sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO III


Quando despertei, o dia ainda não triunfara completamente sobre a noite. O céu, sob o efeito das forças tremendas que o disputavam, pegava fogo. Mas não fe foi possível prolongar o prazer que tal visão me causava, pois as lembranças do dia anterior começaram a monopolizar minha atenção. Renunciando a minha postura contemplativa, erguí-me sobre os cotovelos e dei uma olhada a minha volta. A única modificação significativa na paisagem devia-se a um enorme bode de um só chifre, que, deitado confortavelmente a poucos passos de onde eu estava, me fitava dando a impressão de já possuir a meu respeito uma opinião formada. Incomodado com essa petulância e também com seu mascar ininterrupto, que interpretei como deboche, tentei enxotá-lo agitando os braços e emitindo um som ridículo. Impassível, o feioso unicórnio limitou-se a rir, pondo à mostra um par de dentes que uma gosma verde mantinha unido à remelenta barba. Impotente, batizeio-o de Anacleto e, dando-me por vingado, saí caminhando à procura de alguém.

No fundo, ainda alimentava a esperança de encontrar ao menos um sobrevivente, uma pessoa que, por um motivo qualquer, não tivesse comparecido ao enterro de Ambrosina. Mas depois de esmurrar uma infinidade de portas e gritar feito um pocesso tive que me render à evidência de que, por mais espantoso que pudesse parecer, não havia mesmo mais ninguém naquela cidade. Esta constatação, afora uma indizível angústia, me gerou um desejo equivalente de sobreviver e para tanto precisava me alimentar, já que fizera minha última refeição há quase vinte e quatro horas. Para minha felicidade, logo descobri um majestoso e frágil botequim de vidro. Ao impacto de minha fome, estilhaçaram-se suas transparentes defesas e então tive à minha disposição - se considerarmos as circunstâncias - as mais inigualáveis iguarias. De tudo provei e tanto ingeri que, ao desejar mover-me, constatei que não podia fazê-lo, de tal maneira o ventre me pesava. Pressentindo o pior, pedi perdão a Deus por todas as minhas faltas, lamentei rapidamente a inútil vida que levara e cerrei os olhos, disposto a aceitar com resignação o inexorável.

No entanto, encontrei forças para reagir. E esse derradeiro elán me veio do execrável Anacleto: sentado na entrada da birosca, ele ria às gargalhadas do meu trágico destino. O famigerado unicórnio ousara não apenas me seguir - o que por si só já seria imperdoável - como agora se divertia de forma descarada com a minha agonia. Ultrajado, decidi levar comigo para a eternidade esse bode mefistófilo. Reunindo aquele resto de energia que todos possuímos mesmo quando nos julgamos liquidados, comecei a me arrastar na direção do hediondo ruminante. Mas quando estava a meio metro do seu pútrido focinho, uma irresistível ânsia de vômito me fez despejar na cabeça de Anacleto todo o cardápio que ingerira, desmaiando em seguida. Horas depois, ao recobrar a consciência, estava abraçado ao pescoço daquele que involuntariamente me salvara a vida. E que, impávido, continuava a mascar a própria barba.

A partir daí, como se verá no decorrer desta narrativa, Anacleto se tornou fundamental para mim. Digo isto não apenas em função de sua espantosa capacidade de me compreender, mas sobretudo pelas soluções que encontrava para certos problemas que me paralisavam. É curioso, mas até hoje ninguém foi capaz de me dar uma explicação satisfatória para os poderes do formidável hirco. Algumas pessoas se apegam à idéia de um milagre; outras sustentam que ele seria a encarnação de algum sábio; mas a maioria sempre opta por achar que tudo não passa de uma deslavada mentira de minha parte...

Antes, porém, de prosseguirmos, gostaria de deixar claro que o fato de nos compreendermos tão bem nao impediu, muitas vezes, que nossa relação ficasse por um fio, pois o estupendo bode, talvez pela consciência que tinha de sua importância em relação à minha pessoa, de vez em quando tomava atitudes incompatíveis com a amizade que lhe devotava. Uma delas era sumir, sem mais nem menos, quando dele mais precisava. Outra era se fingir de burro, obrigando-me a repetir dezenas de vezes coisas que ele já havia compreendido. Mas, de um modo geral, conseguíamos nos relacionar sem maiores atritos.

A primeira demonstração de sua habilidade decifrativa eu a tive pouco depois de despertar da majestosa sessão de vômitos. Como já disse, recobrei a consciênia abraçado ao meu salvador e cercado dos vestígios de meu festim gastronômico. Depois de agradecer-lhe a gentileza de me ter salvo, afastei-me um pouco daquela poça nauseabunda e pus-me a pensar em voz alta: "Agora eu preciso encontrar o tal convento. Ecúria certamente se recusará a me ajudar. Quanto às freiras, que são pessoas caridosas, treinadas para socorrer o próximo, elas têm obrigação de tomar uma atitude. Afinal, antes de qualquer outra coisa, os mortos precisam ser enterrados. E eu preciso sobreviver..."

Absorto, tecia essas e outras considerações quando notei que Anacleto se afastava, calmamente, como se estivesse inicando um passeio. Eu o teria deixado ir embora, mas ele, após caminhar uns vinte passos, voltou-se na minha direção e me lançou um olhar incrível, cujo sentido parecia ser: "Mas afinal, você não vem?". É claro que fui. Seguí-o, como antes ao corcunda, inteiramente dependente. Só que sem a menor desconfiança. Tanto é verdade que passamos por vária vielas e em nenhuma delas eu temi ser apunhalado. É claro que passar por vielas, naquelas circunstâncias, não serve como grande prova de confiança, já que a cidade estava deserta e portanto não haveria ninguém de tocaia para me esfaquear. Em todo caso, como está mais do que demonstrado, certos lugares nos aterrorizm sobretudo por seu caráter simbólico, independentemente das ameaças concretas que abriguem.

Mas voltemos à peregrinação. Depois de caminharmos por um tempo infinito, comecei a suspeitar que Anacleto me fazia de imbecil. Sim, pois se o olhar que me lançara me pareceu extremamente objetivo, o mesmo não poderia ser dito da estafante caminhada. Já estava mesmo a ponto de interromper a marcha e lançar ao bode as mais pesadas injúrias quando, inesperadamente, me vi diante de um enorme descampado, ao fim do qual, no cume de um pequeno monte, delineava-se os contornos de uma construção antiga. Nesse momento, Anacleto se virou para mim, me olhou de forma paternal, e sem me dar tempo de tecer qualquer conjectura, desapareceu em vigoroso trote. Não me restava, conseqüentemente, nenhuma outra alternativa a não ser a de atravessar, ainda que totalmente encimesmado, a belíssima planura.

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