terça-feira, 9 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XX


Se a natureza tivesse me dotado de uma ínfima capacidade de fazer versos eu teria saudado minha deusa com um soneto, já que a ocasião não poderia ser mais propícia para a criação de metáforas e rimas. Não sei se o amigo leitor concorda, mas acho que o poeta leva sobre os demais mortais uma vantagem descabida, na medida em que consegue conferir uma dimensão única até mesmo a um fato corriqueiro - o que não era o caso, nesse momento. No que diz respeito ao amor, claro está que o dom da poesia não torna aquele que o possui mais capacitado para senti-lo do que um outro que dele carece. Entretanto, a diferença entre ambos é significativa, pois enquanto o segundo apenas o vive, o primeiro, além disso, o eterniza. Mas voltemos aos fatos.

Não possuindo nenhuma intimidade com o sublime, depois de rápida indecisão corri na direção de minha amada. Mas ao invés de franquear-lhe a entrada abrindo a porteira, escalei-a como uma lagartixa e lá de cima dei um salto magnífico, cujo destino seria a garupa de minha deusa, mas que acabou no chão enlameado graças ao soberbo corcel - insensível às coisas do amor, ele teve a gentileza de afastar-se bruscamente de seu lugar de origem. Todavia, esse pequeno descompasso não arrefeceu meu arroubo de paixão. Pegando o cabresto do animal, pus-me a correr em círculos, gritando a plenos pulmões o meu amor, a minha saudade e tudo o mais que me veio à cabeça. Só interrompi os frenéticos rodopios quando meu fôlego se exauriu. Então, com o peito colado ao pescoço do perplexo eqüino, olhei para aquela que se apossara de minha vida para todo o sempre.

Embora comovida com aquela exuberante e infantil demonstração de afeto, irmã Geovana me pareceu algo tensa. Mas antes que pudesse indagar o que havia, ela desceu graciosamente de sua montada e se jogou em meus braços, sem dizer uma única palavra. O prazer que isso me proporcionou me fez esquecer a tensão que nela percebera e me entreguei a esse abraço com toda a força do meu sentimento. Porém, quando deixei de apertá-la como se estivesse me despedindo dela para sempre e me limitei a estreitá-la com suavidade, notei que irmã Geovana insistia em permanecer agarrada ao meu pescoço, o que veio reforçar minhas suspeitas de que algo efetivamente não ía bem. Mas não a submeti a nenhum interrogatório. Intui que antes de mais nada seria preciso fazer com que ela relaxasse. Murmurei então palavras ternas e acariciei-a como se ela fosse uma criança. Essa estratégia se mostrou eficaz, pois aos poucos minha amada foi ficando menos tensa e ao cabo de uns cinco minutos consegui que ela me olhasse nos olhos. A inquietação que lhe agitava a alma era ainda perceptível, mas num grau menos alarmante.

- Você não pode imaginar como eu gostaria que esse nosso encontro não tivesse nada a atrapalhá-lo...- principiou, com extrema doçura. - Mas assim que você deixou o convento começaram a acontecer coisas tão desagradáveis que eu...enfim...na verdade eu estou aqui muito mais como uma amiga em busca de apoio do que propriamente como...

Por excesso de pudor, irmã Geovana não completou a frase como deveria. Esse hiato, no entanto, só veio reforçar a evidência de que havia de sua parte, em relação a mim, algo mais do que uma simples amizade, o que quase me levou a sair dando cambalhotas pelo lamaçal. Mas consegui me dominar, cônscio de que já esgotara minha cota de debilidade.

- Só o fato de você ter me procurado para partilhar o que te inquieta já é suficiente para que eu me sinta o mais feliz dos homens...- retruquei, inflado de orgulho. - Tomara que eu possa corresponder à sua confiança. Seria terrível para mim te ver regressar ao convento mais aflita do que quando aqui chegou.

- É pouco provável que isso aconteça. Mas se por acaso acontecer, você não deve se sentir culpado ou responsável. Afinal, eu não o procurei imaginando que você poderia resolver os meus problemas e sim para desabafar. Eu preciso muito mais do seu apoio e da sua compreensão do que de eventuais conselhos que você possa me dar.

