quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Os criminosos na obra shakespeariana

Eurico Ferri


A descrição psicológica mais genial e bela dos três tipos de criminosos nos é dada por Shakespeare, em três dos seus dramas: "Macbeth" (criminoso nato), "Hamlet" (louco criminoso) e "Otelo" (criminoso por paixão). A obra de Shakespeare é uma mina de riqueza inesgotável. Não somente os críticos de arte, como juristas nela têm encontrado dados e documentos do maior interesse.

Mas é principalmente o psicológico que é admirável em Shakespeare: John Falstaft e Shylock são, segundo o crítico Georges Brandes, a mais perfeita encarnação do humor e da cupidez usuária, da qual o grande poeta conheceu as piores torturas, no dizer do mesmo crítico. E, para os criminalistas, os três famosos homicidas shakespearianos são documentos humanos onde uma arte perfeita se alia a uma observação científica rigorosamente exata.

Macbeth é uma personagem histórica. Este aventureiro escocês matou, em 1010, o rei Duncan, para se apossar do trono da Escócia e foi, em 1057, assassinado pelo filho de sua vítima. É este o tipo acabado de criminoso nato, produto monstruoso da neurose epilética e criminal. E, com efeito, na tragédia de Shakespeare, sujeito, desde o seu nascimento, à epilepsia psíquica ou larval, a menos aparente das formas da terrível neurose, em que se produz somente uma inconsciência momentânea e muitas vezes despercebida, equivalente psíquico das convulsões musculares em que todo mundo pensa, quando se fala em epilesia.

"Não se mexam", diz Lady Macbeth aos convidados surpresos pela estranha atitude do seu real anfitrião: "Não se mexam, nobres amigos: meu senhor é amiúde sujeito a este estado, desde sua juventude. O acesso dura um instante apenas e ele voltará a si". E, à maneira dos trágicos gregos, Shakespeare exprime por um símbolo as tendências inatas de seu herói - esta disposição íntima da qual a vida aventurosa do criminoso é uma manifestação em três quartas partes inconsciente. A aparição das feiticeiras e suas predições substituem o decreto do Destino ou o oráculo dos anciãos.

Há também, na tragédia inglesa, uma outra intuição psicológica, dessas que contradizem as regras da psicologia ordinária e, por conseqüência, escapam aos observadores superficiais, pois estes projetam sempre, na consciência do criminoso, idéias e sentimentos que supõe serem oportunamente aproveitados por ele.

Mas o gênio do artista e a paciente e multiforme pesquisa do sábio, descobrem no homicida nato, sob a a aparência normal e malgrado a ausência de uma loucura real, tendências e estados de alma bem diferentes das manifestações de um espírito são. Nem bem mata o rei Duncan, Macbeth entra em cena, com um polegar sangrando, e conta à sua mulher tudo aquilo que ele experimentou antes e depois do asssassinato.

Tommaso Salvini, grande e inolvidável intérprete de Shakespeare, publicando num jornal literário (1883) as "Interpretações e raciocínios sobre algumas obras e algumas personagens de Shakespeare", julgou esta possante cena pouco natural, porque, como diz ele, "o primeiro cuidado de um criminoso é o de esconder seu crime".

E seria assim se os homicidas possuíssem a nossa providência, o nosso equilíbrio mental e...o nosso fervor ao crime. Mas, estudando-os de perto, têm-se que convir que eles são, nesse ponto como em tantos outros de seu ser físico e moral, bem diferentes do que somos nós.

Revelações imprudentes, sobretudo após um assassinato, inverossimilhantes como pareçam a um homem normal, são um dos dados mais seguros da psicologia criminal. São mesmo muito freqüentes e servem para denunciar o assassino bem mais cedo do que a sagaz intervenção dos agentes de polícia, tão vivamente pintados nos romances judiciários.

Muitas vezes, também, um assassínio é precedido de discursos comprometedores e de ameaças. No homicida nato, a idéia de uma ação perversa não sofre nenhuma repugnância íntima: corresponde, ao contrário, às suas afinidades mentais, e ele fala complacentemente, como um bom trabalhador, do seu trabalho. E quanto ao criminoso por paixão, sua natureza expansiva lhe impede a dissimulação e as suas intenções se manifestam malgrado ele próprio, como escapa o vapor quando excede a força das válvulas ou, segundo as palavras de Manzoni, como escapa um vinho novo de um barril carcomido.

