terça-feira, 7 de setembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO XI


Durante os onze dias que me separavam da (ao que supunha) inevitável partida, eu praticamente não dormi. Por um lado, a ansiedade me proibia o sono, pois julgava que a qualquer momento irmã Geovana me faria outra visita, quando então - estava absolutamente decidido quanto a isto - lhe confessaria todo o meu amor. Ao mesmo tempo, algo me dizia que ela jamais retornaria ou me convocaria ao seu gabinete, o que me levou a arquitetar planos mirabolantes visando convencê-la a me deixar permanecer no convento mesmo após a chegada do maldito trenzinho. Eu sabia que tal hipótese era remotíssima, mas ainda assim a ela me apeguei como uma náufrago que, julgando-se perdido, de repente consegue se agarrar a um objeto flutuante.

Dentre as quimeras inventadas, a simulação de uma grave doença foi a que mais me encantou, pois pessoas tão ligadas ao Altíssimo jamais enxotariam um moribundo, quaisquer que fossem as normas vigentes. Passei, então, a concentrar-me não numa doença específica, mas em sintomas capazes de causar forte impressão. Depois de intensa reflexão, conclui que febre, vômitos e alucinações fariam parte de minha mazela, visto que produzem grande efeito e conferem ao doente uma certa aura romântica. Satisfeito, consumi toda uma manhã tentando descobrir uma maneira de simular de forma crível os sintomas que elegera. Cheguei até mesmo a ensaiar, como um ator disciplinado, mas finalmente fui forçado a admitir que a farsa acabaria sendo desmascarada, tamanha a minha canastrice. Desesperado, hipotizei uma ação terrorista.

Partindo da premissa de que a única comunicação daquele fim de mundo com o resto da humanidade se dava através da via férrea, pensei em danificá-la num ponto razoavelmente distante da cidade. Impedido de chegar até ela, o trenzinho teria que dar marcha-ré e só muito mais tarde as autoridades enviariam uma equipe - se é que o fariam - para reparar os danos que causara. Mas, como proceder? Antes de mais nada, tinha que encontrar um modo de escapar ao meu confinamento forçado, o que não seria nada fácil. Mas ainda que conseguisse tal proeza, de que forma danificaria a via férrea? Não possuindo dinamite, não poderia fazer saltar os trilhos. E carente da necessária força física, tampouco conseguiria sequer afrouxá-los, ficando portanto descartada a hipótese de um descarrilhamento. Foi aí que me lembrei de Anacleto! Sim, o formidável hirco poderia, com seu poderoso chifre, escavucar o solo e depois enganchar sua protuberância embaixo dos trilhos, utilizando-a como uma alavanca para afrouxá-los. Desde que executada com um mínimo de boa vontade, não havia a menor possibilidade da operação fracassar! O problema era Anacleto querer...logo ele, que amava tanto a inércia e só ocasionalmente renunciava à sua inata tendência à abstração...

Infelizmente, o destino não me concedeu a chance de constatar a eficácia desta quimera, pelo simples fato de que não encontrei um jeito de escapar. Cheguei até mesmo a oferecer variados subornos à irmã Vôncia, desde uma razoável quantia em dinheiro até a possibilidade de ter comigo uma aventura lúbrica - esta última proposta eu a fiz na véspera do dia fatídico, o que permitirá ao amigo leitor avaliar a extensão do meu desespero. No entanto, e por mais incrível que possa parecer, devo à obscena proposta o fato de ter conseguido a tão almejada entrevista com irmã Geovana, a partir da qual desencadeou-se uma seqüência de episódios totalmente imprevista.