Essas palavras, proferidas com extrema seriedade, tiveram sobre mim um duplo efeito. Por um lado me tranquilizaram, na medida em que me desobrigavam de encontrar uma solução para os problemas que a atormentavam. Em contrapartida, fizeram com que eu me sentisse um tanto diminuído, já que eliminavam - ou pelo menos não consideravam muito viável - a hipótese de que eu pudesse oferecer algo mais do que um simples amparo. Em suma: me acalmei e me ofendi. Senti-me útil e descartável. Mas tive o cuidado de camuflar essas emoções contraditórias e convidei-a a me acompanhar até a casa.

Quando estávamos quase na varanda me lembrei da existência de monsenhor Flávio. Temendo que sua presença a chocasse - sobretudo se ele já estivesse de pijama - prevení-a de que havia mais alguém na casa.

- Como assim? - perguntou, um tanto perplexa. - Pensei que não havia mais ninguém na cidade!?

- Duas pessoas escaparam. Uma delas, a velha Ecúria.

- A irmã de Ambrosina...

- Você a conhece?

- Infelizmente. Mas espero que você não tenha tido a idéia de...

- Não, é claro. Imagina se eu hospedaria justamente uma pessoa que tentou me matar.

- Tentou...o quê?

- Ela construiu um boneco igualzinho a mim e pretendia me eliminar cravando uma agulha no meu coração. Mas nós conseguimos raptar a réplica no último instante e a enterramos no quintal, numa vala que eu estava cavando para escapar da turba!

Já estava animadíssimo para lhe contar toda a aventura quando percebi que ela não estava compreendendo nada. Eu sem dúvida a atordoara com essas informações e não me espantaria nem um pouco se irmã Geovana estivesse achando que eu havia enlouquecido. Para tranquilizá-la, garanti que continuava mentalmente são e que logo lhe contaria não apenas esse incidente, mas tudo que havia me acontecido desde nossa separação. Mas irmã Geovana, embora não tenha desviado seus olhos dos meus nem por um segundo, me pareceu não haver prestado a menor atenção nessa parte final de meu atabalhoado relato, como se algo que não minha loucura ou lucidez a tivesse monopolizado. E eu não me enganara.

- Desculpe se eu me desliguei do que você dizia, mas é que de repente eu tive a esperança de que...

- Esperança? Como assim?

- Bobagem minha. Seria bom demais...

- Eu não estou entendendo. O que é que seria bom demais?

- Você disse que duas pessoas haviam sobrevivido. Então eu pensei que...ou melhor, eu desejei que essa segunda pessoa fosse alguém que eu amava muito. Mas ela deve ter sido uma das primeiras a tombar no cemitério...

Nesse momento, a porta da casa se abriu e monsenhor Flávio irrompeu na varanda de pijama, segurando com a mão direita uma orquídea e com a esquerda as calças que lhe caíam. Assim que o viu, irmã Geovana gritou seu nome de forma tão curiosa que por um momento fiquei em dúvida se aquela visão - pois era uma visão!? - a agradava ou não. Mas como em seguida ela se jogou nos braços de monsenhor, deduzi que ele deveria ser a pessoa à qual irmã Geovana se referira.

Embora tenha achado comovente o encontro entre ambos, me foi impossível não sentir ciúme de monsenhor, que mereceu de minha amada não apenas uma considerável quantidade de beijos, mas também as palavras mais elogiosas que já escutei alguém ouvir. O comportamento dos dois, cumpre registrar, extrapolava completamente o recato que em geral caracteriza as relações afetivas entre religiosos - só mais tarde vim a saber que uma das muitas causas dessa intimidade se devia ao fato de irmã Geovana, antes de se tornar freira, ter se hospedado durante um mês na igreja. Monsenhor a encontrara chorando na estação, sem saber ao certo se rumava para o convento ou embarcava de novo no trem que a trouxera; vendo-a naquele estado, monsenhor lhe propôs que permanecesse na igreja pelo tempo que julgasse necessário, até que fossem dirimidas todas as dúvidas. E embora irmã Geovana tenha manifestado certa relutãncia em aceitar a oferta, o prelado acabou convencendo-a de que um período de reflexão só contribuiria para que sua decisão, qualquer que fosse ela, não lhe acarretasse arrependimentos futuros.

