quarta-feira, 7 de abril de 2010

Oscar Wilde
(1854-1900)

Harold Bloom


Wilde fomentou uma considerável tradição oral, em parte, sem dúvida, apócrifa. Seu neto, Merlin Holland, relembra, de modo fascinante, que Oscar Wilde "confessava que vivia sob constante pavor de não ser mal compreendido". Quando, aos 28 anos, Oscar, o Esteta, apresentou-se à alfândega da cidade de Nova York, consta que tenha dito: "Nada tenho a declarar, exceto o meu belo gênio". Se não o disse, deveria tê-lo feito, assim como deveria ter expressado a sua decepção com o Oceano Atlântico: "Não chegou a rugir".

Para W. B. Yeats, Wilde estava sempre representando o papel de Wilde, mas o mesmo se aplica a Lorde Byron, Hemingway e (ouso dizê-lo) ao ilustre Goethe. Merlin Holland atribui ao avô o papel de Fausto, ainda que não fique claro se seria o Fausto de Marlowe, Goethe ou Mann. De vez que meu assunto é o gênio de Wilde, e o divino Oscar é, ao mesmo tempo, protéico e objeto de minha adoração literária ao longo da vida, não vou me restringir a uma única obra, ainda que isso contrarie os meus procedimentos neste livro. O gênio de Wilde aparece com mais força em "A importância de ser prudente" e dois ensaios magníficos - "A alma do homem sob o socialismo" e "A decadência da mentira". Passo a me referir a esses três trabalhos, aleatoriamente, e recorro a outras paragens de sua vida e obra.

O ponto fundamental a ser considerado em se tratando de Wilde foi definido por Jorge Luis Borges: o grande Esteta estava quase sempre certo. A minha profissão suicida, outrora o ensino da literatura ficcional no mundo anglófono, ainda estaria viva, se tivesse aprendido a lição de Wilde: "Toda poesia medíocre é sincera". Infelizmente, é tarde demais, e os melhores alunos, com toda razão, fogem dos docentes que ainda não morreram, a despeito de facções.

Precisamos de Wilde, mesmo nesse momento de fracasso; quem mais pode nos alegrar, em tempos tão sinistros? Descendo o poço de uma mina, em Leadville, Colorado, durante uma visita aos Estados Unidos, Oscar perfurou uma parede e, em seguida, voltou à superfície, acompanhando os mineiros e suas namoradas a um cassino: "Em um canto havia um pianista, sentado ao piano, acima do qual se via um cartaz: 'Favor não fuzilar o pianista; ele faz o que pode'. Fiquei chocado diante da constatação de que a arte medíocre merece pena de morte".

Arte medíocre hoje em dia é estudada em universidade, exaltada na mídia e, supostamente, faz bem à nossa consciência política. Wilde, exato em suas professias, um século após a sua morte, não tem rival, ao descrever a nossa condição literária: "Antigamente, livros eram escritos por homens de letras e lidos pelo público. Hoje em dia, livros são escritos pelo público e lidos por ninguém".

Wilde ilustra os dois principais sentidos da noção de gênio: uma força geradora inata, e um outro eu, que busca e encontra a destruição daquilo que é inato. Um século mais tarde, quando o homossexualismo já não provoca imolação social, Wilde seria obrigado a encontrar algum outro meio de sucumbir, algo além da imaginação. Byron encontrou a rebelião grega, Hemingway as diversas maneiras de "viver a vida até o último instante", até o suicídio; creio que Wilde teria encontrado algum meio ainda mais individualizado. A minha favorita, entre as "máximas para a instrução dos supercultos", é:

Jamais devemos ouvir; ouvir é um sinal de indiferença pelos nossos ouvintes.

Não fui agraciado com nenhum prêmio de magistério, em meio século de carreira, porque acredito na paixão e no raciocínio contidos nesse aforismo. Uma das afinidades mais autênticas de Wilde era com Emerson, de modo especial, o ensaio "Autoconfiança", que repercute tanto em "A decadência da mentira" quanto em "A alma do homem sob o socialismo". Emerson, em "Autoconfiança", afirma tantas idéias ao mesmo tempo, que torna dúbio qualquer comentário, mas, ao que parece, o trecho que mais comovia Wilde era o seguinte:

Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu gênio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: "Capricho". Espero que, em última instância, seja algo superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações.

Capricho é o meio mais seguro para se chegar a ser mal compreendido, mais um objetivo que Wilde herdou de Emerson. Suponho que duas passagens de "Autoconfiança" provocassem em Wilde o mesmo efeito que causam em muitos dos meus alunos:

Em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos descartados: voltam para nós com uma certa majestade alienada.

Assim como as preces dos homens são uma enfermidade da alma, suas crenças são uma enfermidade do intelecto.

No leito de morte, Wilde converteu-se ao catolicismo. As perspectivas sobre conversões efetuadas em leito de morte variam e, vale lembrar, Wilde, durante toda a vida, defendeu a idéia de que Jesus Cristo era, antes de tudo, um artista, e um gnóstico, e o escritor preferia o Evangelho de João, em bases extremamente hereges, como se vê neste trecho de "De profundis":

Ao ler os Evangelhos - especialmente, o de João, ou seja lá de qualquer gnóstico que tenha assumido o seu nome - vejo a constante assertiva da imaginação como a base de toda a vida espiritual e material, vejo também que, para Cristo, a imaginação era, simplesmente, uma forma de Amor, e o Amor era Senhor, no sentido mais pleno da frase.

