quarta-feira, 30 de junho de 2010

As duas críticas

Bernard Dort

Conhecemos a função tradicional da crítica dramática: policiamento estético, constatação e, sobretudo, publicidade. Durante todo o século XIX e também nos dias de hoje, alguns críticos se consideram como os guardiães das leis do Teatro (teatro com T maiúsculo). Foi, por exemplo, o caso de Francisque Sarcey que, na França, exerceu uma verdadeira legislatura. Ele foi ao mesmo tempo o guardião da "peça bem feita" e o juiz da correta execução do espetáculo. Sua crítica repousava numa certa concepção da essência do teatro e considerava o espetáculo como a tradução cênica de uma realidade específica que existe fora dele. Estas noções estão aparentemente ultrapassadas, mas ainda hoje, mais ou menos conscientemente, são utilizadas por muitos críticos.

Enfim, Sarcey assegurava a publicidade do espetáculo: era ele quem fazia o público ir ou não ir ao teatro. Entre um tal crítico e o público existia um acordo tácito: ambos pertenciam ao único mundo para o qual se fazia teatro, ao mundo burguês. Assim, o crítico encarnava idealmente o espectador médio exemplar. Era ele quem "degustava" o espetáculo. Podia decretar, exatamente como um degustador de vinhos, que aprecia as safras segundo os anos de produção: "Barrault 47 é muito bom, mas Barrault 57, foi um mau ano".

Evidentemente, esta espécie de crítica está em vias de desaparecer. Mas ainda continua a ser praticada e a desempenhar um papel que está longe de poder ser negligenciado. Jean-Jacques Gautier, do Figaro, é exatamente um crítico deste tipo. De nada adianta vilipendiá-lo nem fazer dele o bode expiatório de todas as crises do nosso teatro. A questão é saber de que teatro se trata. Não é Jean-Jacques Gautier que é feroz e mau: ele exerce perfeitamente sua função, segundo sua concepção de teatro. É esta concepção que podemos e devemos pôr em questão.


Transformações capitais

De Sarcey até hoje a atividade teatral foi fundamentalmente modificada. Em primeiro lugar, passou-se da execução cênica à criação teatral. Ora, na maior parte dos casos, a crítica não compreendeu o que foi, o que representa ainda hoje, na atividade teatral, o aparecimento da encenação moderna. O paradoxal é que este fenômeno ainda não foi "integrado" pela crítica e, no entanto, já se fala no reino do encenador como ultrapassado. A crítica ainda vê no encenador apenas um executante superior. O aparecimento da encenação produziu uma noção nova: a de teatralidade, em certo sentido como oposição à idéia do teatro como um gênero particular e também como oposição à idéia da "peça bem feita". Ora, a crítica nem sempre levou em consideração esta teatralidade, à qual corresponde, no domínio literário, e sabemos com que êxito em nossos dias, a noção de literalidade.

Critérios internos não são suficientes para definir a atividade teatral. Ela é também função de critérios externos. Fazer teatro é dirigir-se sempre a alguém, mais exatamente a um grupo ou a uma coletividade, numa situação política e social precisa. Também neste terreno houve uma evolução considerável. Por um lado, o público ao mesmo tempo cresceu e se diferenciou: hoje não mais existe um único público - aquele público burguês em nome do qual falava a crítica do século XIX - mas, sim, vários públicos. Por outro lado, o teatro se descentralizou. Ora, essa descentralização coincidiu com uma centralização da imprensa e, ao menos na França, com o desaparecimento progressivo de uma imprensa regional autônoma.

Enfim, a noção de espetáculo considerado isoladamente foi substituída pela noção do empreendimento teatral: tornando-se assinantes, os espectadores passam a se comprometer não apenas para uma noite mas para uma série de representações. Uma outra forma de diálogo se estabelece entre teatro e espectadores, entre a comunidade teatral e a coletividade. As relações teatro-público não mais se limitam às relações que, no espaço de uma representação, se estabelecem entre palco e platéia. Agora se tornam mais contínuas. O crítico era o crítico de um espetáculo. Agora deve comentar uma sucessão de espetáculos. À descontinuidade sucede uma certa continuidade. Antes, era o crítico que regia a relação palco-platéia que cada peça tornava possível; agora, ele deve encontrar seu lugar numa organização mais ampla: a das relações duráveis entre duas comunidades.


