sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VIII


A primeira etapa da expedição consistia em atravessar a enorme planura. E ela ficou registrada em minha memória como um dos momentos mais tranquilos e felizes de minha vida. A tranquilidade surgiu como decorrência de minha já conhecida incapacidade de exercer qualquer tipo de comando sobre a raça eqüina. Convencido de que segurar as rédeas seria inútil, já que a parelha ignorava os estímulos que enviava, deixei-as soltas sobre o lombo dos animais, que, possivelmente acostumados a realizar o mesmo trajeto, seguiam na direção que me convinha, o que me permitia apreciar a paisagem totalmente à vontade. Quanto à felicidade, esta deve ser creditada aos deliciosos pensamentos que me ocorreram.

Quando atravessara aquele local pela primeira vez, carecia de uma charrete, estava com o organismo debilitado e tinha como única meta sobreviver, o que só parecia possível se conseguisse chegar até o convento. Nas duas vezes seguintes, motivações nada aprazíveis absorveram-me por completo. Mas agora, considerando-me a salvo e já tendo pranteado os mortos, eu me permitia usufruir a beleza do lugar e tecer inúmeras conjecturas sobre o amor.

Embora não me considere um especialista no assunto - e muito menos o seria na época em que se deram os fatos que estou narrando - estou convencido de que um sentimento, para merecer a alcunha de paixão (e eu me sentia perdidamente apaixonado), necessita que algum tipo de barreira o ameaçe, proíba, o torne condenável, pois só assim encontra forças para superar-se, pulverizar os obstáculos e concretizar-se como fato. O único inconveniente é que quando isto chega a acontecer, quase sempre um dos amantes morre, tanto na vida real como na ficção, possivelmente devido à ausência de energia para viver, enfim, o grande amor, já que grande parte dela teve que ser empregada em árdua batalha contra os preconceitos, a moral e sobretudo a hipocrisia.

No meu caso, a consciência do que acabo de dizer não me impressionava nem um pouco, pois no íntimo nutria a esperança - originalíssima - de que comigo tudo seria diferente. Não sei se já o confessei, mas tenho um temperamento épico. As pequenas causas e as pequenas coisas jamais me sensibilizaram. Apenas para citar um exemplo: quando li a peça "Calígula", do africano Camus, fiquei tão impressionado com o imperador que desejava a lua que encomendei secretamente, à costureira de minha mãe, uma túnica igual àquela que supunha que ele usava em suas peregrinações noturnas. Mas não cheguei a usá-la, pois a dita costureira, certamente inquieta, delatou o fato à minha mãe, que não apenas sustou a encomenda como me tomou o texto. Eu teria, nessa época, no máximos uns treze anos e, como Calígula, já sonhava com o impossível. Mas prossigamos, senão minha natural prolixidade acabará despertando a justa ira do amigo leitor.

Mais ou menos uma hora depois de haver partido, atingi os limites da cidade. Lá chegando, os cavalos interromperam a marcha. Fiquei bastante preocupado, na presunção de que tivessem decidido não seguir adiante - na realidade, eles haviam sido treinados para chegar sozinhos até aquele ponto e daí para a frente a tarefa ficava a cargo do condutor. Mas isso eu só percebi quando, já temendo pelo fracasso da expedição, peguei as rédeas e as agitei. Assombrado, vi a parelha pôr-se em movimento e seguir todas as indicações que transmitia. Confiante, enveredei pela avenida principal, ao fim da qual ficava a casa de Ambrosina.

Mas meu objetivo imediato era achar a estação ferroviária, cuja localização esquecera. Tinha apenas uma vaga idéia de que ficava a pouca distância do término dessa avenida. Portanto, se não quisesse me perder, teria que passar pela porta da espantosa dama e depois me deixar guiar pela intuição. Entretanto, quando lá cheguei, tive uma desagradável surpresa: do outro lado da rua, sentada numa cadeira de balanço, estava a hedionda Ecúria, tecendo um enorme bordado. Embora a soubesse viva, a visão de sua abjeta figura me deu um calafrio. Pensei, inclusive, em contornar o quarteirão, mas desisti ao perceber que ela me avistara e poderia interpretar essa atitude como medo.

Assim, prossegui lentamente, cabeça erguida, tentando demonstrar superioridade. Mas ao chegar à sua frente, o monstro soltou - como de hábito, de boca fechada - uma tonitroante gargalhada. Assustados, os cavalos ameaçaram disparar, mas consegui contê-los graças a um desses milagres inexplicáveis. Em seguida, dirigi violentamente a carroça até a pavorosa bruxa. Ela, imaginando que por trás dessa atitude houvesse uma intenção homicida, ergueu-se de um salto, transformando a cadeira em escudo e agitando nos ares o bordado. Então, com a altivez típica de um cavaleiro medieval, bradei:

- Por acaso esse esgar medonho teve como alvo a minha pessoa?

