sujeito coletivo não está ancorado em uma subjetividade individual pré-existente; ao depender das contribuições de muitos sujeitos ele passa a criar um novo referencial e a influenciar o desenvolvimento de ações posteriores deste coletivo.

Dimensões
            Podemos detectar quatro dimensões de travessia nesta forma de teatro em comunidade:

Travessia Histórica – percorrer cenas que ocorrem em períodos históricos distintos e estão ambientados nos espaços em que aconteceram à época, possibilitaria uma viagem ao passado? Ou a re-interpretação de fatos históricos? Ou a celebração de uma história que passa a representar uma memória coletiva? Potencialmente co-existem as três opções devido à densidade de significação no espaço e lugar.

Travessia Espacial – os espaços físicos surgem e se desenvolvem através dos movimentos coletivos daqueles que os habitam. Mudanças em seu uso se dão lentamente de geração em geração. Ao se optar por um espaço para a realização de uma determinada cena se está indicando uma possível re-significação do mesmo.

Travessia Semântica – todos os elementos incluídos no espaço cênico são significantes; estão lá para compor seu significado. Quanto maiores forem os detalhes da situação escolhida como foco para a cena, o número de objetos de cena que identifiquem estes detalhes e sua coerência com as razões e motivações dos personagens, maiores as possibilidades de leitura e densidade de significação.

Travessia Social - cenas e personagens criados em colaboração indicam a dimensão social da significação. Pode-se dizer que fica explicitada a interação insider-outsider; histórias de vida-ficção; espaço-lugar; história-lugar-espaço.
           
            Para que as várias travessias se integrem é necessário a determinação de explicitar tensões, ambigüidades e contradições. Como lembra Philip Taylor: “Inovar em teatro e educação implica enfrentar riscos, assumir diferenças e entrar no reino do desconhecido”. (1996:95)

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Homens e Não

                                                                                                                             de Manuel de Pedrolo
                                                                                                    
                                                                                              tradução e adaptação
                                                                                                                             Lionel Fischer

PERSONAGENS

Fabi
Selena
Feda
Eliana
Bret
Sorne
Não

CENÁRIO

            Duas grades dividem o palco em três celas desiguais, a do centro sensivelmente mais estreita do que as laterais. Em ambos os lados, paredes brancas. Ao fundo, uma cortina escura corre ao longo de todo o cenário. Em cada uma das celas maiores há um banco de madeira, encostado na parede. Um banco menor na cela do centro.

Ato I

            (Em cada cela lateral há um homem e uma mulher ainda jovens. O homem da cela da direita, Fabi, estendido no chão, e a mulher, Selena, agarrada às grades, olham em direção à cela central, onde há outro homem, Não, deitado como se estivesse dormindo. A cela da esquerda é ocupada por Bret e Eliana, que também olham para Não; ele, de pé e ela ajoelhada. Ao fundo da cela da direita, sentado no chão, imóvel e ausente, um rapaz. Uma moça, na mesma posição, ocupa o fundo da cela esquerda)