E aqui eu gostaria de fazer um registro sobre o comportamento exemplar de monsenhor. Ele jamais procurou influenciar a jovem indecisa; limitou-se, quando muito, a prestar alguns esclarecimentos sobre a ordem e os hábitos do convento. E não foram poucas as vezes em que irmã Geovana lhe rogou uma opinião concreta sobre o seu caso, sobretudo nos primeiros dias, quando sua insegurança era ainda pronunciada. Mas monsenhor, se alguma opinião possuía, se absteve de explicitá-la. Aos poucos, convencida de que não obteria do prelado a espécie de ajuda que pleiteava, acabou mergulhando profundamente em si mesma e examinou uma por uma todas as suas contradições. Um mês depois, quando partiu para o convento, estava absolutamente convicta de sua opção - naturalmente que ela não poderia prever que essa opção, dez anos depois, sofreria um grande abalo...

Quando por fim irmã Geovana e monsenhor Flávio se acalmaram e se limitaram a permanecer abraçados, como se estivessem em êxtase, julguei que era o momento de intervir e emiti forte pigarro. Ambos me olharam ao mesmo tempo e ao mesmo tempo sorriram. Meu ciúme, a essa altura, era indisfarçável. Os dois então se aproximaram e me envolveram delicadamente, como se eu fosse um objeto raro ao qual devotavam idêntica afeição. E tão envolvente foi esse abraço que por um momento tive a sensação de que havíamos perdido nossas individualidades e nos tornáramos um só corpo, indissolúvel, algo assim como uma célula cujo núcleo era eu mesmo e da qual faziam parte duas substâncias tão preciosas quanto raras: o amor e a amizade.

Passados alguns instantes, monsenhor sugeriu que entrássemos. Irmã Geovana ficou encantada com o aspecto geral da casa, que inspecionou inteira. Enquanto o fazia, monsenhor e eu permanecemos na sala, quando então aproveitei para perguntar a quem pertencia a granja com a qual minha deusa parecia ter uma relação tão próxima. Ele me disse que pertencera a Ambrosina, que ali recebera a superiora inúmeras vezes para conversar. Disse também que coubera a ele fazer as apresentações, isto mais ou menos um ano após a chegada de irmã Geovana. Completando suas informações, deu-me a conhecer um fato curioso: Ambrosina havia desembarcado na cidade no mesmo dia em que irmã Geovana a deixava, rumo ao convento.

- Se elas tivessem se conhecido nessa época, é bem possível que irmã Geovana não se tornasse freira...

Não sei a troco do quê fiz essa observação, mas monsenhor me pareceu bastante surpreso com a mesma, visto ter aberto desmesuradamente a boca e arregalado os olhos. No entanto, não teve tempo de me pedir os devidos esclarecimentos, pois irmã Geovana retornou à sala nesse instante.

- O seu quarto...está lindo!

Achei que ela só poderia estar se referindo ao quarto ocupado por monsenhor, pois o meu estava na mais absoluta desordem. Meio sem jeito, perguntei:

- Você entrou no primeiro ou no segundo quarto?

- Entrei em todos. No primeiro, certamente, está alojado monsenhor Flávio. No último, "a vida de Ambrosina", como você um dia se referiu aos seus diários. O do meio, portanto, só pode ser o seu.

E me fez um gesto sugerindo que a acompanhasse. Quando entramos no meu quarto, levei um susto: minhas roupas não estavam mais jogadas de qualquer jeito sobre a cadeira; a cama estava impecavelmente feita e em ambas as mesinhas de cabeceira - a cama era de casal - havia dois lindos recipientes com flores! Monsenhor, evidentemente, fora o artífice de toda essa metamorfose. Mas por que se dera a esse trabalho? Apenas para que irmã Geovana tivesse a meu respeito a impressão de um sujeito organizado? Ou será que imaginara que ela poderia querer passar a noite ali?