Os cabelos da velha Ecúria tornaram-se verdes e se eriçaram mais do que as cerdas bravas do javali, como dizia nosso maior damaturgo. O pavor e o ódio disputavam, frenéticos, a posse de seu corpo. Com a cadeira se protegia, com o bordado me ameaçava - nesse momento me lembrei de uma cena do filme "Spartacus" em que o herói enfrenta e vence um negro gigantesco armado de um escudo e uma rede. Na esperança de que a vida continuasse imitando a arte, tornei-me ainda mais agressivo:

- E então, coisa horrorosa? Tens ainda uma chance de salvar a pele. Responde!

Visivelmente impressionada com a minha valentia, ela recuou até a porta de sua casa. Se eu tivesse, nesse momento, um conhecimento mais preciso acerca da extensão dos poderes da velha Ecúria, é claro que teria saído correndo sem o menor constrangimento. Como não o possuía, não vi por que fazê-lo, nem mesmo quando ela, ao transpor os umbrais de sua casa, vociferou:

- Tal acomo a peste, tua chegada dizimou nossa cidade. Mas este cenário te servirá de túmulo, maldito! Não viverás para contar a história de Ambrosina e teu amor, tu o celebrarás no sangue! - e batendo a porta atrás de si, em sua casa desapareceu.

Devo admitir que toda a minha valentia se esvaiu ao ouvir as palavras da megera. Não foram muitas, mas o suficiente para me deixar atônito. Em primeiro lugar, ela me responsabilizava pelo desaparecimento da população, ao comparar-me à peste. Ora, justiça seja feita, eu não tivera nenhuma participação na catástrofe. Alguém poderia, no máximo, censurar a passividade com que a assistira, mas mesmo assim só em termos, pois se descesse daquela árvore certamente esta história não estaria sendo narrada. Portanto, era uma acusação descabida. Depois, ela vaticinou que eu morreria na cidade Quando a isso, é uma opinião como outra qualquer, já que temos que morrer em algum lugar. Mas meu maior espanto deveu-se às duas últimas afirmativas: como poderia estar informada tanto dos meus projetos literários quanto do meu amor?

Ao retomar a marcha, a tranquilidade e felicidade anteriores haviam desaparecido. O personagem medieval, cheio de altivez e coragem, diluíra-se no meu cagaço. Voltava a ser o Gabriel de sempre, personagem sem nenhuma grandeza e com sérias propensões ao ridículo. Em todo o caso, era imprescindível prosseguir no rumo traçado. Assim, após serpentear por uma meia-hora, finalmente avistei a estação. O resgate de meus bens, que se limitavam a uma mala, foi facílimo, pois ela havia sido guardada num armário coletivo cujas principais características eram a imudície e ausência de fechadura. Portanto, só tive o trabalho de abrí-lo e pegar minha mala, que mais tarde constatei estar intacta - graças a Deus, porque ela também não tinha chave.

O retorno à casa de Ambrosina, que aparentava ser tão simples, acabou sendo patético, pois consegui me perder de tal forma que uma hora depois, ao invés de já estar a caminho do convento, encontrava-me fora da cidade, numa espécie de granja. Desolado, mas acalentando a remota esperança de encontrar um sobrevivente que pudesse me fornecer as informações indispensáveis, saltei da carroça e percorri a propriedade. Mas não havia ninguém ali. Ao retomar meu assento no coche, que a esta altura assumia contornos fúnebres, incentivei os cavalos para írem aonde quisessem. No entanto, pouco depois me surpreeendi ao constatar que estávamos de novo na avenida central e bem próximos da casa de Ambrosina. Já deveriam ser umas quatro da tarde.

Antes, porém, da dar início à operação, procurei me cercar de alguns cuidados, temendo uma possível iniciativa criminosa da famigerada vizinha. A primeira providência foi a de inspecionar sua casa. Ela estava toda trancada, inclusive as janelas, dando a impressão de que a velha Ecúria viajara. Como essa hipótese era de todo improvável, deduzi que a hedionda, sensibilizada com o encontro que tivera comigo, procurara se resguardar em sua intimidade, embora devesse estar arquitetando as mais sórdidas vinganças. Por isso prendi os cavalos num poste de luz que havia na calçada, tendo o cuidado de fazê-lo com uma impressionante quantidade de nós. E ao entrar na casa de Ambrosina, levei comigo minha mala, pois a maldita poderia sequestrá-la.