Esta projeção de um sentimento ordinário na alma do criminoso fazia com que meu mestre de Direito Penal, Pietro Ellero - hábil teórico dos índices de culpabilidade - dissesse que as manifestações imprudentes antes do assassinato deviam ser consideradas como provas de não culpabilidade. Pois, dizia ele, "para facilitar um crime e fugir de sua punição, dois motivos de grande importância, o delinqüente tem um supremo interesse em se ocultar" - o que é exato para a psicologia normal e não o é, contudo, para a psicologia criminal.

E quanto às revelações imprudentes após o crime, revelações que um outro grande artista, Ariosto, havia descrito nos famosos versos "O culpado...que, sem ser coagido, se denuncia estupidamente a si mesmo", os anais judiciários provam abundantemente que a cena imagina por Shakespeare é totalmente verdadeira.

Digamos aqui, entre parênteses, que a verossimilhança muitas vezes nos induz a erros. Ela é quase sempre oposta à verdade e nos faz cometer muitas faltas nas salas de Justiça e nos julgamentos comuns, não menos errôneos, da vida cotidiana.

Há na cena de Macbeth, tão maravilhosamente verdadeira, como que uma espécie de crepúsculo nevoento, astriado de cores estranhas pelo sol que se põe: o artista que pretendesse reproduzí-lo fielmente seria taxado de inverídico. Mas compete ao gênio ver do alto aquilo que o senso comum, superficial e distraído, não percebe e julga falso, pois, como disse tão bem Rousseau: "É preciso ser muito sagaz para notar o que nos envolve habitualmente".

Para terminar o caso de Macbeth, quero anotar ainda uma intuição de Shakespeare que as mais recentes descobertas da antropologia criminal confirmam de modo mais completo. Ele nos pinta Lady Macbeth mais fria e impassivelmente feroz que seu marido. Ora, a antropologia criminal nos ensina que se as mulheres cometem menos crimes, elas são, salvo nos assassínios cometidos por paixão, mais cruéis, mais obstinadas na reincidência, menos suscetíveis de se arrepender do que os homens. Sua maior delicadeza de sentimentos é ainda uma das afirmações verossimilhantes mais falsas da psicologia comum.

Assim, no possante drama de Shakespeare, Lady Macbeth é, antes dos seus acessos de delírio, mais desumana que seu marido, esta personificação tão completa, todavia, do criminoso nato. E, enfim, suas dolorosas alucinações contrastam maravilhosamente com sua precedente obstinação de inspirar o regicídio ao marido hesitante, não por escrúpulo de consciência, mas por crença de cair o trono após a morte do rei.

É muito fácil estudar, segundo os dados da psicologia criminal, os dois outros célebres homicidas shakespearianos: Hamlet e Otelo. Para estes, também, se têm freqüentemente equivocado os critérios insuficientes e incompletos da psicologia comum. Muitos, ignorando os próprios elementos da criminologia, viram em Hamlet, este louco criminoso, um homem que perdeu a razão à força de fingir loucura: esta opinião foi sustentada, inclusive, por De Zerbi.: "Certos críticos, perturbados por velhos prconceitos espiritualistas, negam a loucura de Hamlet. Explicam a desordem da sua inteligência por uma predominância muito marcada de certas faculdades intelectuais e por um estado de anemia."

Se ele termina por se decidir a matar o rei, é, dizem eles (certos críticos), unicamente porque o assassino de seu pai queria matá-lo, a ele mesmo, no seu duelo com Laerte, envenenando a arma de seu adversário e pondo veneno no vinho. "As maquinações, as elaborações de Hamlet não foram suficientes para produzir a catástrofe final, e se o rei morre, é sobretudo graças a um concurso de circunstâncias independentes da vontade de seu sobrinho". (D'Alfonso, La personnalité d'Hamlet, Rivisa Italiana di Filosofia, janeiro de 1895).

