quinta-feira, 15 de julho de 2010

Uma lembrança leva a outra, a outra...

Lionel Fischer

Outro dia uma aluna me pediu para citar as três coisas de que mais gostava na vida - excetuando filhos, amigos, amigas, teatro, música etc. E, curiosamente, respondi sem um segundo de hesitação: criança, cachorro e velho - de ambos os sexos, naturalmente. E realmente nunca fui "mordido" por nenhuma dessas paixões. Enfim...achei que a jovem aluna se daria por satisfeita com a minha resposta, mas jovens alunas nunca se dão por satisfeitas (graças a Deus!) e ela quis saber minha relação com os idosos. Então lhe contei a seguinte história:

Corria o ano de 1989 e eu trabalhava no Globo como repórter, crítico teatral e também fazia resenhas literárias. Um dia propus ao editor da época, cujo nome não me lembro, fazer uma matéria de comportamento sobre idosos que são colocados em asilos - e aqui não importa detalhar as razões de tal confinamento.

Então, numa tarde domingo - Dia de Visitas - fui num asilo na Tijuca, e para minha surpresa só encontrei os velhinhos e as velinhas, todos arrumadinhos à espera de visitas que não se consumariam. Enquanto os entrevistava, de vez em quando um ia até a porta e espiava o longo corredor arborizado que conduzia ao portão de entrada, na vã expectativa de ver surgir o rosto amado de um filho, uma filha, um parente, um amigo, ou fosse quem fosse. Passados alguns minutos, o velhinho (ou velhinha) retornava para seu lugar, o olhar perdido, completamente órfão de afetos que certamente merecia.

Diante de um quadro que cada vez mais assumia, para mim, contornos trágicos, deixei de lado a entrevista - que acabou sendo publicada - e comecei a contar histórias, a propor que cantássemos, enfim, comecei a agir quase que como um moderno animador de festas infantis - só faltou o som. E no fundo, estava mesmo diante de crianças, que pouco a pouco foram aderindo às minhas propostas com enternecedor entusiasmo.

Quando chegou a hora de ir embora, e para meu pasmo absoluto, todos me pediram que voltasse, alegando que haviam passado horas maravilhosas comigo. Diante disto, perguntei à dona do estabelecimento se efetivamente poderia voltar; não como repórter, mas como...enfim, como alguém que ainda tinha plena consciência do que significa compaixão.

E assim foi feito. Durante um ano, uma vez por mês, chegava lá aos domingos (agora levando som) e fazíamos uma farra: dançávamos, cantávamos, todos contavam suas histórias - fragmentadas, naturalmente, pois a memória não é muito amiga do tempo. Findo esse ano, não voltei mais lá. Durante esse período, alguns velhinhos se foram, outros entraram em seus lugares e a vida seguia - ou deixava de seguir - seu curso.

Findo o breve relato, a obsessiva aluna me fez não uma, mas duas perguntas, que, curiosamente, nada tinham a ver com o teatro: ela queria saber por que a esmagadora maioria de canções de amor são tristes e qual a minha canção de amor favorita. Quanto à primeira pergunta, respondi o óbvio: quem está amando...está amando, e por estar amando não vai querer perder um segundo deste amor componto - admito que essa resposta pode gerar controvérsias. Mas, enfim, foi a que dei.

Quanto à segunda pergunta, não hesitei um segundo: sempre foi e sempre será "Ne me quitte pas", de Jacques Brel, por ele cantada de forma insuperável. A dita aluna não a conhecia e...(MISERICÓRDIA!!!) me pediu para cantá-la. Então, após um momento de hesitação, o fiz discretamente, nas imediações do Tablado, num tom de voz parente próximo do sussurro. Ela achou linda a música, mas como não entendeu uma palavra, me pediu para traduzir a letra. Aí eu declinei delicadamente o convite, adiando-o para uma outra oportunidade.

Curiosamente, passei hoje o dia todo com essa música na cabeça, por razões que desconheço - fosse mais íntimo de meu inconsciente, certamente as conheceria...

Mas certamente muitos de vocês conhecem essa deslumbrante canção, em que um homem faz arrebatadoras declarações de amor a uma mulher e, ao mesmo tempo, ao final de cada estrofe, implora a ela (quatro vezes!!!) para que não o abandone. Quando escutei essa música pela primeira vez, era tão jovem que nem me lembro se já tinha tido uma namorada - mas naquele momento odiei aquela anônima que permanece insensível aos dilacerados apelos que lhe faz o homem. Com o tempo, naturalmente, abençoei essa desalmada, posto que não fosse sua rejeição, a canção não teria sido criada...

E é seu último trecho que mais me toca, pois nele o cara não tem o menor pudor de se entregar completamente, de suplicar, de fazer qualquer concessão que lhe seja exigida, desde que não seja abandonado. Escusado dizer que é total minha identificação com o sujeito, pois também não relutaria um segundo sequer em fazer o mesmo, desde que tomado por idêntica paixão. E caso fosse mesmo rejeitado, faria o luto necessário e seguiria em frente, como sempre fiz - mas não pensem, por obséquio, que as mulheres vivem me mandando embora, porque não é este exatamente o caso.

Enfim...e para não mais alugar vossos belos olhos: reproduzo a seguir o trecho final da música, traduzindo-a para aqueles que AINDA não dominam o idioma de Voltaire.

"Ne me quitte pas (não me abandona)

Je ne veux plus pleurer (eu não quero mais chorar)

Je ne veux plus parler (eu não quero mais falar)

Je me cacherai là (eu me esconderei ali)

À te regarder (a te olhar)

Danser e sourrire (dançar e sorrir)

Et à t'écouter (e a te escutar)

Chanter e puis rire (cantar e depois rir)

Laisse-moi devenir (deixa eu me tornar)

L'ombre de tom ombre (a sombra da tua sombra)

L'ombre de ta main (a sombra da tua mão)

L'ombre de ton chien (a sombra do teu cão)

Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas..."

Mas a celerada...quittou o cara...e nós é que lucramos!!!

Beijos em todos!!!

Um comentário:

  1. Olá Lionel,
    Navegando pela web, pois estou de licença médica e pude me dar a esse luxo, a essa hora do dia, encontrei o seu blog. Adorei a sua história, a riqueza de detalhes e, à medida que ia lendo, via imagens do asilo e dos "velhinhos". Sou fotógrafo amador e, na verdade, estava buscando blogs sobre fotografia e acabei chegando ao seu. Muito obrigado por compartilhar tão belo texto. Voltarei mais vezes.

    Um abraço
    Roberto

    http://clicksderoberto.blogspot.com
    http://riodejaneiropictures.blogspot.com

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