A casa de Ambrosina tinha dois andares e era de construção bem antiga. Em nada se assemelhava àquelas que a rodeavam, pois estas possuíam uma estrutura bem mais simples e eram muito parecidas, o que me levou à suposição de terem sido projetadas por um mesmo e socialista arquiteto. Já a da esperpêntica dama fora construída em estilo clássico e sem ser propriamente grande, se impunha com uma certa majestade. Por falar em majestade, devo admitir que sou muito sensível à existência de colunas numa casa, pois em todas as histórias de reis e de princesas os palácios sempre as exibem. Na casa de Ambrosina elas eram em número de quatro e serviam de sustentação ao gracioso telhado que cobria a varanda, à qual se chegava mediante a transposição de quatro degraus. Esse detalhe dos degraus é relevante na medida em que forçava o visitante a elevar-se para dialogar com a proprietária do imóvel. Em resumo: o exterior da casa de Ambrosina casava perfeitamente com a imagem que dela conservara: sua altivez, não carente de nobreza, encontrava sua perfeita representação nas brancas colunas; sua superioridade, nos sete degraus.

Quanto ao interior, também achei que estava em perfeita consonância com a personalidade dela. Tudo o que havia lá dentro refletia a classe, o humor e a fantasia de Ambrosina Sarmento. Nada parecia ter sido colocado para causar impressão ou dar prazer a ninguém que não ela própria. Desprezando os mais rudimentares conceitos de decoração, ela pendurava chapéus na cozinha, peles no banheiro e usava a sala para se vestir. Como mais tarde vim a saber, Ambrosina funcionava exclusivamente à base de emoção, se lixava para a lógica e obedecia cegamente aos seus impulsos. Isso não significa que não possuísse alto grau de raciocínio e percepção da realiadde, mas ambos pouco significavam quando seu coração batia mais forte por alguém ou por alguma causa. Sabia sempre os riscos que corria e os possíveis sofrimentos que teria que amargar caso determinado plano não desse certo, mas acaba invariavelmente levando-o até o fim. Muitos a julgavam louca, mas como não sou psiquiatra e, além de tudo, o conceito de loucura é não só bastante elástico quanto questionável, prefiro considerá-la, acima de tudo, uma mulher apaixonada. E, obviamente, apaixonante.

Confiando plenamente nas informações que ela me passara naquele sonho, galguei uma curiosa escadinha em forma de caracol e me enfurnei no quarto que minha intuição sugeriu ser o que ela utilizava para dormir. No entanto, e para meu total pasmo, dei de cara com Anacleto, refestelado na cama de Ambrosina!? E o bode tinha um ar tão cínico que por um segundo tive ganas de agarrá-lo pelas barbas e atirá-lo pela janela. Só não o fiz por temor de que, não o conseguindo, fosse eu o atirado lá de cima. Mas essa reviravolta em minhas intenções não me impediu de passar em Anacleto uma descompostura em regra, pois me pareceu um acinte ele invadir uma propriedade e passar a ocupá-la como se fosse sua. Dentre os muitos adjetivos que lhe enderecei constaram os de aproveitador e delirante. Aproveitador porque se aproveitava de uma circunstância especialíssima para usufruir benefícios que normalmente lhe estariam vedados. E delirante porque, ao deitar-se numa cama, dava a entender que não se conformava com sua condição de bode e procurava transcendê-la, agindo como um ser humano.

Como era de se esperar, meu inflamado discurso não provocou em Anacleto a menor reação. Ele se manteve na mesma postura, mascando um tufo de sua asquerosa barba, o olhar perdido no infinito. Ao me convencer de que continuar a admoestá-lo não nos levaria a nada, deixei-o de lado e comecei a procurar os tais manuscritos. Mas estes deveriam ter sido encafifados com incomparável maestria, ao invés de colocados no tal baú (que, por sinal, não existia ou havia sido surrupiado) junto à janela. Olhei em baixo da cama, em cima, vasculhei um velho armário, estive na varanda, em seguida em dois outros quartos, depois voltei à sala, apalpei a grama do jardim. Enfim, fiz de tudo que estava ao meu alcance e nada obtive.

