quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Os problemas do Gestual

Odette Aslan


Na formação tradicional, a educação corporal ocupa pouco lugar. Em aulas particulares, o professor trabalha só um aluno, atirando-lhe do lugar onde está e entredentes o começo e o fim de uma réplica necessária ao encadeamento; o aluno encadeia com base na palavra e não na situação; como poderia representar? Não há parceiro. Dão-lhe uma vaga marcação: levante-se, avance em direção ao público. A maioria dos professores do Conservatório de Paris é de especialistas na arte de "dizer". Em 1920, Adolphe Brachart reclamava uma aula de mímica a fim de mostrar aos jovens alunos que "eles possuíam cabeça, braços, olhos e pernas, de que fazem uso em mil incidentes da vida cotidiana e de que recusam a servir-se no teatro".

Por muito tempo faltaram na França cursos apropriados e métodos, mesmo que embrionários. No exercício do ofício, não havia encenação propriamente dita, o jogo da atuação e as atitudes eram submetidas a pré-julgamentos, a proibições. As senhoras eram cilhadas em espartilhos, os senhores estrangulavam-se em colarinhos falsos, e a criada uniformizada estava a rigor em todas as situações. A disposição frontal do palco italiano não era feita para arrumar as coisas.

Evreinoff lembra, além das instruções tiradas de manuais de retórica que se haviam espalhado por toda a Europa e Rússia, a proibição de dar as costas ao público para sair de cena, o respeito à "cruz cênica" (os pés deviam apresentar as pontas separadas) e a posição ereta, com um pé na frente e o outro colocado um pouco atrás. Sarah Bernhardt, ao representar "Fedra" pela primeira vez na Comédie-Française, foi severamente repreendida por um velho assinante das récitas pelo fato de ter saído de costas para o público.

Em compensação, Antoine ficou indignado ao ver que Mlle Reichenberg e M. Prud'hon, hipnotizados pela ribalta, evitavam cuidadosamente olhar um para o outro enquanto representavam "La Parisienne" neste mesmo teatro. Entre as duas guerras (1919-1939), afirma Pierre Brisson, na Comédie-Française:

Era preciso que o monólogo de Agripina terminasse de pé, de frente para o público, ao mesmo tempo em que afastava o véu púrpura com uma das mãos e suspendia a outra para o vazio. Era conveniente que, nesse preciso momento (quando se tratava de uma societária efetiva e destacada da Comédie), uma ramo de rosas caísse aos pés da triunfante.

Nem se tem conta das histórias de guerrinhas em que dois atores, cada qual querendo tirar vantagem numa cena, faziam manobras sutis, recuando ao fundo para obrigar o parceiro a representar de perfil. Se as pessoas se abandonavam à exuberância dos gostos em certos países, em outros procuravam maior sobriedade. Tcherkassov relata que alguns atores, para aprenderem a economizar os gestos, costuravam a ponta das mangas do paletó nos primeiros ensaios.

Em seu esforço de renovação da arte do ator, Jacques Copeau propôs-se a estudar a continuidade e a coordenação dos gestos dos diferentes membros. Decidiu, ao fundar sua escola do Vieux-Colombier, deixar os alunos afastados do texto o maior tempo possível, "retirar-lhes o texto de sob os pés, como um escabelo, para ver o que sabem fazer", segundo a sugestão de Louis Jouvet, então bem jovem. Inspirou-se na Commedia dell' Arte e nas pesquisas de seu contemporâneo Emile Jaques-Dalcroze.

Por ter sido o ator francês durante demasiado tempo um artista só da palavra, Copeau propôs-se fazê-lo adquirir conhecimento anatômico e domínio muscular. A cisão ator-bailarino-cantor sofreu os primeiros ataques, a pesquisa do teatro dito "total" se enceta. Notemos de passagem que o cantor e o bailarino se depararam com problemas análogos aos do ator.

Após a codificação estabelecida por Noverre, no século XVIII, o bailarino acabou conquistando extremo virtuosismo, de que abusou. Havia perdido o elo necessário entre a motivação interior e a linguagem do corpo. O cantor cultivava a voz e considerava o corpo apenas como uma caixa de ressonância. Glück, que colaborara com Noverre, condenava a falta de emoção interior dos cantores.

Por fim veio Delsarte e, depois dele, Jacques-Dalcroze. Foi interessando-se pelas experimentações de ambos que Copeau e Dullin, em sua época, e Grotowski, em nossos dias, puderam imprimir progresso à técnica corporal do ator; quanto aos coreógrafos modernos americanos, todos eles se colocam sob a égide de François Delsarte, professor italiano que ensinou em Paris e cujo método só foi publicado através dos escritos de seus discípulos.