Na verdade, após ter visto meu encontro com irmã Geovana no pátio, monsenhor resolveu assumir o papel de zelosa alcoviteira, assim como antes assumira o de faxineira. Por isso criou um ambiente ao mesmo tempo delicado e romântico, no qual irmã Geovana e eu poderíamos, se quiséssemos, assumir integralmente o afeto que ele percebeu que nutríamos. Claro está que jamais lhe perguntei por que se empenhara em transformar meu mafuá numa alcova; contentei-me apenas em lhe ser grato para todo o sempre, pois foi nesse cenário que eu vivi a noite mais maravilhosa de minha vida.

Depois de formular para mim mesmo tudo o que acabo de relatar, o que por sinal não durou mais do que um breve instante, contei a verdade a irmã Geovana.

- Realmente, o quarto está lindo. Mas há uma hora atrás você o acharia detestável...

- Por quê?

- Não se atreveria sequer a entrar nele, tamanha a desordem. Monsenhor Flávio é realmente um prodígio. Enquanto estávamos no pátio, ele conseguiu transformá-lo nisto que você está vendo. Todos os méritos cabem a ele. Eu estou tão surpreso quanto você.

Irmã Geovana não fez qualquer comentário. Mas passou a olhar cada um dos objetos com extrema atenção, como se pretendesse fixá-los em sua memória. A princípio estranhei essa atitude, mas de repente, num dos raros momentos de perspicácia de minha vida, julguei compreender o que havia por trás do curioso comportamento de minha amada. A iniciativa de monsenhor Flávio a abalara profundamente, visto que, ultrapassando os limites de uma simples gentileza, revelava uma evidente cumplicidade, algo assim como uma aprovação apriorística de nosso amor. Em resumo: é óbvio que ela concluíra que o quarto fora arrumado para nós!

Quando tornou a se virar para mim, seus olhos emitiam um brilho estranho, enigmático, que subjugou totalmente os meus. Nesse momento me lembrei do sonho que tivera com Ambrosina, cujo olhar, se não me engano, descrevi como capaz de "radiografar a alma" e intuí que viveria de novo a mesma experiência, só que desta vez acordado. É claro que não posso garantir que irmã Geovana tivesse a intenção de percorrer-me as entranhas, mas que elas se sentiam percorridas, quanto a isso não resta a menor dúvida.

Mas de repente, e para meu alívio - ainda que estivesse magnetizado - irmã Geovana parou de me olhar de maneira radiográfica e voltou a exibir o mesmo ar de encantamento que tanto me havia fascinado pouco antes na sala. Em seguida, deu um passo em minha direção, tomando minhas mãos com extremo desembaraço.

- Vamos para a sala? Monsenhor pode estar aflito, imaginando coisas...

A forma encantadoramente cínica com que irmã Geovana proferiu essa frase me fez rir. Sendo o riso, como o medo, extremamente contagiante, em poucos segundos ríamos os dois às gargalhadas. E foi assim que retornamos à sala e logo monsenhor aderiu ao nosso descontrole, sem saber o que o gerara. Quando finalmente conseguimos nos dominar, irmã Geovana se acercou de monsenhor, abraçou-o carinhosamente e murmurou:

- Obrigado, monsenhor.

Durante toda a hora que se seguiu, monsenhor Flávio e eu nos limitamos a ouvir as surpreendentes revelações feitas por minha amada sobre o clima que se instalou no convento tão logo o abandonei - mas antes forneceu a monsenhor as informações indispensáveis acerca do período em que lá permaneci, para que ele pudesse melhor compreender o que narraria a seguir. Em resumo, acontecera o seguinte.

Semibreve e suas compoarsas não se conformaram com o fato de irmã Geovana ter me aceito como hóspede e passaram a desenvolver uma vasta gama de atividades sorrateiras, que incluía coação e espionagem. No primeiro caso, procuravam detectar entre as paretidárias de minha amada aquelas que lhes pareciam passíveis de serem influenciadas e então tentavam convcencê-las com argumentos - se estes revelavam-se insuficientes, partiam para ameaças físicas. Não foram poucas, infelizmente, as que trocaram de lado.

