segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer

(1984)


CAPÍTULO XIII


Dois dias depois lá ia eu sacolejando ao lado de irmã Vôncia, na mesma carroça em que transportara a vida de Ambrosina. O colosso manejava com extrema perícia os cavalos, que pareciam ter consciência da força da natureza que os guiava e não ousavam de desobedecê-la. Além disso deveriam estar algo intrigados, pois irmã Vôncia cantava a plenos pulmões uma canção estranhíssima, cuja tônica era a ausência de melodia. Eu também estava intrigado, não tanto com a canção em si, mas com a euforia da giganta. Até hoje não sei se ela procurava me insuflar um pouco de alegria - eu assumira um ar triste, para não levantar suspeitas - ou se simplesmente festejava de forma descarada a minha partida.

Em todo o caso, cantava. Antes assim, pois eu tinha uma infinidade de coisas para pensar que teria que adiar se minha condutora resolvesse entabular uma conversa. Estava vivendo uma atmosfera de sonho. Os acontecimentos haviam tomado um rumo tão imprevisto que escapavam a qualquer previsão que eu pudesse ter feito. Se a simples confirmação de que irmã Geovana me amava já teria sido suficiente para me deixar de cama, o fato de ela, além disso, ter arquitetado todo um elaborado plano para me manter ao seu alcance me deixara totalmente desequilibrado. Este desequilíbrio se deve ao meu monumental complexo de inferioridade. No fundo, custava-me admitir que conquistara, única e exclusivamente por meus próprios méritos, uma mulher admirável, preferindo creditar ao acaso ou à sorte todo o mérito em questão. E no entanto, até mesmo a própria vida eu colocara em risco por causa dessa paixão desenfreada...

Quanto chegamos à estação, faltavam 15 minutos para as três da tarde. Se o trem estivesse no horário, dentro de um quarto de hora o veríamos surgir. Irmã Vôncia continuava aos berros e agora agitava numa das mãos um envelope. Como sua cantoria já estava me dando nos nervos, perguntei se enviava notícias suas a algum parente. Sempre cantando, como se estivéssemos num musical, ela me informou que era uma carta para as autoridades, na qual irmã Geovana comunicava a tragédia e pedia auxílio. Essa informação me deixou bastante apreensivo, na medida em que a cidade seria invadida não apenas por quem de direito, mas também por uma turba de curiosos, fanáticos, gente que se alimenta de catástrofes, turistas, carpideiras profissionais e mais uma infinidade de pessoas.

Quanto aos jornalistas, o que fariam com um material tão rocambolesco? Duvido que acreditassem na versão de irmã Geovana. E ainda que a julgassem plausível, a deturpariam até fazê-la parecer-se com tudo, menos com a verdade. E se resolvessem vasculhar a cidade em busca de sobreviventes? Fatalmente acabariam me encontrando, logo a mim, a única testemunha ocular de toda a tragédia!? Aí seria o caos: teria que justificar a ocupação de uma propriedade que não me pertencia; inventar uma desculpa para não ter procurado as autoridades (mesmo que não houvesse uma forma efetiva de fazê-lo), preferindo aguardá-las comodamente instalado; convencer a todos que a versão de irmã Geovana era verdadeira etc. Enfim, teria que me virar pelo avesso para não ser considerado suspeito e conduzido algemado para a capital. E ainda que não fizessem nada disso, eu seria forçado a sair da cidade. Afinal, nada justificaria minha permanência nela. E era esta a hipótese que mais me aterrava: como suportar a ausência de irmã Geovana? E se ela, com o passar dos dias, começasse a me esquecer? Quem poderia me garantir que quando tornássemos a nos encontrar ela não me trataria como a um estranho? A única saída seria encontrar uma maneira de não ser descoberto e continuar na cidade. Mas, como?