A inércia crítica

Uma certa maneira de exercer a crítica dramática chega, portanto, a seu fim. Nos jornais, sobretudo nos jornais diários, a coluna de teatro cada vez importa menos. No século XIX os críticos importantes dispunham do que se chamava um "rodapé", ou seja, a parte de baixo de uma página: ali publicavam um longo artigo semanal, não necessariamente dedicado a um espetáculo. Podia consistir também num conjunto de reflexões gerais. Eram os colunistas que, dia-a-dia, comentavam os espetáculos. Hoje os críticos são cada vez mais transformados em colunistas: às vezes chegam a escrever até mesmo um artigo por dia.

Mas suas posições, na equipe dos jornais, está desvalorizada: significam menos que os repórteres esportivos e no máximo um pouco mais que aquele que escreve a coluna dos cães atropelados. O espaço reservado a seus artigos também diminuiu. Único entre os críticos de Paris, Jean-Jacques Gautier permanece uma personagem considerada em seu jornal, como antes havia acontecido com Sarcey. É que ainda existe uma adequação entre seu gosto próprio, o gosto de seus leitores e um certo setor do teatro de Paris (citemos por alto o teatro de boulevard -de Grédy e Berrilet a Anouilh, e mesmo Ionesco).

Em compensação, um outro crítico, o do Le Monde, teve seu papel diminuído: isso nada tem a ver com sua personalidade, com suas qualidades ou defeitos, mas refere-se ao fato de que os leitores do Le Monde são hoje menos homogêneos que os leitores do Figaro. E não constituem a clientela de um único setor do teatro. Paradoxalmente este fato está também relacionado com a vontade de informação e de abertura do referido crítico.

Hoje a crítica freqüentemente funciona como um freio. Ela permanece na retaguarda da evolução do teatro. Em vez de descobrir as novas experiências teatrais, não faz mais do que consagrá-las depois que tenham sido descobertas. Desde 1950 a crítica da grande imprensa se dedica somente a avalizar a vanguarda dos anos 50, a descentralização, a influência brechtiana e o teatro de expressão corporal. E sempre com um notável atraso em relação aos acontecimentos.


Uma outra crítica

Deve-se então concluir que a crítica é inútil? Isto seria um paradoxo no momento em que outras artes e sobretudo em literatura, a crítica desempenha um papel cada vez mais considerável, onde a atividade crítica se tornou parte integrante da criação literária. Face a uma crítica de consumo (que é cada vez mais substituída pela publicidade), uma outra crítica é possível e necessária. Ela será ao mesmo tempo crítica do fato teatral como fato estético e crítica das condições sociais e políticas da atividade teatral. Vamos defini-la de um lado como crítica semiológica da representação teatral e de outro lado como crítica sociológica da atividade teatral.

Neste caso o crítico se encontraria numa posição nova em relação ao teatro. Estaria igualmente dentro e fora. É possível encontrar uma aproximação desta função naquilo que os alemães chamam "dramaturgo". Sem dúvida podemos ter dúvidas sobre o trabalho de alguns "dramaturgos" nos dias de hoje. Mas a exigência de um verdadeiro trabalho dramatúrgico se faz sentir cada vez mais. E que é este trabalho dramatúrgico senão uma reflexão crítica sobre a passagem do fato literário ao fato teatral? Uma espécie de crítica antecipada. Aqui o vínculo entre uma nova definição da crítica e o aparecimento da encenação moderna aparece com clareza.

Mas o crítico pode ter ainda um outro papel: o de educar o público. Não no sentido acadêmico da palavra, mas iniciando-o na linguagem teatral, fazendo-o refletir em sua função: a função de público. Brecht gostava de afirmar que existem pelo menos três artes no teatro: a arte do autor, a arte do ator e a arte do espectador. O crítico pode ser aquele que ensinará ao espectador a arte de ser espectador.

Quanto ao mais, estas duas faces de uma atividade crítica são complementares: elas se reúnem numa reflexão sobre o fato teatral global. Aqui, reencontram a própria atividade teatral considerada como representação das representações que nós nos fazemos de nossa sociedade, como crítica vivida destas representações - em resumo, como crítica de nossa ideologia.

Mas o teatro que efetivamente desejo não é aquele que aspira à ação direta nem aquele realizado por uma pequena comunidade fechada nela mesma: é um teatro de representação e de reflexão sociais. Numa atividade teatral desta espécie, a crítica possui um papel capital a representar. Ela é parte integrante da mesma. É um fator essencial de sua dinâmica: o motor deste teatro dialético do qual nos falava Brecht.
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Artigo extraído do livro "O teatro e sua realidade"/ Editora Perspectiva/1977.

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