As pesquisas de Delsarte

François Delsarte (1811-1871), ator-cantor cuja voz foi arruinada por maus professores do Conservatório, renunciou completamente à carreira de intérprete e, procurando nova orientação, deu mostras de curiosidade eclética. Ele observou como se exprimem os sentimentos na vida real, interessou-se pela estatuária antiga, assistiu a aulas de anatomia. Daí acabou por estabelecer um conjunto de preceitos que ensinou principalmente de 1839 a 1859, em Paris. A seu "Curso de Estética Aplicada" vinham tanto pintores, escultores, compositores, advogados, padres, como atores e cantores. Contribuiu para a formação de Rachel, de Bizet, que era seu sobrinho, do Abade de Notre-Dame etc. E formulou dois grandes princípios: "A Lei da Correspondência" e "A lei da Trindade".

"Lei da Correspondência": a cada função do espírito corresponde uma função do corpo, a cada grande função do corpo corresponde um ato do espírito. Para Delsarte, o gesto representa mais que a palavra. Exprime mais, e vem do coração. Está ligado à respiração, desenvolve-se graças aos músculos, mas só pode existir sustentado por um sentimento ou uma idéia. Os gestos são emanados de nove regiões diferentes, divididas em três focos (abdominal, epigástrico e torácico). Todas as suas observações levam ao número três ou a múltiplos de três, de onde deduz a Lei da Trindade, sem que tenha partido de uma concepção cristã ou metafísica (de Trindade).

Delsarte confidenciou a Victor Cousin: "Não foi a religião que me levou à arte, mas sim a arte que me levou à religião". Do mesmo modo que há o Pai, o Filho e o Espírito Santo, os órgãos, os movimentos, os sentimentos, se apresentam três a três. Esse procedimento parece agora um pouco forçado e só cabe pensar a respeito da definição: "A voz é uma mão misteriosa que toca, envolve, acaricia o coração", que a escolha dos termos não é no caso muito rigorosa. São preferíveis observações do seguinte gênero:

* nas pessoas de ação, os movimentos começam pelos membros;

* nas pessoas de pensamento, os movimentos começam pela cabeça;

* nas pessoas de coração, os movimentos começam pelos ombros.


Delsarte estudou o corpo, músculo por músculo, falange por falange, estabeleceu relações entre os movimentos do corpo e os do espírito. Observou com justeza que, se o homem revela o seu ser por meio da Arte, cumpre-lhe conhecer-se perfeitamente e controlar-se. Praticava o relaxamento e a concentração. Recomendava vencer o medo de cair e o medo em geral, como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba o fazem igualmente em nossos dias. Um de seus discípulos americanos, Steele Mackaye, adicionou ao sistema de Delsarte exercícios de ginástica, o que ele não desaprovou.

O perigo da divulgação das idéias de Delsarte foi que as pessoas se apoderaram dos gráficos publicados nos Estados Unidos para imitá-los de maneira banal. Com tal sentimento, o corpo toma tal posição, portanto seu eu tomo tal posição, exprimirei tal sentimento. Steele MacKaye deu em 1871, em Boston, um recital em que executou gamas de expressão facial. Seu rosto passava de satisfação ao prazer, à ternura, ao amor, até a adoração e voltava ao desprazer até o ódio e fúria. No século XX foram os coreógrafos americamos os que melhor compreenderam as idéias de Delsarte, desembaraçando-as de qualquer idéias de pathos ou clichê.

Um discípulo de Delsarte, Kete Ulbrich, achava-se em Viena quando Emile Jaques-Dalcroze lá esteve e Dinah Maggie aventou a hipótese de que isto talvez tivesse resultado uma influência sobre a futura elaboração da rítmica dalcroziana. Ligados ou não na origem, o sistema de Delsarte e a rítmica pesaram muito na estética comtemporânea.

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Fragmento extraído do livro "O ator no século XX", lançado na França em 1994 e agora traduzido para o português por Rachel Araújo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. Editora Perspectiva.

Um comentário:

  1. Oi Lionel, bem interessante o artigo. Tive aulas com a Rachel na EAD.
    Estou dirigindo um espetáculo que estreia dia 08 de setembro do Glaucio Gill, OS VISITANTES, se puder dá uma passada no nosso blog:
    www.osvisitantes.wordpress.com
    Abraço!!

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