A chegada do trem me trouxe de novo à realidade. Assim que ele parou, irmã Vôncia foi até a locomotiva entregar a missiva ao condutor. Mas o pobre homem ou era surdo ou não conseguia entender nada, pois logo o colosso começou a ameaçá-lo de morte, caso ele não colocasse o trem em movimento em cinco minutos - em marcha-ré, bem entendido. Nesse meio tempo, três tímidos passageiros abandonaram o único vagão aberto ao público e começaram a caminhar pela plataforma. Mas não haviam dado nem vinte passos quando deram de cara com irmã Vôncia, que deixara a locomotiva com o ar de quem havia cometido ou estava prestes a cometer um hediondo crime. Assim que os viu, a giganta avançou na direção deles com tamanha determinação que os coitados, intuindo que corriam sério risco, voltaram correndo para o vagão e com suas tralhas se taparam. Então, irmã Vôncia se virou para mim:

- Agora é a sua vez, senhor Aquino!

E me indicou a entrada com um gesto que pretendia ser gracioso, mas que qualquer hipopótamo executaria sem esforço e com idêntico resultado. Quando me viu instalado, deu um urro, o trem um apito e se pôs em movimento. Os três passageiros rezavam, sepultados por suas bagagens. Eu só carregava comigo uma pequena mala, que nada continha e abandonaria no próprio trem. Essa idéia partira de irmã Geovana, que sabendo que eu teria que caminhar um bom trecho até chegar à granja, resolveu despachar na frente minha verdadeira mala e a vida de Ambrosina, como creio já haver relatado. Mas como eu teria que sair do convento com alguma bagagem para evitar que o colosso desconfiasse de alguma coisa, deixou no meu quarto uma maleta vazia com a recomendação expressa de que eu, ao carregá-la, simulasse que estava cheia. E que não me desgrudasse dela um só instante, pois se irmã Vôncia a tocasse fatalmente quereria saber que coisas seriam essas que eu carregava e que não pesavam nada.

Em resumo: um plano simples e eficaz. Se fosse eu, teria armado um esquema tão complicado que acabaria fracassando. Aliás, nós, homens, somos um desastre em nossa obsessão de sempre optar por estratégias mirabolantes. Penso mesmo que no dia em que a espionagem internacional estiver totalmente entregue às mulheres, o mundo não terá mais segredos. Primeiro porque elas conseguirão devassar, devido ao senso prático que possuem, todos os redutos onde estivessem guardados. E depois porque acabarão contando umas às outras as respectivas descobertas, o que logo converteria o mundo num gigantesco e eletrizante salão de beleza. Mas, retomemos a narrativa.

Passados cinco minutos, resolvi pular do trem. Como um dublê de cinema, projetei meu corpo no espaço e aterrissei na relva, procurando amortecer a queda com uma série de rolamentos, que na verdade não a amorteceram em absoluto, muito pelo contrário, só fizeram piorar o baque. Teria sido bem mais simples saltar em pé, já que o trem não andava a mais de 20 quilômetros por hora. Mas não: resolvera me transformar num rocambole só porque isso poderia conferir ao meu salto uma plasticidade que ele não precisaria ter. Essa bravata, diga-se de passagem, me custou contusões generalizadas, de natureza sobretudo esfolantes.

Ao atingir a granja, já era noite fechada. No entanto, meus problemas apenas começavam. Por mais que me empenhasse não conseguia abrir a porta. A chave se recusava peremptoriamente a entrar na fechadura e quando o fazia, não girava. Experimentei com uma mão, com a outra, com as duas, mas a maldita parecia firmemente decidida a me proibir repouso e segurança. Como estava certo de que irmã Geovana não me daria a chave errada, imaginei que poderia haver um outra porta, nos fundos, e às apalpadelas saí à sua procura.