No que diz respeito à espionagem, puseram-se a vigiar os passos de irmã Geovana, objetivando demonstrar que sua hospitalidade não passava de um pretexto para me manter ao alcance do que denominavam "impulsos bestiais". Informada do que se passava, irmã Geovana resolveu me afastar não apenas de si própria, como também de todas as irmãs, exceção feita àquela que me servia as refeições e arrumava meu quarto, para ver se controlava os sórdidos rumores que corriam entre aquelas paredes.

Entretanto, nem isso foi o bastante. Semibreve e Cia. espalharam que meu súbito isolamento não passava de uma farsa, pois meu quarto possuía uma passagem secreta que levava ao de irmã Geovana. Indignada, minha amada reuniu toda a comunidade no mesmo dia em que eu parti e depois de rebater todas as acusações, desafiou Semibreve a provar a existência da aludida passagem secreta. Para sua surpresa, o aleijão corcunda aceitou o desafio e propôs que todas as irmãs fossem imediatamente comprovar a veracidade do que afirmara. Uma hora depois, quando voltaram a se reunir, irmã Geovana era a própria imagem da derrota: havia de fato a tal passagem!

Aproveitando-se do impacto causado pela existência do que ousou chamar de "túnel da devassidão", Semibreve propôs inicialmente a imediata destituição de irmã Geovana de suas funções de superiora, alegando que lhe faltavam predicados morais para continuar a exercê-las. É claro que a proposta transformou a assembléia num mercado árabe. Todas as irmãs falavam ao mesmo tempo, a maioria aos gritos e não foram poucas as que trocaram bofetões e unhadas. Quando finalmente as mais sensatas conseguiram acalmar as mais exaltadas e esperava-se que um debate civilizado resolvesse a questão, a medonha corcunda lançou uma segunda e ainda mais terrível proposta, que consistia em escorraçar irmã Geovana do convento, não sem antes inflingir-lhe uma punição à altura de suas faltas.

Ante a brutalidade e absurdo da nova proposta, até mesmo as irmãs que ainda seriam capazes de sacrificar a própria vida por minha amada mantiveram-se paralisadas, incapazes de esboçar qualquer protesto. Sentindo-se então senhora da situação, a antiga superiora ordenou a algumas de suas asseclas que confinassem irmã Geovana num pequeno quarto, que durante sua gestão era utilizado com freqüência como uma espécie de solitária, onde as irmãs que ousavam questionar qualquer determinação sua passavam às vezes várias semanas e que irmã Geovana, tão logo asusmiu o posto máximo no convento, mandara lacrar.

Já estava minha amadfa cercada por um bando de hienas e prestes a ser arrastada para o lúgubre calabouço quando irmã Ocampo, dando mostras de formidável coragem, se apossou dos dois cajados que sustinham a entrevada criatura - como eu já havia feito uma vez, lembram-se? - e desfez o famigerado assédio a cajadadas, distribuindo golpes tão certeiros que ao cabo de poucos minutos todas as que haviam ousado se aproximar de minha deusa nada mais faziam do que apalpar ferimentos e choramingar em torno da abominável Quasímoda, que outras partidárias tentavem erguer com cuidados de arqueólogo. Porém, ao perceber que a passividade de irmã Geovana - que parecia não estar entendendo nada do que se passava - poderia estimular um novo ataque, irmã Ocampo bradou:

- Pelo amor de Deus, Geovana, diga alguma coisa ou estaremos perdidas!

E se afastou alguns passos, mantendo os cajados de prontidão. Mas tal precaução se revelou desnecessária, pois de súbito minha amada, como que recobrando a consciência, proferiu um discurso tão inflamado que ninguém se atreveu a mover um só músculo do próprio corpo, muito menos levantar qualquer objeção à defesa apaixonada que fez de sua honra e integridade - não nos esqueçamos de que seus sentimentos por mim surgiram a posteriori e ela só apareceu no meu quarto duas vezes: a primeira para me desejar felicidades pelo meu aniversário, e depois na véspera de minha partida, quando então nos beijamos. E finalizou o soberbo improviso propondo a todas as irmãs que refletissem durante uma semana acerca da conveniência ou não de ser mantida no cargo. Findo esse prazo, a comunidade voltaria a se reunir e cada irmã anunciaria em voz alta a conclusão a que havia chegado. Computados os votos, prevaleceria a vontade da maioria. Em seguida, retirou-se para os seus aposentos, em meio a um silêncio que gritava. E deles só saiu para vir ao meu encontro.