Bret - Está morto?
Fabi - Não, parece adormecido.
Bret - Nunca tinha dormido até agora.
Eliana - Está tão imóvel...
Fabi - Dorme.
Eliana - Podia-se dizer que não respira.
Selena -  Talvez agonize.
Fabi - Seria uma agonia muito longa.
Bret - Mas um dia ou outro ele há de morrer.
Fabi - Por quê? Não podemos morrer nós, antes?
Eliana - Somos mais jovens.
Fabi - Ele também é jovem. Aliás...nem sabemos ao certo a sua idade.
Bret - Se ele morresse...
Eliana - Seríamos livres!
Fabi - Nunca seremos livres. Existem as grades. (Todos olham as grades. Bret se esforça para alcançar Não) Nunca pudemos tocá-lo...
Bret - Nem nunca nos atrevemos.
Eliana - Às vezes eu penso que se nos atrevêssemos...se pudéssemos tocá-lo...tudo isso aqui se afundaria...
Selena -  São grades sólidas.
Bret - Mais sólido é o nosso temor. (Não muda de posição)
Selena -  Moveu-se.
Fabi - Bem que eu disse que não estava morto.
Bret - Gostaria de ter uma bengala...alguma coisa com que lhe bater...
Fabi - Uma bengala? Quem sabe...(Olha para o banco)
Selena -  O que é que você pretende fazer?
Fabi - Poderíamos lhe bater com um pedaço de madeira.
Selena -  Não, Fabi, não.
Fabi - Por que não? Temos que tentar algo. Faz muito tempo que não temos tentado nada.
Bret - Nunca tentamos nada de verdade.
Fabi - É preciso aproveitar agora que ele está dormindo. Quem sabe quando tornará a adormecer?
Bret - Temos que fazê-lo sim. (Bret e Fabi agarram seus bancos)
Eliana - Eu ajudarei!
Selena -  Vocês estão loucos? Não sabemos o que pode acontecer.
Bret - Contanto que aconteça algo...
Fabi - Por acaso você também não está cansada das grades?
Selena -  Estou, mas...o desconhecido...
Bret - Desconhecido?
Selena -  É... não pensaram que tudo poderia piorar?
Fabi - Não há nada pior do que estar preso.
Selena -  Quem sabe...a morte...ele poderia nos matar.
Bret - Não se o matássemos primeiro.
Selena -  Mas se o ferirmos, somente?
Bret - Ele também não pode nos fazer nada. Precisa de nós para existir. Sem nós não seria nada, não seria ninguém.
Fabi (Arrancando uma das pernas de seu banco) - Quero experimentá-la.
Bret - Espere que eu me arme também. Se você o deixar somente ferido, quero estar preparado para acabar com ele. (Ajudado por Eliana, Bret faz o mesmo com uma das pernas de seu banco. Em seguida, Fabi tenta atingir Não, observado por Bret)
Selena -  Será que você não tem medo, Eliana?
Eliana - Tenho...mais ou menos como você...um medo espantoso. Por isso desejo que o matem. Porque tenho tanto medo...sempre tive...
Bret (Vendo que Fabi não conseguiu o pretendido) - Deixa ver se eu posso. (Tenta a mesma coisa, com idêntico resultado)
Eliana - E se aguardássemos um pouco? Talvez mude de posição.
Bret - Talvez...vamos esperar.
Selena -  Nunca poderemos lhe fazer nada.
Fabi - Por acaso você sabe melhor do que nós?
Selena -  No fundo todos sabemos que não podemos nada contra ele.
Bret - Nós só poderemos saber o que fazer depois de nos medirmos com ele.
Selena -  Nós já nos medimos uma infinidade de vezes.
Fabi - Não é verdade. Falar não é medir-se. Além disso, ele está fora.
Selena -  É essa a sua força.
Bret - Não, não é isso.
Selena -  E o que é, então?
Bret - É forte porque sabe.
Selena -  E o que é que ele sabe?
Fabi - Ignoramos.
Bret - Ele tem o segredo das coisas.
Eliana - E ele nunca nos revelou.
Fabi - Nem o fará.
Bret - Isso equivaleria a nos confiar tudo. E ele não pode confiar sem se trair. Somos seus inimigos.
Fabi - Você quer dizer que ele é nosso inimigo.
Bret - Dá no mesmo.
Eliana - Às vezes me parece que sua atitude em relação a nós é de indiferença...
Fabi - Se fosse assim nós não o olharíamos como inimigo.
Eliana - Mas ele nunca nos provoca se não o provocamos primeiro.
Bret - E por que ele haveria de nos provocar? Ele nos dominou e agora nos matêm presos. Ou pelo menos crê que seja assim...Mas ele não pode nos provocar sem correr o risco de despertar em nós esse instinto que nos leva a lutar contra as grades.
Eliana - Nós possuímos esse instinto. E lutamos, apesar de tudo.
Selena -  E ele nem se dá conta...
Bret - Sempre permitimos que ele se esquecesse. Nunca fomos demasiado insistentes.
Fabi - Na verdade, ele nunca se esqueceu. Sua indiferença é apenas fingida.
Eliana - Mas para ele nós não somos nada.
Fabi - Não, somos tudo.
Eliana - Somos tudo e não somos nada.
Bret - Sim, é isso. Ele precisa da gente, mas nega que isso seja verdade.
Fabi - É porque não confia em nós. (Não se mexe ligeiramente)
Selena -  Tornou a se mexer...
Bret - Mas não o suficiente...continua fora do nosso alcance...
Fabi - Tem estado sempre fora do nosso alcance. Ele...o que pensa...o que quer.
Eliana - Talvez nem sequer nos veja...Eu quero dizer que...talvez não nos veja como nós próprios nos vemos. Ele sabe que há alguém. Alguém necessário. Mas sem se dar conta de como seja exatamente essa pessoa. Para ele, nós não temos personalidade, nomes, somos todos iguais, meras formas...coisas que ele tem diante de si e que o incomodam.
Bret - Para nós ele também não possui um nome.
Eliana - Se chama Não.
Fabi - Nós o chamamos Não. Sempre, todo o mundo o tem chamado Não. Nós herdamos esse nome de nossos pais, mas não temos feito nada para verificá-lo.
Bret - O que importa não é o seu nome, mas ele, sua maneira de ser.
Selena -  Nunca é igual. Sempre é diferente...
Bret - É precisamente idêntico a ele mesmo em todos os momentos.
Eliana - Não possui uma personalidade autêntica. Vai no nosso rastro.
Fabi - A cada instante nos determina.
Bret - Não é o mesmo para cada um de nós.
Fabi - Não é possível...as palavras nos enganam!? No fundo, todos nos referimos à mesma coisa. Não compreendem que forçosamente nós temos que querer dizer o mesmo? Se não fosse assim, ele não existiria!
Bret - Ele é mais vivo exatamente por esse motivo: porque lhe atribuímos todas as qualidades e todos os defeitos. Nós o fizemos.
Fabi - Se fosse assim...nós poderíamos nos desfazer dele...
Bret - Não...agora é tarde demais. Mas é certo que nós o fizemos.
Eliana - Por que haveríamos de criar um carcereiro?
Bret - Talvez naquele momento o necessitávamos.
Fabi - Mas agora já não necessitamos.
Bret - Não...agora já não necessitamos. É um incômodo, um estorvo!
