quarta-feira, 5 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA

"O enxoval"

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Humor e delicadeza no Leblon


Lionel Fischer


Numa época como a nossa, dominada por esta abjeta senhora chamada globalização, tudo o que parece importar é o triunfo do indivíduo, seja a que preço for, o que implica em total descaso pelo outro. No entanto, ainda existem pessoas que acreditam no coletivo, que têm a sapiência de perceber que não existe felicidade plena se esta não é compartilhada, e que o crescimento individual está necessariamente atrelado à parceria que estabelecemos com almas gêmeas. É assim na vida. É assim no teatro.

No presente caso, estamos diante de uma parceria que completa 18 anos. Parceria esta estabelecida entre atores, diretores, cenógrafos, autores, enfim, por pessoas que optaram por iniciar uma trajetória artística estruturada a partir da consciência comum de que possuíam afinidades capazes de materializar na cena seus anseios e inquietações. Estou falando da Cia. Atores de Laura, uma das mais inquietas e brilhantes companhias do Rio de Janeiro. E que, ao atingir sua "maturidade", demonstra de forma inquestionável o espírito que a anima.

Ao invés de realizar um espetáculo grandioso, com muitos atores, o grupo optou por uma peça com apenas três intérpretes (todos fundadores do grupo), escrita por eles e dirigida pelo único ator em cena. Esta é a primeira montagem dos Atores de Laura que não é assinada por Daniel Herz. E a que se deve este fato, em princípio tão inusitado? Poderia escrever 200 linhas a respeito, mas prefiro colocar aqui as palavras do próprio Daniel:

Uma companhia de teatro deve saber se renovar. Acolher o tempo. Ser e envelhecer juntos é uma delicadeza fascinante. Há dezoito anos um grupo se formava e montava 'A entrevista', que retratava buscas e angústias de um jovem de dezoito anos. Por coincidência a mesma idade tem agora este grupo que tem o nome de uma mulher, Companhia Atores de Laura. 'O enxoval' traz essa renovação: é o espetáculo que tem menos atores na história desta Companhia, o primeiro que não é dirigido pelo diretor artístico dos Atores de Laura e o que maior tempo de maturação exigiu, mais de dez anos. Ana Paula, Verônica e Luiz André são Atores de Laura desde a primeira peça. De jovens sonhadores a fazedores de sonhos.

Em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon, "O enxoval" chega à cena com autoria de Ana Paula Secco, Verônica Reis e Luiz André Alvim, que também interpretam os personagens, cabendo a direção a Luiz André.

Baseada em fatos reais, a peça nos mostra o cotidiano de duas senhoras de avançada idade, que moram juntas numa pequena cidade do interior e que administram uma telefônica - na cidadezinha não existem "orelhões". E o que fazem as tais senhoras? Basicamente, o que fazem todas as senhoras nesta idade e inseridas em tal contexto: ora elas implicam uma com a outra, ora se revelam cúmplices, não raro recordam o passado, enfim, tentam como podem minimizar a solidão.

Mas esta é subitamente interrompida por um jovem executivo, cujo carro enguiçara, e que precisa telefonar para um possível empregador. Esta breve aparição, que me permito não detalhar para não privar o espectador de algumas deliciosas surpresas, em nada altera o cotidiano das senhoras, mas ao menos lhe confere alguns momentos que interrompem - e de certa forma iluminam - a rotina de sempre.

Mesclando humor e delicadeza, "O enxoval" é uma pequena jóia dramatúrgica, já que contém ótimos personagens, diálogos saborosos e pertinentes reflexões sobre a vida - mas estas, que fique bem claro, desprovidas de qualquer tentativa de enunciar verdades eternas. E o mesmo humor e delicadeza estão presentes tanto na direção como na interpretação dos atores.

Na pele da dominadora e ranzinza Célia, Ana Paula Secco exibe a melhor performance de sua carreira, o mesmo ocorrendo com Verônica Reis, que encarna Amélia, um tanto submissa, mas possuidora de um humor deliciosamente ferino. E isto se deve, em minha opinião, ao esmeradíssimo trabalho vocal e corporal de ambas, afora a capacidade de materilizar na cena tanto o humor como a inevitável melancolia que acossa as duas personagens. Quanto a Luiz André Alvim, este convence plenamente na pele do jovem executivo, sendo primorosa sua direção - e aqui cabe destacar seu evidente mérito no que concerne à performance das atrizes, assim como sua sensibilidade principalmente no tocante aos tempos rítmicos, fundamentais para a identificação do espectador com o universo em questão.

Com relação à equipe técnica, Ana Paula Secco assina figurinos em total sintonia com as personalidades retratadas, sendo igualmente irrepreensível a cenografia que criou em parceria com o diretor. Este último também responde pela apropriada trilha sonora e pela sensível iluminação do espetáculo, que recomendo com total entusiasmo.

O ENXOVAL - Texto de Ana Paula Secco, Verônica Reis e Luiz André Alvim. Interpretação dos mesmos, direção de Alvim. Espetáculo da Cia. Atores de Laura. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. terças e quartas, 21h.

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