Não: Hamlet é um criminoso louco. Sua loucura lúcida é daquelas que escapam aos observadores superficiais, pois não provocam delírios furiosos ou incoerentes; mas não escaparam ao olhar de águia do "psicólogo" inglês, o próprio Shakespeare. A táboa dos sintomas psico-patológicos, em Hamlet, não pode ser mais característica. Sua simulação de loucura, que os não iniciados tomam por um capricho ou expediente do poeta, corresponde maravilhosamente aos dados da ciência positiva, pois se o senso comum costuma dizer: "quem finge loucura não é realmente louco", na realidade esta simulação é muito freqüente nos alienados. E Hamlet é um destes loucos lúcidos, tendo de tempos em tempos, consciência de sua moléstia: ele fala da mesma na sua carta a Oféfia e exclama, após ter apunhalado Polônius: "Não foi Hamlet quem o matou, foi sua loucura!".

Embora seja lúcida e raciocinante, a loucura em Hamlet não é menos real. Quer não tenha sido ele levado ao assassínio por um motivo ignóbil, quer mate para vingar seu pai, tal ato não deixa de ser o índice de uma personalidade doente, de uma loucura: os crimes dos loucos têm muitas vezes um móvel confessável e lógico. E, de outro lado, o assassinato gratuito e absurdo de Polônius, por sua estranheza e inutilidade, seria suficiente para provar a impulsividade irracional de Hamlet, pois o velho, do seu esconderijo atrás de uma tapeçaria, não teria podido surpreender nenhum segredo comprometedor.

Otelo, o homicida por paixão, talvez não corresponda sempre à verossimilhança banal e superficial, mas ele é intimamente verdadeiro: é uma consciência prescrita nas suas profundezas pelo gênio seguro e vidente de um grande artista. Entretato, de Macbeth a Hamlet, de Hamlet a Otelo, há como que uma regressão do extraordinário ao ordinário. Poucas pessoas adivinham um criminoso nato sob a aparência de Macbeth; muitos reconhecem em Hamlet um espírito desequilibrado e todas vêem em Otelo a encarnação, já proverbial, do criminoso por paixão.

Esta impressão fica ainda mais clara quando, aos dados habituais da psicologia comum, se ajuntam aqueles, mais exatos, mais característicos, da psicologia criminal propriamente dita. Pois, se menos anormal que Macbeth ou Hamlet, Otelo é, contudo, um assassino e, por conseguinte, uma consciência doente, que pertence à psicologia criminal e não à psicologia normal. E isto confirma o seu suicídio, no fim da tragédia. Por uma profunda intuição da verdade, Shakespeare não admitiu esta reação imediata após o acesso de violência, sintoma específico do criminoso por paixão, nem em Macbeth, nem em Hamlet.

O criminoso nato se suicida também algumas vezes, mas em condições bem diferentes. Nele, a insensibilidade física e moral é tal que ele chega, às vezes, como o selvagem, a atrofiar o instinto de conservação. Seu suicídio tem lugar muito tempo depois de cometer um crime e sem que tenha relação de causa e efeito. Sua indiferença em face da morte, em face mesmo da guilhotina, seu estoicismo aparente provém de uma causa patológica; e sua insensibilidade apática não tem nada em comum com a serenidade austera do mártir, sacrificando a um ideal honesto, sobre o cadafalso da vergonha - ou antes, da glória - uma vida voluntariamente quebrada, malgrado a revolta do instinto. No homicida por paixão, o suicídio cumprido ou simplesmente tentado é a reação imediata do senso moral momentaneamente abafado por uma crise psicológica.

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O presente artigo, aqui um tanto reduzido, foi extraído de Les criminels dans l'Art et la Littérature, Paris, 1908, e consta da revista Cadernos de Teatro nº 115/1987, tradução de Maurício Vasques. Cumpre, no entanto, registrar a Nota da Redação da revista, quando da referida publicação: "Este artigo está sendo publicado neste número dos C.T. mais pela sua curiosidade e valor histórico do que por seu rigor científico, corroído que foi por quase oitenta anos de um saber psicológico acumulado".

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