Eliana - Vamos destruí-lo, então!
Fabi - É o que estamos tentando...
Bret - Espera! Talvez...acabo de pensar uma coisa. Talvez não se trate de que as grades foram criadas porque ele existe, mas que a sua existência se deve ao fato de que existem as grades. Quem sabe não poderíamos começar por elas?
Fabi - Não...as coisas são obra de alguém que as quis, que de alguma maneira as determinou. Uma vontade construiu essas grades.
Eliana - Fomos nós mesmos, nossos pais, quando criamos Não.
Fabi - Mas então tem que haver uma maneira de agir.
Eliana - Nossa vontade.
Fabi - Nunca nos serviu de nada. Sempre tivemos vontade.
Eliana - Talvez não a espécie de vontade que nos fazia falta. Talvez uma certa desconfiança em nós mesmos tenha impedido que a nossa vontade se manifestasse livremente.
Fabi - Livremente...E quem pode se manifestar livremente estre grades?
Selena -  Não entendo...não entendo...
Fabi - O que é que você não entende?
Selena -  Tudo...nada...ele, vocês...a mim mesma.
Bret - É possível que não haja o que entender e seja você a que enxerga mais claro...
Fabi - Há sempre coisas a serem entendidas. Por isso estamos aqui. Ainda que seja apenas para tentar. Dispomos de anos para decifrar o enígma. E vamos decifrá-lo.
Bret - Com ou sem ele.
Eliana - Sem ele? Ele nunca nos permitirá chegar até o final. Quando estivermos a ponto de encontrar a solução, ele arranjará um meio de nos confundir.
Bret - Ele não saberá quando estivermos encontrando a solução. Nem saberá que estamos buscando uma solução. Porque podemos buscá-la sem palavras, cada um isolado no seu próprio silêncio. E depois, quando ele dormir...
Selena -  Talvez nunca mais volte a dormir.
Fabi - É verdade...talvez nunca mais durma durante toda a nossa vida...
Bret - Não sabemos. Seja como for, é necessário preparar-se.
Selena - Temos passado a vida nos preparando.
Bret - Agora já não é o mesmo.
Selena -  É o que nos dizemos sempre.
Fabi - Selena tem razão.
Bret - Selena tem sempre razão...porque é a mais medrosa.
Selena -  Eu sou a que guarda a lembrança de tudo que vocês esquecem.
Bret - Não esquecemos nada. Apenas...não há o que recordar.
Selena -  As coisas íntimas. Tudo que passamos e não dissemos. Porque nunca conseguimos nos dizer nada.
Eliana - Não nunca nos proibiu de falar...
Selena -  Mas estava aqui, acordado. E o que é que nos dissemos? Algumas vez dissemos algo que não fosse insignificante?
Bret - É difícil lembrar, Selena...
Selena -  Tudo que tínhamos que fazer cada um de nós o sabe há muito tempo. E do que nos tem servido isso?
Bret - Talvez seja isso que nos tenha conduzido até esse momento.
Selena - Mas esse momento é exatamente igual a qualquer outro. Porque ele acordará...e tudo ficará em ordem outra vez.
Bret (Com a perna do banco) - Se eu pudesse alcançar...
Selena -  Mas não pode. Também isso deve ter algum sentido.
Fabi - Não, não é o caso. Bastaria que tivesse adormecido um pouco mais perto das grades.
Selena -  Mas precisamente não o fez.
Fabi - Devemos, então, renunciar a qualquer  tentativa?
Selena -  Não. Mas vamos “fazer” algo.
Bret - É tudo inútil...mas ele acabará se cansando de dormir desse jeito.
Selena -  Não podemos saber.
Eliana - Você nos desanima.
Selena -  Eu apenas desejo evitar um novo desengano.
Fabi - Não há pior desengano do que viver assim, dia após dia, esperando sempre, sem que nunca aconteça nada...
Eliana - Nossa esperança é cada dia mais remota...eu me lembro que, no início, isso aqui nos parecia um estado provisório...
Fabi - E ainda nos parece. Será que você não percebe que nós nunca conseguimos nos acostumar? Deve ser porque existe a possibiliadde de uma outra coisa. De um futuro sem temor e sem grades. Um futuro sem Não!
Selena -  Não...tem sido desde sempre.
Bret - O passado não garante o futuro. Tudo muda continuamente.
Selena -  Mas talvez Não seja a condição dessa mudança.
Bret - Não é uma barreira.
Fabi - Se estivesse mais perto...(Selena se afasta) Existe algum sentido em você se afastar agora?
Selena -  Não me afasto...só estou cansada de tanto esperar...(Olha Não) Quem sabe agora dormirá tanto tempo quanto esteve antes acordado?
Bret - Melhor...quanto mais dormir, maior será a nossa chance de lhe bater. Podemos continuar procurando. Tem que haver algo mais do que os pedaços do banco...
Fabi - Sim...mas o que?
Eliana - Talvez pudéssemos...
Bret - Espera! Existe um meio! Nós podemos fazer um laço corrediço, agarrá-lo pelo pescoço ou pelo pés, puxá-lo até aqui e liquidá-lo!
Fabi - Um laço corrediço...mas com o que?
Bret - Não sei!? (Não se mexe novamente)
Fabi - Viram?
Bret - Pensei que fosse acordar...ele deve estar acordado para se mexer desse modo...
Fabi - Maldito! (Pega a perna do banco e a ergue na direção de Não)
Não (Erguendo-se subitamente) - O que é isso?
Eliana - O que?
Não - O que é que vocês tentavam fazer?
Bret - Nada...
Fabi - Nunca tentamos fazer nada...
Não (Apontando as pernas dos bancos) - E isto?
Eliana - Nós estávamos nos distraindo...
Não - Vocês queriam me fazer prisineiro.
Eliana - Não podemos fazer nada que você não queira...
Não - Mas eu dormia.
Eliana - De qualquer modo, não temos vontade...não é? (Os outros concordam)
Não - Ratos...vocês são como os ratos, que só se atrevem com os indefesos...a gente faz um movimento...(Não faz um movimento súbito e os personagens, a exceção de Selena, reagem como se procurassem se esquivar de um golpe)...e fogem apavorados...
Bret - Não é verdade. Você não nos causa tanto medo quanto desejaria.
Não - Jamais me propus a isso. Se vocês vivem com o medo dentro do corpo é porque vocês mesmos o criaram.
Fabi - São as grades.
Não - Sempre houve grades.
Fabi - Mas um dia já não existirão mais.
Selena -  Fabi...por que você o provoca?
Fabi - Mas eu não o provoco. Eu afirmo uma coisa que acontecerá forçosamente.
Eliana - É você que tem medo de nós. Pôs as grades para se proteger.
Não - E do que é que eu vou me proteger?
Eliana - Da nossa força latente. Possuímos algo que lhe escapa e por isso nos mantêm prisioneiros.
Não - Protejo-os contra vocês mesmos.
Bret - E por isso nos obriga a viver num mundo irrespirável? Não haveria outra forma de nos proteger? Por exemplo, compartilhando do que você sabe. Por que você nos oculta tudo? Como se não fôssemos dignos! (Bret avança para Não)