Ante a insinuação de que poderia dispor de meu corpo como bem lhe aprouvesse, irmã Vôncia escancarou sua gigantesca arcada de tal forma que supus que meu apelo encontrara eco em seus mais profundos e inconfessáveis anseios. Descontrolada como uma solteirona que, após resguardar-se durante uma vida inteira, se vê na iminência de compensar décadas de atraso mergulhando na mais desenfreada gandaia, irmã Vôncia deixou-se cair no chão, convulcionada por um riso frenético, e começou a rolar, como que espicaçada pelas mordidas de mil faunos. Indiferente aos danos que poderia causar aos móveis e até mesmo às paredes, ela girava como um rocambole e se chocava contra a cama, depois contra a escrevaninha, voltando outra vez à cama e assim sucessivamente. Todo o quarto gemia ante o impacto da monumental figura, que só não me partiu ao meio graças aos meus acrobáticos saltos, através dos quais me livrava da morte por esmagamento. Num dado momento, porém, resolvi acabar com aquela tresloucada e histérica performance. E de uma forma igualmente alucinada: tacando fogo em irmã Vôncia!

Aproveitando um restinho de cachaça ou algo semelhante que ainda havia numa das garrafas, derramei-o na parte inferior traseira do hábito dela e atirei um fósforo aceso. A combustão foi imediata, mas a giganta só a notou quando teve as pernas chamuscadas. Dando então um pavoroso rugido, ela se pôs de pé e fitou apalermada o fogo que começava a se alastrar por suas saias. Como procurasse meu olhar, aproveitei a deixa e bradei, com inflexão de missionário de auditório:

- Corrfe para o chuveiro, oh Vôncia, e apaga enquanto há tempo o demônio que em ti habita! Anda, é Deus quem fala contigo através de minha boca! Moisés se salvou afastando as águas e tu só te salvarás mergulhando nelas! Vai, criatura endemoniada!

A dor física, aliada à pungência de minha bíblica interpretação do fenômeno, acabaram despertando a parva criatura, que, como uma força da natureza, embrenhou-se no banheiro e no chuveiro se refrugiou. Minutos mais tarde, ao reaparecer no quarto totalmente encharcada e com parte do hábito destruído, irmã Vôncia era a imagem perfeita de alguém a quem o destino não facultara a mínima capacidade de raciocínio. Imóvel, fitava-me como a esperar de mim uma explicação que desmentisse a anterior, pois parecia deveras inclinada a acreditar que o demônio realmente se grudara às suas saias - não passava pela sua cabeça que fora eu o responsável pelo súbito fogaréu...

Quanto a mim, enfrentava seu olhar com a serenidade dos que detêm o monopólio da verdade. E assim me mantive até o momento em que ela, após rearrumar o quarto, me lançou uma derradeira e muda súplica. Mas nada obtendo que a reconfortasse, partiu como se a forca já estivesse à sua espera. Assim que ela saiu, atirei-me no leito e gargalhei por um bom quarto de hora, um pouco por ter conseguido pregar uma peça na giganta e outro tanto para adiar o desespero que fatalmente me invadiria, pois não via como capitalizar em meu favor o circo incandescente que armara. No dia seguinte, já não mais duvidava, alguém me escoltaria até a estação - provavelmente a própria irmã Vôncia - e me veria obrigado a partir para sempre, deixando para trás uma promessa de felicidade que jamais se concretizaria. Talvez nem me fosse permitido despedir-me daquela por quem teria sacrificado tudo e a quem nem ao menos pudera declarar o meu amor. Ela certamente o pressentira, já que nenhuma mulher, ainda que freira, deixa de perceber quando está sendo amada.

Entretanto, apenas vê-la e despedir-me não era o bastante: gostaria de me atirar a seus pés, envolver sua cintura com meus braços e confessar a paixão que me consumia, com o rosto imerso em seu ventre. Nessas circunstâncias, vendo-me prostrado de paixão e inteiramente à sua mercê, é até possível que irmã Geovana fosse levada a crer que poderia um dia vir a nutrir por mim um sentimento análogo. E então, quem sabe, talvez se dispusesse a aposentar o hábito por uns tempos e checar na prática a possibilidade de construir uma vida a meu lado. E se isso chegasse a acontecer, se ela me concedesse a oportunidade de demonstrar que poderíamos ser felizes juntos, estava absolutamente certo de que jamais a perderia e que ela nunca viria a lamentar a escolha que fizera!