Monsenhor Flávio se mostrou menos surpreso do que eu com os fatos narrados. Conhecendo o caráter abominável da abjeta corcunda e o ódio que devotava à minha amada, não achou nada de muito extraordinário que ela engendrasse toda uma pérfida trama para prejudicar sua sucessora. O que lhe causou espanto foi a quantidade de irmãs que a ela haviam aderido e que representavam, em sua opinião, uma ameaça concreta de retorno aos tempos de obscurantismo. Irmã Geovana conseguira, em menos de dez anos, abalar as estruturas aparentemenmte sólidas sobre as quais a ordem estava assentada desde tempos imemoriais, ao propor uma nova avaliação do papel de uma religiosa no mundo moderno. Abstendo-se de mencionar aqui todas as suas lutas, suas muitas vitórias e alguns poucos fracassos, citarei apenas um exemplo de sua coragem, lucidez e determinação.

Não aceitando que as irmãs fossem proibidas de manter contato com o mundo exterior, o que em sua opinião as convertia em seres inúteis, irmã Geovana não descansou enquanto não conseguiu convencer suas companheiras de que essa atitude em nada contribuía para tornar os homens mais felizes e que o compromisso com a felicidade tinha que ser prioritário. Sustentou ainda que a idéia de que as pessoas deveriam penar na Terra para que depois o Senhor as recompensasse no paraíso não passava de uma manobra que visava favorecer os poderosos, em detrimento de uma maioria que vivia esmagada por falsas crenças e impregnada de falsos temores.

Essa batalha durou exatamente um ano e a vitória final de minha amada contribuiu para que o convento se modificasse, pois na medida em que as irmãs romperam o isolamento em que viviam e passaram a participar mais ativamente da vida da cidade, as antigas e inócuas conversas que mantinham foram substituídas por vivas discussões sobre os problemas da comuniudade e o que poderia ser feito para solucioná-los. Naturalmente que algumas irmãs, fascinadas pela perspectiva de uma vida ainda mais atuante ou por se perceberem carentes de uma verdadeira vocação religiosa, acabaram deixando o convento, o que levava à loucura a facção mais ortodoxa da ordem. Mas minha deusa não se aborrecia nem um pouco, pois para ela sempre que o convento perdia uma irmã insatisfeita, o mundo ganhava uma cristã convicta. E quando a acusavam de estar trabalhando não para o fortalecimento da ordem, mas para sua extinção, irmã Geovana respondia que se a ordem não conseguia conviver com o livre-arbítrio, então era melhor que fosse extinta mesmo.

No momento presente, no entanto, o prestígio de irmã Geovana já não era o mesmo, em que pese ter conseguido impor sua proposta de votação. Monsenhor, extremanmete perspicaz, deu uma opinião muito interessante a respeito do que estava se passando:

- O que está em jogo não é propriamente sua conduta, mas a da própria Igreja. Aquele mosntro e você são como símbolos: ela, da velha Igreja, com todas as deformações que a caracterizam; você, da nova, com todas as suas aspirações libertárias. Portanto, optar por você ou por ela significa assumir uma postura não apenas diante da religião, mas igualmente da História. E isso, sem dúvida, é assustador.

Irmã Geovana e eu concordamos integralmente com sua interpretação dos fatos e insistimos para que monsenhor aventasse hipóteses sobre seus possíveis desdobramentos. Mas o prelado, alegando cansaço, avisou que iria dormir. Antes, porém, de retirar-se, aproximou-se de irmã Geovana e lhe deu um forte abraço, perguntando em seguida a que horas gostaria de levantar.

- Antes do sol nascer...- respondeu minha deusa.

- Eu te chamo...- disse o prelado, e depois de me brindar com um sorriso curioso, desapareceu.

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