Não - Para trás! Para trás, repito!
Bret - Por quê? Não saí do meu domínio!? Se você colocou as grades foi para delimitar o nosso espaço. E esse espaço chega até aqui.
Não - Você se recusa a me obedecer?
Fabi - Todos nos recusamos. Das grades para dentro tudo nos pertence. E chegará o dia em que teremos tudo o que há para além delas.
Selena -  Fabi...
Não - Pobres criaturas...não dispõem dos meios e no entanto...
Fabi - Torne a dormir e verá.
Não - Quer dizer então que vocês realmente tentaram algo?
Fabi - É. Eu não quero mais ocultá-lo. E a partir de agora não deixaremos nunca de tentar, sempre que possamos.
Não - E por que “desde agora”? O que aconteceu?
Fabi - Pouco a pouco fomos tomando consciência de nós mesmos. É um processo natural.
Não (À Selena) - Você também?
Fabi - Ela também.
Não - Ela que responda!
Selena -  Eu...estou com eles.
Não - Não percebem que eu posso castigá-los?
Fabi - De verdade que você pode nos castigar? Está ouvindo, Bret? Vocês todos estão ouvindo?
Bret - Ele começa a se revelar. Por que será que demoramos tanto a obrigá-lo a isso?
Não - Insensatos!
Bret - Isso, insulte-nos!
Não - Insolente!
Fabi - Nós te encurralaremos, Não. Agora já decidimos.
Não (Depois de um tempo) - O que aconteceu enquanto eu dormia?
Fabi - Por acaso você não sabe?
Eliana - Nós não vamos dizer a você.
Bret - Por que não?
Eliana - Mas nós nem sequer o sabemos!? (Não ri)
Fabi - Isso...ria...que importa a nossa ignorância sobre o ocorrido? O que conta é a sua. Você dormiu e ao acordar se deparou com criaturas novas.
Não - Uns miseráveis que incubavam a revolta.
Fabi - Sim, a encubávamos. E agora vamos obrigá-lo a nos dar a resposta que...
Não - Para trás, estúpido!
Fabi - Para trás, sim...mas para saltar com mais força!
Selena -  Fabi!
Fabi - Já não podemos voltar atrás, você não percebe? (Vai em direção às grades) Agora, você e eu...(Introduz a perna do banco entre as grades, tentanto atingir Não, mas este o subjuga facilmente)
Não - Para o que você acha que serve a força?
Bret - E para você? De que lhe serve ela?
Não - Nunca tentei fazer uso dela. Apenas vocês, criaturas que não refletem.
Bret - Ah é? Então chega um pouco mais perto...(Não golpeia a grade) Mas por que você bate? A mesma coisa que te protege nos protege também!?
Fabi - E apesar disso nós conseguiremos te vencer.
Não - Palhaços...
Eliana - Talvez o fôssemos antes, mas você dormiu e tomamos consciência de sua fraqueza.
Bret - Você não passa de um cão de guarda.
Não - Vocês estão acorrentados no seu próprio ódio.
Bret - Ódio? E quem nos ensinou isso? Não é preciso odiar muito para construir esta prisão em torno de nós?
Não - Eu sempre os protegi de vocês mesmos.
Fabi - Então você nos ama!?
Não - Eu não sacrifico tudo por vocês?
Fabi - Você não sacrifica nada, porque você não tem nada além de nós. Que é que você faria se nós te abandonássemos?
Eliana - Você já existe um pouco menos pelo fato de ter-mos avançado contra você.
Não - E como é que você sabe que não era isso justamente o que eu queria?
Bret - Que você queria? E para que?
Não - Talvez eu já estivesse cansado de tanta humildade, tanta mansidão.
Bret - Nós nunca fomos tão mansos como você pensa. Por dentro nós sempre te repelimos.
Não - Eu também me repelia...
Bret - Talvez. Mas com o tempo você está condenado.
Fabi - Além disso já começou a  perder o controle.
Não - Vocês não entendem nada.
Eliana - Por que você não explica?
Não - E por que cada um de vocês não se explica consigo mesmo?
Fabi - Já o fizemos. E é esse o resultado...
Bret - Nos sentimos mais estranhos do que nunca.
Selena (Totalmente abstraída) - Você é o nosso limite...
Fabi - Selena! Você sabe o que está dizendo?
Não - Coisas sem pé nem cabeça!
Bret - Parece que tocamos num ponto sensível. Continua, Selena.
Eliana - Ele interrompeu o diálogo...deve ser porque nos aproximamos demais.
Selena -  A nossa última oportunidade...
Bret - O que significa?
Fabi - Também não entendo. O que é que você quer dizer, Selena?
Selena -  Todos nós caminhamos para Não...
Bret - Ela sabe algo.
Eliana - Ela nunca foi exatamente como nós.
Selena -  Ele indica a meta...mais além estão as grades intransponíveis!
Fabi - Selena! O que você tem?
Selena -  Estou muito cansada.
Fabi - Que é que você dizia sobre outras grades?
Selena -  Não...ainda dorme?
Fabi - Você não se lembra de que ele já acordou?
Selena -  Me deixa descansar um pouco...
Bret (Mostrando Não) - Olhem! Parece arrasado!
Fabi - Será porque ela falou das grades? Eu quero dizer, de outras grades?
Eliana - Mas o que será que ela queria dizer?
Não - Nada.
Fabi - Ela disse que ele era o nosso limite.
Bret - Mas como? Um limite é uma barreira na qual se chega e que nos fecha o caminho!?
Fabi - Não...é alguma coisa que se chega a fazer, uma realização! Existe uma solução que estou a ponto de tocar e que me escapa.
Eliana - Acontece o mesmo comigo.
Bret - Mas ele não dirá uma só palavra.
Eliana - Porque demos mais um passo para derrotá-lo!
Não - Para derrotar a vocês mesmos, cegos.
Fabi - Para superar esse estado transitório do qual você é o único responsável.
Não - Vocês têm vivido sempre de ilusões. Será que ainda não compreenderam? O limite de vocês são as grades. Eu não disse nada que vocês já não soubessem.
Fabi - Nosso limite é Não!
Não - Faz anos que já o alcançaram...desde sempre...
Selena - As grades estão fora...
Não - E as grades estão dentro! E agora chega, já estou farto de ouví-los!
Bret -  Agora já não nos calaremos nunca!
Fabi - Explique primeiro isso das grades!
Não - Não há o que explicar.
Fabi - Você não se atreve! Tem mais medo do que nós! Será que você também é destrutível?
Bret - Sim, é! E eu digo que todos juntos acabaremos com ele!
Não - Calem-se de uma vez.
Bret - Talvez um dia cheguemos a ver que somos mais fortes do que você.
Não - Daí de trás?
Bret - Daqui ou de onde seja!
Fabi - Talvez nós não estejamos atrás de nada. Talvez seja verdade que as grades estão dentro de nós e seja fácil achar uma maneira de nos livarmos delas. E nesse dia nos livraremos de você.
Não - Até agora ninguém nunca se livrou de mim.