Mas nada disso aconteceria - pensava -, já tomado por cava depressão. Sentado na beirada da cama, com o olhar fixo num farrapo chamuscado do hábito de irmã Vôncia que se desprendera, eu me limitava a tentar reter na memória os traços, a voz, a altivez e serenidade daquela mulher que nenhum deus hesitaria em eleger como sua musa. E como seria ela - pus-me a imaginar - despida do negro hábito que lhe ocultava as formas? Teria o seu corpo beleza equivalente à de seu rosto? E seus cabelos...seriam longos ou curtos? E de que cor? E como os ajeitaria ao sair do banho? E nas noites de primavera, quando as estrelas picam nossas costas como abelhas de prata...será que irmã Geovana, assim como eu, apreciaria passar horas a fio contemplando o mar, como se fosse possível entender a inconstância de suas marés?

Asssim permaneci, durante horas, em meio a um turbilhão de imagens que me acossavam com o furor das grandes tempestades. E certamente por estar tão absorto é que demorei um bom tempo até me dar conta de que já não estava mais sozinho naquele quarto: postada junto à porta, irmã Geovana me observava com uma expressão cuja mescla de severidade e inquietude chegou a me causar espanto. Al vê-la, erguí-me com a rapidez de alguém surpreendido cometendo uma falta grave.

- Desculpe, irmã...- balbuciei, dando um passo em sua direção. - E estava distraído e não notei que...

- Por que você fez isso com irmã Vôncia? - perguntou de chofre, evidenciando que não dera crédito, como era de se esperar, à estapafúrdia versão que a minotaura lhe apresentara para sua combustão.

Assim inquirido, de forma tão direta e segura, seria ridículo me fazer de desentendido. Portanto, optei pela verdade, ainda que conferindo à minha resposta uma, digamos, grandeza que ela evidentemente não possuía, pois do contrário não teria sido tão perverso com o colosso.

- Deve-se julgar com certa tolerância as atitudes de um homem súbita e injustamente privado de liberdade e companhia.

- Você sabe que não me foi possível encontrar outra solução! - retrucou minha deusa, dando em seguida três passos em minha direção, o que me permitiu constatar que em seu rosto já não havia mais severidade e inquietude, e sim uma aflição que até então jamais testemunhara. Talvez por isso, fato absolutamente inédito, tenha conseguido articular uma frase perfeitamente adequada ao contexto:

- No dia do meu aniversário, ao que me consta, lhe foi possível encontrar uma solução....

Levando-se em conta o passo que dera e os três de minha amada, não mais que um metro nos separavam. Se estendesse a mão, certamente poderia tocá-la. Mas não o fiz, naturalmente. Estava bem mais interessado em tentar captar qual seria a emoção essencial de irmã Geovana. Mas ela não facilitava minha tarefa. A cada momento parecia expressar uma coisa nova, não me permitindo saber ao certo o que sentia. Sugerí-lhe, então, que nos sentássemos. Não por achar que deveríamos necessariamente fazê-lo, mas apenas por acreditar no cinema - assim como eu, o amigo leitor já deve ter assistido a dezenas de cenas em que personagens tensos, postados frente à frente e muito próximos, acabam optando por se sentar, certamente porque um corpo mais relaxado faculta ao espírito a oportunidade de ao menos adiar propósitos mais agressivos, sejam eles verbais ou físicos.

Ao ouvir minha imprevista sugestão, irmã Geovana nada disse, o que me possibilitou a ousadia de conduzí-la pelo braço até a cadeira, na qual ela se sentou com infinita graça - durante este curto trajeto, pela primeira vez me senti à sua altura, chegando mesmo a suspeitar de que poderia estar terminando naquele momento minha longa adolescência.

