sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Realismo Mágico

David Lodge


O realismo mágico - a interferência de acontecimentos fantásticos e impossíveis em uma narrativa realista - é um efeito associado em particular à ficção latino-americana contemporânea (encontram-se exemplos na obra do colombiano Gabriel García Márquez, por exemplo), mas ocorre também em romances vindos de outros continentes, como os de Günter Grass, Salman Rushdie e Milan Kundera. Todos esses autores viveram perto de grande turbulência histórica e conflitos pessoais pungentes, que, a seu modo de ver, não se prestam à representação em um discurso realista tradicional. Talvez a pouco traumática história recente da Inglaterra tenha levado os autores ingleses a se manter no caminho do realismo tradicional. O elemento fantástico foi trazido de fora até a nossa ficção, mas ainda assim foi adotado com grande entusiasmo por alguns romancistas ingleses genuínos - em sua maioria, mulheres de posicionamento forte em questões de gênero, como Fay Weldon, Angela Carter e Jeanette Winterson.

Como desafiar a lei da gravidade foi e continua sendo um grande sonho impossível, não é surpreendente que imagens de voo, levitação e queda livre ocorram com freqüência neste tipo de romance. No "Cem anos de solidão" de Márquez, um personagem ascende aos céus enquanto põe a roupa lavada para secar. No ínício de "Os versos satânicos", de Salman Rushdie, os dois personagens principais caem agarrados um ao outro de um avião que explode, cantando, e aterrissam, sem nenhum arranhão, em uma praia inglesa coberta de neve. A heroína de "Noites no circo" de Angela Carter é uma trapezista chamada Fewers, que tem lindas plumas úteis não apenas para compor um figurino de palco: também são asas de verdade, que lhe permitem voar. "Sexing the Cherry", de Jeanette Winterson, apresenta uma cidade flutuante com habitantes flutuantes.

Milan Kundera foi um dos muitos jovens tchecos que viram com bons olhos o golpe comunista de 1948, certos de que o novo regime promoveria um admirável mundo novo de liberdade e justiça. Logo ele se desiludiu, "disse algo que seria melhor não ser dito" e foi expulso do Partido. Suas vivências posteriores serviram de matéria-prima ao seu primeiro romance, "A brincadeira" (1967). Em "O livro do riso e do esquecimento" (1978), o autor explorou as ironias públicas e as tragédias pessoais na Tchecoslováquia do período pós-guerra com uma narrativa mais solta e mais fragmentária, que flerta com o documentário, a autobiografia e a fantasia.

O sentimento de exclusão vivido pelo narrador, afastado da convivência humana e do Partido, a impressão de ter se tornado uma "não pessoa", é simbolizado pela exclusão da roda de estudantes que dançam dia após dia celebrando os aniversários aprovados pelo Partido. Ele se lembra de um certo dia em junho de 1950, quando "as ruas de Praga mais uma vez estavam repletas de jovens dançando em círculos. Andei de uma roda à outra, me aproximei deles o quanto pude, mas negaram-me a entrada". No dia anterior, uma representante socialista e um escritor surrealista haviam sido enforcados como "inimigos do Estado". O surrealista, Zavis Kalandra, era amigo de Paul Éluard, na época um dos mais celebrados poetas comunistas no mundo ocidental, capaz de salvar a vida do artista. Mas Éluard recusou-se a intervir: ele estava "ocupado demais dançando na enorme roda que circundava todos os países socialistas e todos os partidos comunistas do mundo; ocupado demais recitando seus lindos poemas sobre alegria e irmandade".

Ao perambular pelas ruas, Kundera de repente encontra o próprio Éluard dançando em uma roda de jovens. "Não havia dúvida. A celebridade de Praga. Paul Éluard!". Éluard começa a recitar um de seus poemas idealistas sobre alegria e irmandade e a narrativa "decola", tanto em termos literais quanto metafóricos. A roda de dançarinos desprende-se do chão e começa ,a flutuar pelo céu. O acontecimento é impossível. Mesmo assim, suspendemos nossa descrença, pois a imagem expressa de forma poderosa e comovente as emoções que vinham se preparando nas páginas anteriores. A imagem dos dançarinos alçando-se aos ares, levantando os pés ao mesmo tempo em que a fumaça das duas vítimas cremadas ergue-se no mesmo céu, simboliza o autoengano estapafúrdio dos camaradas, a ansiedade por declararem-se puros e inocentes, a obstinação em não enxergar o terror e a injustiça do sistema político a que servem. Ao mesmo tempo, expressa a inveja e a solidão do personagem do autor, para sempre afastado da euforia e da segurança dessa dança coletiva. Uma das características mais atraentes de Kundera é que ele nunca reclama para si o título de mártir e nunca subestima o custo humano de ser um dissidente.

Não sei como é essa passagem no texto original em tcheco, mas ela funciona muito bem em tradução, talvez graças ao brilhante apelo visual. Kundera chegou a dar aulas de cinema em Praga por um tempo, e essa descrição evidencia um senso de composição cinematográfica no modo como a perspectiva alterna entre o personagem aéreo de Praga e o olhar desejoso que o narrador lança de baixo para cima enquanto corre pelas ruas. A roda de dançarinos voadores funciona como um efeito especial. Quanto à forma, a passagem consiste em uma frase imensa; as diferentes orações são como uma seqüência de tomadas cinematográficas unidas pela simples conjunção e em uma sucessão fluida que se recusa a priorizar seja o sentimento de ironia, seja o sentimento de perda do narrador. Ambos estão ligados de modo inseparável.
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Artigo extraído do livro "A arte da ficção", Editora L&PM POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga

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