Fabi - Até agora. Mas nós estamos certos de que existe uma liberdade para o homem. E saberemos conquistá-la.
Selena -  E se nós não pudermos...nossos filhos.
Não - E onde estão os seus filhos? (À medida que o texto que se segue for sendo dito, os jovens que se encontravam ao fundo avançam para a cena)
Selena -  Sinto-o dentro de mim e sei como será.
Não - Uma criatura miserável.
Selena -  Um ser mais lindo e maior do que nós. Será um rapaz cheio de força, as feições acentuadas e o cabelo negro.
Fabi - Terá a pele morena e o olhar decidido. A boca risonha, mas enérgica.
Selena -  E uma inteligência desperta.
Eliana - E ela será doce e terna como a primeira mulher que existiu. Dentro dela haverá uma grande força. Seu olhar é claro e límpido, como um espelho, e sabe dizer palavras animadoras.
Bret - Será uma grande companheira.
Selena - Nada os poderá vencer. Ninguém os deterá.
Eliana - Unidos serão mais fortes do que tudo e todos.
Não - Sonhar não custa nada...
Selena -  Eles herdarão a nossa luta.
Fabi - Já consigo ver o nosso filho...e a filha de vocês!
Bret - É uma linda moça. Tem a pele fina e os cabelos como...
Não - Vocês dormian e o ignoravam. A vida continua além do vosso sonho. E é a mesma vida de sempre, estéril e miserável, detrás das grades!
Bret - Eles destruirão as grades.
Não - Vocês também queriam destruí-las.
Selena -  Feda romperá a corrente.
Bret - Nossa filha se chamará Sorne.
Selena -  Eles se amarão e lutarão juntos.
Não - Mas cada um de sua cela.
Eliana - Já não haverá mais celas para eles. Nossos filhos já nascerão livres.
Não - Serão mais escravos do que vocês. Será que vocês ignoram que estão trabalhando por um futuro de dor e pela morte de toda a esperança?
Selena -  Eles não discutirão e traduzirão seus pensamentos em ações.
Eliana - Passarão por cima de Não, porque Não é o falso obstáculo que nós mesmos forjamos.
Não - Isso...vão negar-me agora a existência. As grades dão testemunho de mim. Será que vocês acreditaram que basta o desejo para derrubar todas as grades? Vejam como são sólidas!
Selena - Seus dias estão contados. Feda já começou a lutar. É ele quem fala. Deixemos que amadureça. Deixemos que amadureçam os dois, ele e Sorne, na quietude de nossos corpos...(Os dois jovens retrocedem até o fundo)
Não - Eu ainda estou aqui...e para sempre!
Bret - Talvez você já não esteja e nós ainda não saibamos.
Não - Não basta você me negar para conseguir se livrar de mim.
Eliana - Você já não é mais o mesmo, Não. Algo se desmorona dentro de você. É como se você estivesse se descompondo...você já não é nada.
Selena -  Você não é ninguém.
Não - Como vocês? E agora que fizeram todas essas descobertas, o que vão fazer? De que lhes serve? Continuam atrás das grades, pelo que vejo...
Bret - Apesar delas nós abrimos caminho para a verdade. Cada palavra que dizemos nos aproxima mais do fim do cativeiro.
Não - A verdade!? Não tenho sido eu, até agora, a verdade de vocês?
Bret - A nossa, não. A sua.
Não - Ninguém os obriga a acreditar em nada.
Fabi - Essas grades nos obrigam. Nunca tentamos sacudí-las de verdade e agora, ao fazê-lo, por muito que resistam, já não nos parecem tão respeitáveis.
Não - Então...vocês pretendem escapar?
Bret - Até certo ponto já escapamos.
Não - E o que foi que encontraram?
Fabi - Nada. Ainda...
Não - Talvez porque não haja mais nada. Porque a verdade de vocês e a minha é a mesma. Porque há apenas uma verdade.
Bret - Talvez...mas não é essa. Começo a crer que, de um modo ou de outro, você nos tenha mentido.
Não (Indicando as grades) - Me digam se isso mente!
Eliana - É esse precisamente o seu engano. Nós até agora acreditávamos que não existia nada, que não poderia existir nada. E agora compreendemos que existem coisas que há muito nos esperavam.
Bret - E aprendemos que toda conquista deve ser alcançada pelas suas costas.
Não - Vocês não podem me fazer nada pelas costas.
Bret - Um dia você tornará a dormir.
Não - Talvez nunca mais torne a dormir.
Bret - Ou talvez durma para sempre. Agora mesmo você já está meio adormecido.
Não (Alegre) - O que é que você está dizendo!?
Selena -  Nós estamos intoxicando você, lentamente. É o mesmo que você dormisse.
Não - Não faz sentido.
Selena -  É a primeira vez que criamos algo independente de você. É a primeira vez que dizemos alguma coisa que você não entendesse. Fabricamos algo que é nosso, que está cima de você.
Fabi - Pela primeira vez, Não, deixamos você de lado.
Selena -  Fugimos de você.
Não - Perfeito! E isso equivale a dizer que já estão fora...
Bret - Quando nos propuzermos a isso. Agora percebo que nem precisamos esconder isso de você.
Não - As palavras encheram a cabeça de vocês...
Selena -  As palavras são como uma chave misteriosa...
Não - Que nunca abre nada! É tão misteriosa que nunca se sabe em que fechadura metê-la, em que porta possa servir. Enquanto não a utilizam parece um tesouro...uma chave! (Mete a mão no bolso e tira uma chave) Uma chave!? Não foi feita à toa, não é verdade? Mas existe ainda a fechadura que deveria abrir? E se existe...onde está?
Eliana - As chaves podem ser adaptadas.
Fabi - Tudo isso não passa de um jogo de palavras.
Não - Naturalmente! Tudo é um jogo de palavras...já é hora de vocês reconhecerem isso. Vocês não têm uma chave, mas um molho de chaves emaranhadas umas nas outras...
Bret - Então é só ir experimentando!?
Não - E todos passam a vida experimentando...e chega a morte. Há tantas chaves...
Eliana - Mas existe também o instinto que nos leva a escolher a mais adequada.
Não - E o instinto de vocês não lhes diz que é provável que as chaves já estejam tão velhas que nenhuma delas possa servir para nada, porque foram trocadas as fechaduras?
Bret - E quem lhe garante que não seremos capazes de fazer e desfazer essas chaves, e adaptá-las às novas fechaduras? E que agora, precisamente, encontramos a que nos fazia falta?
Não - De verdade? (Atira a chave aos pés de Bret) Abre, então...
Bret (Depois de um tempo) - Já lhe dissemos que será quando nós quisermos! (Pega a chave e a joga no espaço de Não)
Não - Será que agora já estão gostando da prisão e não querem mais sair?
Fabi - Bret...você duvida!
Bret - Você não? 
Fabi - Nós a encontraremos!
Não - E se não forem vocês, os seus filhos...não é mesmo?