Foi então que, completamente taquicárdico e silvando de forma operística - acho que ainda não mencionei que grandes ansiedades disparam em meu frágil organismo um inquietante processo de asma histérica - regressei ao quarto de Ambrosina, disposto a implorar a ajuda de Anacleto. Mas ele, alardeando inconcebível insensibilidade, teve o desplante de dormir enquanto eu falava, apoiando a cabeçorra nas patas dianteiras e arqueando as de trás, como se estivesse numa sauna. Foi demais para minha frágil estrutura emocional. Esquecendo inteiramente os riscos que corria, avancei para Anacleto disposto a lhe arrancar o chifre. Em minha fúria cega, no entanto, não considerei a existência do tapete sob a cama e numa de suas dobras acabei tropeçando, o que me fez alçar vôo e em seguida cair sobre o leito de Ambrosina, que imediatamente desabou. Anacleto, intuinto que momentos difíceis o aguardavam, saltou sobre minha cabeça e desapareceu.

Demorei alguns minutos para me refazer da patuscada que armara, mas quando isso aconteceu tive uma surpresa que me gerou uma alegria indescritível: o tesouro que tanto procurava estava esparramado à minha volta! Ambrosina, quem sabe por temer a ação de um gatuno contratado pela irmã, a hedionda Ecúria, ocultara seus escritos sob uma tripla camada composta por um lençol e duas pesadas colchas, arrumando-os com tal habilidade que a ninguém ocorreria procurá-los ali. Fizera deles seu colchão e se porventura sacrificara por uns tempos sua coluna, em troca garantira a própria imortalidade.

Embriagado de felicidade, comecei a beijar os manuscritos e a atirá-los para o alto. As decepções, os amores, as alegrias e os medos de Ambrosina esvoaçavam pelo quarto feito borboletas alucinadas. Como um garimpeiro que houvesse descoberto ouro, eu manipulava seu passado com a certeza de que ele me facultaria um futuro sublime. Em resumo, festejava uma mulher pensando em outra - só mais tarde, ao constatar que as folhas não estavam numeradas, é que pude avaliar a extensão de minha leviandade, tendo sido necessárias duas semanas inteiras para que o material recobrasse sua cronologia e eu pudesse iniciar meu trabalho...

Uma vez serenados os arroubos de minha paixão, comecei a reagrupar os papéis. E só quando me preparava para iniciar a operação translado é que me dei conta de algo que até então me passara despercebido. Na embriaguez da vitória, esquecera-me de como a havia obtido!? E esse triunfo eu devia literalmente a Anacleto, que se por um lado me levara à loucura ao dormir enquanto lhe dirigia a palavra, em contrapartida é óbvio que procurara me ajudar ao esticar sua carcaça sobre o leito, sem o que eu jamais teria tido acesso ao legado de Ambrosina. Na verdade, o formidável hirco nada mais fizera do que repetir o mesmo mecanismo adotado no episódio do convento, só que dessa vez, ao invés de me indicar o objeto procurado, sobre ele se deitara. Portanto, a culpa de nossa desavença cabia exclusivamente a mim, que não soubera interpretar uma atitude repleta de boas intenções.

A consciência de que cometera uma injustiça me fez deixar a casa de Ambrosina algo surumbático. Mas, após percorrer um pequeno trecho da avenida, vi a uns cem metros, defronte ao botequim de vidro, uma manchinha clara, estendida no chão, que mais parecia um tapete. Cheio de esperança, atiçei os cavalos, pois algo me dizia que dentro de poucos segundos poderia ao menos tentar resgatar a bizarra amizade que imaginava haver perdido para sempre. Sim, a tal machinha era o próprio Anacleto, que recebeu meu abraço e comovido pedido de desculpas sem alterar minimamente sua expressão indiferente e algo cínica. Mas tal deslize não me incomodou nem um pouco, pois para mim o fundamental é que tivera a grandeza de reconhecer que fora injusto.

Após múltiplos afagos na cabeça e pescoço do espantoso bode, preparava-se para retornar ao convento quando Anacleto se ergueu, como se objetivasse me seguir. Mas apenas caminhou alguns passos e se imobilizou na entrada do boteco. Foi então que tive a idéia de saqueá-lo, pois o unicórnio poderia estar sugerindo a conveniência de armazenar guloseimas, em face, quem sabe, de uma estadia no convento que poderia se prolongar por um tempo superior ao que imaginara. Como disse no final do capítulo anterior, até hoje não sei se agi corretamente, mas o fato é que ao deixar a cidadezinha trazia comigo uma fantásica quantidade de conservas, balas, doces e bebidas, afora presunto, queijo, pão, cigarros e outras iguarias que não vale a pena detalhar. E se minha consciência ficou um tanto incomodada, o mesmo não se aplica ao meu estômago, que viveu quinze dias gloriosos, durante os quais, totalmente isolados das irmãs e de minha amada, dei início à organização da saga de Ambrosina.

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