Quando a encontrei, repeti com ela o mesmo procedimento, obtendo idêntico resultado. Desesperado, sentei-me na terra úmida e comecei a pensar em minha amada, esforçando-me ao máximo para estabelecer contato com ela. Se conseguisse, ela poderia enviar de volta a resposta salvadora, utilizando-se do mesmo mecanismo. Afinal, se ela me dera a chave, deveria conhecer o macete que a fazia girar, a menos que o tempo houvesse danificado a fechadura, o que não me deixaria outra alternativa a não ser a de arrombar a porta ou uma das janelas - pela chaminé é que eu não me meteria em hipótese alguma, pois assistira a um filme no qual um gatuno tenta fazê-lo e fica entalado no meio do caminho, sofrendo antes de morrer uma cruel e ridícula agonia.

Apósa alguns minutos de intensíssimos esforços, concluí que o fracasso da operação se devia à postura que adotara, muito mais parecida com a de um nordestino em beira de estrada do que com a dos seres transcendentais que habitam, como as cabras, as mais inacessíveis montanhas. Postando-me então como um monge do Tibet, comecei a murmurar a palavra "OM" nas mais variadas entonações, porque lera não sei onde que a mesma, quando corretamente utilizada, possuía poderes mágicos. Mas os resultados continuavam nulos. Se alguém se aproximasse de mim nesse momento pensaria que, ao invés de estar tentando invocar uma pessoa, eu padecia de um doloroso problema gastro-intestinal. O meu "OM" estava muito mais para cólica do que para transcendência...

Finalmente convencido do próprio fiasco, relaxei o corpo, sentei-me normalmente e abri os olhos. Ao fazê-lo, quase tive uma síncope: a uma distância de no máximo dez metros, um par de olhos me contemplava fixamente. Não tive a menor dúvida de que o meu "OM" havia funcionado, só que quem o captara não fora irmã Geovana, mas sim, ao que imaginei, um daqueles místicos do Himalaia, que decidira conhecer aquele que, sem ser um iniciado, tivera a ousadia de se utilizar de seus segredos telepáticos. Paralisado de terror, não conseguia comandar uma única molécula do meu corpo. Creio mesmo que até certas funções vitais ficaram em suspenso por alguns minutos - o único sintoma que atestava que eu ainda vivia era o suor que me escorria do couro cabeludo e, principalmente, dos sovacos.

Depois de um tempo que me pareceu uma eternidade, o espectro resolveu vir ao meu encontro - deveria ser bem mais baixo do que eu, mas a suposição de que fosse uma pessoa diminuta não alterava em absoluto o terror que sentia. Num puro instinto de defesa, comecei a pronunciar de novo a palavra "OM", numa tentativa de enxotar a criatura com o mesmo recurso que a trouxera. Mas devia estar articulando a palavra mágica de forma um tanto confusa, pois os olhos se aproximavam sempre e cada vez mais. Entretanto, quando a aparição se achava praticamente em cima de mim, meu organismo resolveu reagir de forma mais pragmática e eu saí em disparada pelas trevas. Contornando novamente a residência, atingi a porta e - pasmem! - consegui abrí-la sem nenhum problema, dentro da casa me trancando e debaixo de um sofá me escondendo.

Assim permaneci, absolutamente imóvel, por umas duas horas, na esperança de que o assombrado monge desistisse de prolongar por mais tempo aquela sessão de terror. Findo esse prazo, me arrastei até uma das janelas e espreitei as trevas. Novamente o pânico: lá estava o par de olhos e, o que é pior, olhando na minha direção. Fui então para a janela situada no lado oposto da sala, mas ao cabo de poucos segundos novamente apareceram as bolinhas fosforescentes. Tive que admitir que a cruel assombração estava decididamente empenhada em me perseguir. Mas - pensei -se ela se conformasse em permanecer no quintal, tudo bem; dentro de poucas horas amanheceria e de dia eu poderia enfrentá-la em condições menos adversas. E foi com esse pensamento positivo que me deitei no sofá e adormeci, não sem antes correr de uma janela à outra umas vinte vezes, só para testar a constância e resistência do abominável monge.

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