ATO  II

            (Mesmo cenário. Passaram-se muitos anos e os filhos previstos tornaram-se adultos. Na cela da direita, além de Fabi e Selena, vemos Feda, que anda de um lado para o outro. Na cela da esquerda, Eliana e Bret tem agora a companhia de Sorne, que permanece agarrada às grades)

Fabi - Ainda não está cansado, Feda?
Feda - Não.
Não - O que é?
Feda - Cala a boca.
Selena - Descansa um pouco.
Feda - Não.
Não - Também não era para mim agora?
Feda - Pára de responder cada vez que eu digo não! Cansa!
Não - A mim, não.
Feda - Mas a mim, sim.
Não - Você é incansável...
Feda - E você é estúpido.
Não - Cuidado com o que você diz...
Feda - Eu digo o que quiser. Estúpido, imbecil, animal! E direi tudo o que me venha à cebeça e você agüentará. Você não pode me fazer nada.
Não - A tua sorte é que eu sou de boa índole. Mas um dia você ainda vai ter um desgosto...
Feda - Se é você quem vai me dar...(Recomeça a andar) Eu não me atormento, faço o que devo fazer. Eu me sinto seguro de mim mesmo.
Não - Teus pais também se sentiam seguros. E os pais deles...os pais deles...
Feda - Meus avós te temiam. Os meus pais discutiam com você. Eu já te desprezo.
Não - Mas os fatos não mudaram.
Feda - Ao contrário. Mudaram completamente. Para mim você já não é nada.
Não - Como não? Vocês continuam atrás das grades!?
Feda - E daí? O que é que isso prova?
Não - Que vocês estão trancados...
Feda - Exato! E que você é o carcereiro...Você se julga invejável por isso? Sempre atento ao que fazemos, sempre vigilante!
Não - Mais do que isso, Feda, muito mais: destruindo você sem que você se dê conta. Porque você já não poderá ter um filho para prolongar essa luta insensata na qual você tanto se empenha. Sorne está fora do seu alcance e você não a terá. Nunca! Vocês são o fim...
Feda - Ao menos já não haverá mais prisioneiros.
Não - Naturalmente, já não haverá mais ninguém. É o que eu estava dizendo.
Feda - Você se engana. Eu saberei chegar até Sorne.
Sorne - Seremos a primeira geração livre e nossos filhos não saberão que um dia houve grades. 
Não - Seus pais diziam o mesmo, não é verdade, Bret? Não é, Fabi? Vocês também estavam certos de que poderiam fugir...
Bret - E ainda estamos. Cada dia que passa nos aproxima mais do fim do cativeiro.
Não - E com essa esperança tornaram-se velhos. E com ela morrerão.
Fabi - Mas eles são mais duros do que nós. Feda é filho da nossa revolta, não se esqueça.
Não - Não me esqueço de nada. Também estou aqui para lembrar e nada do que eu me lembro consegue ser favorável a vocês.
Sorne - O simples fato de terem tentado lutar nos enche de honra.
Não - E por isso continuam sentados nos bancos, como quando eram crianças, e seus pais os instruíam, ensinando-lhes que existe um limite intransponível.
Feda - E eles souberam superá-lo ao perceberem que você não é invulnerável. Nós iremos um pouco mais longe.
Sorne - O tempo trabalha contra você, Não.
Não - Onde foi que eu ouvi essas palavras? Talvez tenha sido seu pai quem as pronunciou. Mas parece que não serviu para nada...
Fabi - É claro que serviu. Com eles tudo começa de novo. São dois seres a quem a luta ainda não esgotou. Enquanto que você é sempre o mesmo, cada dia mais velho, cansado e desprestigiado. Já não acreditamos mais em você.
Não - Não há mais nada em que acreditar.
Feda - Se não há mais nada, não acreditaremos em nada. É uma maneira como outra qualquer de destruí-lo.
Não - Isso sim me preocupa...
Feda - Não deve deixar você assim tão indiferente, porque você anda sempre procurando erros nas nossas palavras. Não podemos abrir a boca sem que você intervenha logo. Tem medo de ser esquecido, não é? Você, provocando discussão, fica em evidência. Faz isso para que o vejamos melhor. Se um dia pudéssemos deixar de pensar em você, talvez você até desaparecesse!? O medo te devora...
Não - Você sempre gostou de baravtas, não é mesmo? Isso te proporciona um sentimento adulador da própria importância...Mas você é tão insensato que não percebe que sem mim não saberia o que fazer.
Feda - Ao contrário. É com você que eu não sei o que fazer. Você sempre se mete no meu caminho. Se soubesse como me incomoda...
Sorne - Não fale mais com ele, Feda. Faça como se ele não existisse.
Feda - Você acha?
Sorne - Claro! Pelo menos ele ficará com raiva. Ao menos isso nós ganhamos.
Feda - Adeus, Não...acabou-se.
Não - Vocês são uns estúpidos incorrigíveis...(E se afasta para o fundo)
Sorne - Feda...você acredita mesmo que conseguiremos algo?
Feda - Se a gente se propõe de verdade...
Sorne - Mas será que nossos pais também não se propuseram de verdade?
Feda - Nunca o fizeram de maneira sistemática. Não digo isso como uma censura. Afinal de contas, eles foram os primeiros a ver que essa situação não poderia durar para sempre.
Sorne - E o que vamos fazer agora? Você tem alguma idéia concreta?
Feda - Vamos começar examinando bem o terreno.
Sorne - Como assim?
Feda - Nós nunca examinamos as nosssas celas, Sorne. Vivemos num lugar que praticamente desconhecemos!?
Não - E como...
Sorne - Já está ele outra vez!
Feda - Sim...está inquieto. Cada vez que isso acontece aumenta a minha esperança.
Não - Não há nada como viver de ilusões. E nisso vocês são peritos.
Feda - A primeira coisa a fazer é examinar as nossas celas. Isso ninguém fez.
Sorne - Tem razão...sempre vimos grades na nossa frente e isso nos cortou as asas.
Feda - E além das celas, temos que examinar as próprias grades. Talvez apresentem algum ponto fraco, percebe?
Sorne - Mas isso pode nos ocupar a vida inteira!?
Feda - Podemos ter sorte. E ainda somos muito jovens. Eu não vejo outro caminho.
Sorne - Tudo parece tão definitivo...
Feda - Não importa. Sempre suspeitei que poderia haver uma armadilha, que aqui não se jogava um jogo limpo.
Não - Como não? De acordo com regras. Que não seriam vocês a fazê-las, certo?
Sorne - Talvez seja mais importante saber quem inventou esse jogo.
Feda - Mas isso só poderemos saber quando tivermos descoberto a armadilha! Se é que ela existe...
Sorne - Tudo bem: por onde é que devemos começar?
Feda - Pelo chão mesmo.
Sorne - Como você quiser.
Feda - Então vamos. (Eles começam a examinar o chão)
Não - Que vontade de perder tempo...(A Feda, depois de um tempo) O que é que você espera encontrar, definitivamente?
Fabi - Acho que já lhe disseram. Estamos buscando uma brecha por onde possamos escapar.
Não - Não existe.
Bret - Então fique tranqüilo. Se você nos tem tão seguros...
Não - Mas eu sou a ordem que é preciso respeitar.
Selena - Nem todas as ordens foram feitas para todos os tempos.
Não - É...não são palavras o que falta a vocês...
Bret - A você, ao contrário, elas fazem muita falta. Deve ser porque já começou a perder a partida.
Não - Eu não posso perder, se são vocês somente os adversários. Eu me limito a observar.
Fabi - Fazendo toda a espécie de comentário para embaralhar as cartas.
Sorne - É de madeira.
Feda - Não há nenhuma falha aí do seu lado?
Sorne - Não, nenhuma. Ao menos por enquanto. O chão é compacto e duro.
Feda - Igual aqui...Mas com o tempo, nossos pés o gastarão.
Sorne - Vão ser necessários muitos passos, Feda.
Feda - Pelo menos agora nós sabemos que isso aqui um dia não existirá mais. Portanto, que não é eterno.
Não - Nada é eterno. Nem vocês. (Feda e Sorne prosseguem explorando o chão) Sabe? Na verdade, vocês eram mais divertidos antigamente, quando queriam me atingir com pedaços de madeira, com seus impulsos juvenis que se quebravam contra as grades...
Fabi - Quer dizer que aquilo lhe agradava? Bem que eu achava que você se divertia, ainda que tentasse dissimular. Mas eles são de uma outra geração. Têm outros métodos. E são inclusive mais inteligentes.
Bret - Têm mais experiência.
Não - Mais experiência? Como, se são mais jovens?
Selena - São mais velhos. Somaram sua experiência à nossa.
Não - É um modo original de se considerar as coisas, não se pode negar: os filhos que dão lições aos pais...
Bret - Sempre foi assim, ainda que os pais demorem a reconhecer.
Fabi - Agora estou certo de que Não acabará sendo derrotado. E sabem por que? Porque a nossa experiência acabará sendo infinitamente superior a dele. Porque ele é sempre o mesmo, ninguém pode lhe ensinar nada, pois ele vive tudo só e a cada dia, como todo mundo, fica mais velho e menos atento a tudo que o cerca, menos capaz!