Quanto a mim, aboletei-me na beirada da cama, cruzei com certa elegância as pernas e assumi um ar que sugeria o de alguém acostumado a lidar com conflitos dessa natureza - o que era absolutamente falso, já que meu coração ameçava desfazer-se, tão descontrolados eram seus batimentos. Em todo caso, aparentava calma e quando nossos olhos voltaram a se encontrar, tive a lisonjeira impressão de que éramos, ou estávamos nos tornando, muito mais cúmplices do que adversários. Era como se ambos admitíssemos que havia entre nós certas coisas que precisavam ser ditas e esclarecidas, cabendo relegar tudo o mais a um plano secundário. E milagrosamente eu estava certo, pois o bizarro caso de irmã Vôncia sequer voltou a ser mencionado, o que me levou à suspeita de que irmã Geovana apenas o utilizara como pretexto para vir ao meu quarto, como o fizera da outra vez valendo-se de meu aniversário. E era compreensível que assim agisse, pois tendo sido ela própria a baixar a determinação que me isolara, não poderia ser a primeira a transgredí-la. A menos que tivesse um motivo suficientemente forte. Mas...que motivo seria esse?

O óbvio dava piruetas diante do meu nariz e me acenava com ambas as mãos, como um chimpanzé amestrado, e eu relutava em admitir o que já não poderia ser negado. Era evidente que irmã Geovana, ainda que conflitada, deveria conhecer perfeitamente os motivos que por duas vezes a haviam levado até o meu quarto. E se em silêncio permanecia, era apenas porque não deveria estar encontrando um modo de verbalizar seus sentimentos. Cabia a mim, portanto, tomar as rédeas da situação, que nada tinha de obscura. Mas não: tal qual um náufrago abobalhado, eu me debatia num oceano de dúvidas...

Finalmente, irmã Geovana se ergueu e após me olhar no fundo dos olhos, como fazem as pessoas profundas e os oculistas, começou a caminhar lentamente na direção da porta. Ao vê-la esgueirar-se silenciosa, tensa e certamente decepcionada, compreendi que se não tomasse uma atitude naquele exato segundo a perderia para sempre. Dando então um formidável salto, alcancei-a ante dela atingir os limites do quarto e sem medir as conseqüências, agarrei-a pelos ombros e obriguei-a a se voltar para mim. Para meu total pasmo, irmã Geovana chorava!? A tristeza abandonava seus expressivos olhos negros e, como que atraída para um destino inevitável, buscava refúgio em belíssimos e entreabertos lábios. Comovido e delirante, não me contive e juntando-me a ela o mais que pude, transferi para o meu rosto toda a dor que no seu havia. Em seguida, mas ainda mantendo-a tão colada a mim como se fôssemos um só corpo, implorei:

- Não me mande embora, por favor! Sem você minha vida não fará o menor sentido. E se for imprescindível que eu parta, então vá comigo. Nós haveremos de ser muito felizes!

Se a natureza tivesse me dotado de uma compleição física mais avantajada, possivelmente irmã Geovana teria sido triturada, tal a força com que a estreitava. Sendo, no entanto, algo esquálido, ela sobreviveu. E assim que afrouxei um pouco meu abraço, travamos o seguinte diálogo, que faço questão de transcrever sem qualquer comentário, como se o texto a seguir fosse uma peça teatral:

- Aconteça o que acontecer, eu jamais vou esquecer o que acabo de ouvir.

- Nem poderia, pois eu repetirei tudo todos os dias.

- Talvez não seja possível.

- Só se você não quiser.

- Não é tão simples assim.

- Deus, que inventou o amor, haverá de compreender.

- Não se trata de Deus, mas de mim mesma.

- Melhor ainda.

- Uma decisão como essa envolve muitas coisas. Significa uma mudança radical na minha vida!

- E daí? Se sua vida tiver que mudar em nome desse sentimento, então que mude!?

- Eu preciso de tempo para pensar.

- Nós não temos esse tempo.

- Eu preciso decidir de cabeça fria.

- Então me encontra esta noite no terraço...

- Eu estou falando sério!

Nesse momento, soaram passos no corredor. Irmã Geovana estremeceu, como se um perigo iminente a ameaçasse. Em seguida, depois de me lançar um rápido olhar, sussurrou:

- Então está bem: às dez horas, no terraço! - e abandonou rapidamente o quarto, me deixando num estado de tal felicidade que, descrevê-lo em palavras, é tarefa muito acima de minha pífia habilidade literária. Portanto, isto significa que a conclusão deste capítulo fica a cargo da imaginação do amigo leitor...

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