Não - Sugestiva teoria, não há dúvida.
Feda (No primeiro plano) - A cela acaba...a cela acaba!
Sorne (Em posição equivalente) - E aqui também! (Os pais se juntam aos filhos)
Selena - Acaba...
Feda - O vazio!
Sorne - Não há mais nada!
Não - Precisamente.
Feda - Deve haver algo. Onde termina uma coisa começa outra. O espaço...e mais espaço!?
Sorne - Um vazio imenso...parece não ter fim.
Feda - Outro mundo!? Não percebem o que descobrimos? Não estamos trancados como sempre havíamos imaginado. Nada nos impede de...
Não - O precipício.
Sorne - Nem se vê o fim...
Feda - Não...é muito íngreme...
Bret - É pior do que as grades, do que as paredes!
Feda - Calma! Ao menos já nos permite respirar...(Aos pais) Mas como é que vocês nunca repararam?
Fabi - Ele nos impedia.
Feda - Mas vocês estavam proibidos?
Fabi - Proibidos não, mas...não sei...Não estava sempre aqui, como agora, e parecia que nós não sabíamos olhar para nenhum outro lugar, a não ser para ele!?
Bret - Sempre nos descuidamos do resto!
Não - E assim evitaram novas desilusões. Ao lado de seus filhos se comportaram como homens prudentes.
Bret - Mas não queremos mais sê-lo. Você sempre nos enganou.
Feda - Bastaria que déssemos um salto...
Selena - Mas isso significaria a morte.
Feda - É também uma saída.
Não - Então salta.
Feda - Não...primeiro experimentaremos tudo.
Bret - Se tivéssemos cordas!?
Sorne - Mas precisaríamos de uma infinidade de metros. O espaço engole tudo...
Eliana - Joguemos algo! Assim poderemos saber quanto tempo demora para chegar até o fundo.
Feda - Não ouviríamos nada. É profundo demais.
Eliana - Mas não podemos nos resignar e não fazer nada!
Feda - Não nos resignamos. Vamos continuar.
Sorne - Podemos fazer novas descobertas.
Não - Terão assim novas desilusões.
Fabi - Exploremos todos juntos.
Feda - Não, meu pai.
Fabi - Acabaremos antes.
Feda - Não.
Fabi - Por que não?
Feda - Se todos nós explorarmos ao mesmo tempo nunca teremos certeza absoluta de haver examinado toda a cela. Nós nos confundiríamos.
Fabi - Não vejo por que. Será que você quer reservar só para si toda a glória da descoberta?
Feda - Pai...não existe desejo de glória quando é a liberdade que se persegue. Você pode procurar, se quiser. Mas nesse caso, é só você.
Selena - Não, Fabi, ele que o faça. É a sua oportunidade. A nossa já não importa tanto.
Fabi - A única coisa que eu queria era ajudá-lo.
Selena - Podemos vigiar o abismo.
Bret - Pra que?
Selena - Poderia mudar.
Fabi - Mudar?
Selena - Como mudou agora. (Todos olham o abismo)
Fabi - Eu não notei nada.
Selena - Nem eu. Nem ninguém. Até agora...
Fabi - Mas então...o que é que você quer dizer? O que foi que você viu? Onde está a mudança?
Selena - Antes não existia.
Feda - O que é que não existia?
Selena - O abismo.
Fabi - É claro que existia. Nós é que não tínhamos percebido.
Selena - Não...ele não existia. Por isso pode tornar a mudar.
Bret - Nós nunca tínhamos explorado as celas, Selena! Não podíamos saber que estava aí!
Selena - Nós teríamos notado.
Bret - Nunca deixamos as grades, você sabe!
Selena - Mas isso se vê.
Fabi - Agora!
Selena - Teria sido visto sempre, se tivesse existido. Pensamos sempre que era uma parede.
Feda - Mas é uma parede...
Sdelena - Não como as outras. Olha, eu não sei, nosso mundo está em constante evolução e...
Bret - Fomos nós que mudamos, Selena. Nasceram-nos novos olhos!
Selena - Não podemos estar certos. Por isso é preciso vigiar.
Não - Vigiem...vigiem...
Eliana - Não está rindo! Quer dizer que nos enganamos?
Selena - Talvez nem ele saiba como vão as coisas.
Feda - Vamos continuar. Afinal, Sorne, nada se opõe a que eles vigiem o abismo.
Fabi - Eu fico aqui. (Feda e Sorne recomeçam a exploração)
Selena - Vamos ficar todos juntos.
Bret - Claro! Mas como é que nunca tivemos a idéia de chegar até os extremos da cela?
Fabi - Não sei...há tantas coisas em que nunca pensamos...
Eliana - Parece que encontramos o caminho.
Não - Vocês não acham que estão sendo otimistas demais? Este “início de começo” já comprende o assoalho, a grade, este lado da cela...Ou seja, mais da metade do espaço.
Selena - Não é verdade. Não exploramos a grade.
Não - Vocês já exploraram a grade uma infinidade de vezes.
Fabi - Nunca!
Bret - Olhávamos através das grades. Olhávamos para você. Nada mais.
Não - É a mesma coisa.
Fabi - Você nunca nos deixou ver nada.
Bret - Felizmente, agora, a cada dia que passa você existe menos.
Não - É possível que de tanto repetí-lo vocês acabem me fazendo desaparecer.
Fabi - E por que não?
Bret - É indiscutível que a cada dia que passa você tem menos personalidade.
Fabi - Sabe por que, Não? Porque a cada dia ligamos menos para você.
Bret - Você está ficando velho.
Fabi - A solidão te embruteceu.
Bret - E também o fato de...
Não - Estar mal acompanhado. Vejam as relíquias que me couberam...
Eliana - Ou como você preferir. Mas o fato é que nunca deixamos de combatê-lo e cada vez mais o encurralamos. Agora você não pode nem se atrever a dormir.
Não - Isso é o que vocês queriam, não é? Uma boa ocasião para me atacar pelas costas, à traição.
Fabi - O único traidor aqui é você, que nos encarcerou sem que lhe tivéssemos feito o menor mal. Por quê?
Não - Perguntem a vocês mesmos. Talvez não sirvam para mais nada.
Bret - Nunca nos deram oportunidade de mostrar se valíamos alguma coisa.
Não - Vocês são mesquinhos, invejosos, estúpidos, presunçosos...
Selena - Somos muito parecidos com você.
Eliana - Exceto pelo fato de você estar do outro lado. Por que não trocamos um pouco?
Não - Trocar de que?
Eliana - De lugar. Gostaria de ver a cara que você põe aqui dentro.
Não - Não entenderam nada...Agora vejo que não sabem o que procuram, nem para onde vão...
Fabi - Por que você não vem nos explicar?
Não - Mais vale que continuem procurando. Do contrário, como empregariam o tempo?
Bret - E pensar que durante toda a vida você foi como uma corda atada ao nosso pescoço! É inacreditável...
Selena - Vamos deixá-lo e vigiar o abismo. Ele quer nos distrair. Sempre nos propõe algo que ignoramos. Não nos deixemos enganar.
Fabi - Selena tem razão. Ele que se distraia sozinho.
Não - Vigiem...vigiem...
Feda - Sorne, algo de novo?
Sorne - Não. E você?
Feda - Também não. Vamos agora examinar as grades. (Olhando-as) São maciças...se ao menos tivéssemos uma lima...
Sorne - Mas não temos.
Feda - Isso é que é o pior. Ninguém nos deu algum elemento para lutar, exceto um pouco de...(Não ri)
Sorne - Ele se diverte...
Feda - Mas não está tão tranquilo como quer aparentar.
Sorte - Naturalmente. Esse poderia ser um dia amargo para ele.
Não - Continuamos com as ilusões...
Feda (À Sorne) - Não responda. Ele que se arrume sozinho.
Não - Mais sós do que vocês estão?
Sorne - Às vezes você não tem pena dele?
Feda - Não. Ele nunca teve pena de nós. É um ser essencialmente negativo.
Sorne - É curioso...tudo que dizemos parece nos levar mais ou menos ao mesmo ponto.
Feda - Cada dia mais...suponho que estamos começando a compreendê-lo.
Não - Há gente obstinada!?
Sorne - Mas ele não poderá admitir nunca.
Feda - Claro! Porque no dia em que se encontrar numa situação que o obrigue a nos dar razão, já terá deixado de ser o que é. Você não acha?
Sorne - É, Feda.
Não - É, Feda...basta que um brame para que o outro brame também.
Feda - Parece que alguém disse uma estupidez...
Sorne - Um infeliz que ronda por aqui.
Selena - O abismo ainda está aqui...embora possa desaparecer a qualquer momento.
Feda - Só pode acontecer aquilo em que acreditamos verdadeiramente. Cada um luta com os meios de que dispõe. Vocês, com a sua fé. Nós, com a nossa incredulidade.
Fabi - Icredulidade?
Feda - Sim, no fundo é isso. Exceto em algum momento de inspiração, vocês sempre acreditaram que a cela era um mundo fechado e resolvido. Por isso nunca fizeram nada para sair dele. Mas Sorne eu não acreditamos nesse mundo, nem nessas condições. Não acreditamos nem em Não, apesar de sua estúpida presença. Nós o pusemos de quarentena, por assim dizer, e começamos a investigação desde o princípio, desde a base, para que não fosse necessário retroceder. Mas não temos nada contra a intuição, não é, Sorne?
Sorne - Não, é claro. São duas formas de conhecer.
Não - Um momento, eu gostaria que...
Feda - Sabemos que não dirá alguma coisa para demonstrar que estamos todos enganados. Mas a partir de agora, vocês também devem se acostumar com a idéia de agir como se Não tivesse desaparecido de nossas vistas. Olhem para o outro lado das grades: há alguém?
Fabi - Ninguém...
Feda - Bret?
Bret - Ninguém, Feda...
Eliana - Estamos sós...
Selena - Não sei.
Feda - Mãe...é preciso levar o jogo até o fim! É preciso que a gente se comprometa definitivamente! É necessário assiscar tudo!
Selena - E se fracassarmos?
Feda - Não podemos fracassar.
Selena - Mas se apesar de tudo fracassarmos?
Feda - Seria uma derrota que nos honraria. Somente há derrota para aquele que renuncia. E qual de nós renunciou alguma vez?
Eliana - Ninguém.
Feda - E temos encontrado uma coisa ou outra. Para começar, esse abismo. É uma conquista definitiva, com a qual ainda não sabemos o que fazer. Mas você a guarda como uma reserva, caso a nossa investigação não dê nenhum resultado. Apesar das aparências, não sabemos ainda se é um caminho.
Não - Como você se engana...
Feda - Agora, Sorne, vamos examinar a parede. (Os dois iniciam o exame das paredes)
Fabi - Feda é muito esclarecido.
Bret - Suplantou os preconceitos, coisa que nós nunca conseguimos fazer totalmente.
Eliana - Por isso começamos a obter algum resultado. Nossa prisão termina.
Selena - Não sei.
Fabi - Mas você mesma reconheceu que tudo mudou.
Selena - Sim, mas desconheço a natureza dessa mudança.
Bret - Agora sabemos o que queremos.
Selena - Sempre o soubemos.
Fabi - Não tanto quanto Feda. Ele descobriu o abismo.
Selena - E se foi ele mesmo que o criou?
Não - Selena é a única que vê claro...
Bret - O que é que você tem, Selena? Não estamos entendendo você!?
Selena - Nem eu mesma me entendo. Quero e temo. Espero, como vocês, mas algo me diz que...
Fabi - Acaba!
Selena - Algo me diz que talvez tenhamos querido correr demais. Ou não...não é isso exatamente...
Bret - O que é, então? Por que você vigia o abismo se não acredita nele?
Selena - Eu creio nele. Não posso repelir uma evidência. Mas não sei de que modo eu creio. Quando vejo que nada muda, parece que criamos um outro inimigo, outro carcereiro. Só que dessa vez muito mais cruel, porque nos permite todas as esperanças e ao mesmo tempo, nenhuma. Ele e Sorne são como dois objetos que criamos na solidão de nossas celas, pensando na libertação. Duas armas!? Só não sabemos se essas armas são adequadas para os seus fins. Podem também se voltar contra nós!
Fabi - Selena...é nosso filho!?
Selena - Às vezes os filhos se perdem e perdem seus pais.
Fabi - Já havíamos perdido tudo!?
Selena - Talvez não...
Não - É isso, Selena. Talvez não. Talvez aquele a quem vocês chamam Não fosse a solução para vocês e vocês nunca souberam ver.
Bret - Vozes perturbadoras, que nunca fizeram nada por nós, que nos têm mantido no cativeiro e antes de nós a nossos pais, pretendem agora ser amistosas.
Feda - As celas são idênticas...
Sorne - Será que não estamos perdendo tempo, Feda?
Feda - Só saberemos no fim de tudo. É preciso chegar sempre até o fim. Em primeiro lugar, até o final dos nossos pensamentos. Desanimada?
Sorne - A parede é tão lisa...tão igual...
Feda - Talvez a vejamos assim e não seja. Quando menos esperarmos poderemos encontrar um novo abismo. Vamos continuar. (Eles reiniciam a exploração)
Fabi - Feda não esquece nada.
Bret - No fundo, tenho inveja deles. Não há nada mais apaixonante do que essa procura. Como é que nunca pensamos nisso?
Eliana - Sempre tememos Não.
Bret - Inclusive naquele dia em que ele ficou adormecido.
Eliana - Ele nos era demasiado necessário para que pudéssemos prescindir dele, para que pudéssemos desafiá-lo. Fizemos o que devíamos fazer: criamos nossos filhos livres desse temor. Se encontrarem a saída, será como se tivéssemos sido nós que a encontramos. Porque somente nós fizemos com que isso fosse possível.
Fabi - Começamos a trabalhar pela nossa libertação no dia em que batizamos Não. Depois, tudo veio naturalmente: a rebelião, o nascimento de algo novo...
Não - E a volta às trevas.
Bret - Esse cara não acredita na inteligência.
Fabi - Não pode acreditar em nada aquele que não existe.
Sorne - Feda!
Feda - O que foi?
Sorne - Essa parede é falsa! 
Não - Não toque nela! Para trás!
Feda - O que é que te preocupa, Não?
Não - Se você passar para o outro lado, tudo terá acabado para você e para todos! Antigamente, antes mesmo de você ter nascido, disse a seus pais que estavam trabalhando pela morte de toda a esperança!
Feda - E o que é que isso tem a ver comigo?
Não - Já não terá mais nada em que se agarrar. Tudo terá acabado definitivamente!
Feda - Você quer dizer...a morte?
Não - Algo infinitamente pior! Já não saberá onde procurar, já não terá nada!?
Feda - E o que é que eu tenho agora? O que é que nós temos?
Não - Vocês não sabem, mas têm tudo! Porque tudo lhes é permitido! Porque as asas de vocês podem voar!?
Sorne - Sem sair daqui de dentro!
Não - Vocês têm escapado uma infinidade de vezes. Na realidade, é como se não vivessem aqui, porque vocês se projetaram muito além. Conseguiram tudo quanto podiam conseguir!
Feda - Mas do outro lado deve haver algo!?
Não - Não há nada! O silêncio, a prisão definitiva...
Feda - De qualquer maneira eu...
Selena - Feda! O que é que você vai fazer?
Feda - Vou passar!
Selena - E se ele tiver razão?
Sorne - Não nunca fez nada por nós, Selena. Sempre colocou obstáculos diante dos nossos esforços. Que confiança podemos ter em suas palavras?
Não - Feda, me escuta! Eu sempre fui amigo de vocês. Vocês é que não souberam vê-lo. Sorne! Eu sempre desejei a felicidade de todos!
Feda - A nossa felicidade!? É por isso que nos tem negado sempre a saída? Mesmo quando via que estávamos nos axfixiando?
Não - Nunca serão mais livres do que agora. Porque agora vocês podem imaginar tudo segundo suas próprias vontades. E nisso consiste ser livre. Mas se passarem...
Feda - Escuta, Não: por uma única vez quero supor que você tenha razão e que nos diz a verdade. Mas para nos salvar, para nos preservar, como você acaba de dizer, não deveria ter permitido que descobríssemos que poderíamos passar por aqui!? Não compreende que agora já não descansaremos até ter-mos visto o que há do outro lado?
Não - Esqueça, Feda!
Feda - Não poderemos esquecer nunca! Ainda que meu pai me dissesse para não passar, eu não poderia deixar de fazê-lo. Ainda que me dissesse que do outro lado não há nada, que ele próprio já tinha estado lá, ainda assim eu não poderia obedecer. Porque eu não vi e necessito me convencer com meus próprios olhos. E você não é meu pai, você é Não, o carcereiro que nos retém atrás das grades, compreende?
Não - Eu sei, Feda, mas esqueça!
Feda - Você sabe que eu não posso fazê-lo. Sabe que eu não posso escutar. Nunca mais teria repouso. Tenho que chegar até o final, por mais doloroso que isso seja.
Não - Sorne! Não deixe que ele...
Feda - Por outro lado, Não, será que nós não vemos as coisas do mesmo ponto de vista? Quem sabe se não começa tudo pra mim onde termina pra você?
Sorne - Feda...
Feda - Sorne e eu passaremos para o outro lado. Todos sempre tivemos medo, não é verdade? Mas isso nunca foi um obstáculo. Ao contrário: tem nos estimulado. Temos que chegar até o final da nossa condição e se o mundo cair em cima, que não seja por covardia ou limites.
Não - Quando já não há mais nada, pouco importa ter sido covarde ou valente!
Feda - Importa agora, quando sabemos até que ponto somos capazes de nos atrever. Somente agora, quando podemos nos olhar cara a cara e nos sorrirmos...ou cuspir...(Tempo) Você vem comigo, Sorne? (Ela apenas o olha) E vocês? (Ninguém responde) Lavam as mãos, já o vejo...deixam comigo a responsabilidade de decidir...(Caminha na direção da cortina)
Não - Não, Feda, não! (Feda arranca a cortina. Vê-se então que Não é também um prisioneiro, em uma terceira cela, ao fundo da qual, atrás de novas grades, estão sentados três novos guardas vestidos de negro, silenciosos e imóveis)
Feda - Grades...mais grades!
Fabi - Selena já havia dito! Mais além estão as grades instransponíveis!
Bret - Então ele era tão prisioneiro como nós! Mais ainda, porque o sabia!
Feda - Grades...mais grades...

FIM  

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