Wilde lembra-se de ter comentado com Gide que tudo o que foi dito por Cristo podia ser transferido, de pronto, para a esfera da Arte, onde tais noções se concretizariam plenamente. "Uma verdade deixa de ser verdade quando mais de uma pessoa acredita nela" é um dos célebres aforismos wildianos, e não propicia muito espaço para conversões, exceto aquelas efetuadas no leito de morte. A discussão principal sobre Cristo ocorre no texto "A alma do homem sob o socialismo", e, a exemplo do ensaio em sua totalidade, constitui um hino à personalidade, ao autocrescimento. Eis Wilde, no que há de menos irônico e, talvez, menos compreendido:

E, portanto, quem mais vive de acordo com o modelo oferecido por Cristo é aquele que é perfeita e absolutamente autêntico. Pode tratar-se de um grande poeta; ou um grande cientista; ou um jovem universitário; ou um pastor de ovelhas, ou um dramaturgo, como Shakespeare; ou um pensador que reflete sobre Deus, como Spinoza; ou uma criança que brinca no jardim; ou um pescador que lança a rede ao mar. Não importa o que seja o homem, basta que leve a termo a perfeição da alma interior. Toda imitação, seja quanto à moralidade, seja quanto à vida, é falha. Pelas ruas de Jerusalém, hoje em dia, segue um lunático, carregando uma cruz de madeira às costas. Ele simboliza as vidas prejudicadas pela imitação. O padre Damien agiu de acordo com o modelo oferecido por Cristo, quando foi viver com leprosos, porque, ao prestar tal serviço, levou a termo, plenamente, o que de melhor havia em seu interior. Porém, não seguiu mais de perto o modelo de Cristo do que Wagner, quando alcançou a realização da própria alma na música, ou de Shelley, quando alcançou a realização da alma na canção. Não há apenas um tipo de homem. Há tantas perfeições quanto há homens imperfeitos. E, enquanto no que toca ao chamado da caridade o homem pode ceder e se tornar livre, ao chamado do conformismo não se pode, absolutamente, ceder e permanecer livre.

Embora empregue a palavra "socialismo", Wilde tem em mente algo bem mais próximo da visão dos anarquistas catalães que lutaram contra Franco e contra os comunistas, e que preservaram as tradições dos cátaros (gnósticos provençais). A crença mais profunda de Wilde parece ter sido a de que precisamos "viver a vida do próximo, e não a nossa", conceito irreconciliável com o culto à personalidade individualista, mas, tanto quanto Emerson, o autor de "A alma do homem sob o socialismo" deplorava qualquer "consciência tola".

Wilde tinha o gênio do paradoxo, e os momentos mais brilhantes dessa genialidade provocam o apagamento da linha que, supostamente, separa a crítica da criação literária. Eis Wilde, no que há de melhor em sua crítica, em um trecho do ensaio-diálogo "A decadência da mentira", falando atrávés de um personagem, Vivian:

Um grande artista jamais enxerga as coisas como elas, realmente, são. Se assim não fosse, deixaria de ser artista. Tomemos um exemplo atual; sei que gostas de objetos japoneses. Ora, achas que o povo japonês, conforme nos é apresentado na arte, de fato existe? Se pensas assim, é porque não entendes a arte japonesa. O povo japonês é criação deliberada, autoconsciente, de certos artistas. Se colocares um quadro de Hokusai, Hokkei, ou de qualquer um dos grandes pintores nativos, ao lado de uma dama ou de um cavalehiro japonês, em carne e osso, verás que entre eles não existe a menor semelhança. O povo que vive no Japão não difere da média do povo inglês; isto é, são pessoas comuns, que nada têm de especial ou extraordinário. Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo. Um dos nossos pintores mais charmosos esteve, recentemente, na Terra do Crisântemo, com a tola esperança de observar os japoneses. Tudo o que ele viu, tudo que lhe foi possível pintar, foram algumas poucas lanternas e alguns leques.

Ser, a um só tempo, tão sábio e tão espirituoso já é algo bastante raro, mas logo irrompe a verdadeira genialidade, expressa por meio de uma grande asserção: "Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo".

Trata-se de um daqueles trechos memoráveis de crítica que contribuem para preservá-la como gênero literário. Tenho a satisfação de me autoplagiar, observando que esse Japão é a mesma terra distante onde vivem os Jumblies, de Edward Lear, ao lado de Dong, com seu nariz luminoso, Poble, que não tem os dedos do pé, e o mais feliz dos casais: seu Coruja e dona Gatinha. Para lá segue Alice, seja por baixo da terra, seja através do espelho; é, precisamente, o país dos sanduíches de pepino, onde Lady Bracknell confronta Miss Prism. O nome do país encerra a crítica mais elevada:

Eis o que, deveras, constitui a crítica mais elevada: o registro da própria alma. É mais fascinante do que a História, pois diz respeito, simplesmente, à própria pessoa. É mais divertido do que a Filosofia, pois o objeto de estudo é concreto, e não abstrato; real, e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia, pois não lida com eventos, mas com pensamentos desenvolvidos durante a vida; não contempla os acidentes físicos da vida, seja quanto às circunstâncias, seja quanto à morte, mas as inclinações espirituais e a paixão da mente criativa.

Fui informado, há pouco tempo, que um ilustre estudioso do Novo Historicismo e da Poética Cultural, na introdução de um extenso trabalho sobre Shakespeare, registra que o livro por ele escrito é, de fato, sobre Shakespeare, ao contrário de uma obra recente, monstruosa, aparentemente sobre Shakespeare, mas que, na verdade, não passa de mais um capítulo da autobiografia continuada de um velho crítico. Radiante, faço minha a sabedoria de Wilde, ao mesmo tempo em que, espero, evito incorrer no maravilhoso solipsismo de Lady Bracknell, no meu trecho predileto de "A importância de ser prudente", e portanto, em toda a obra de Wilde:

LADY BRACKNELL (Puxa o relógio) - Vamos, querida. (Gwendolen levanta-se). Já perdemos cinco ou seis trens. Perder outros pode provocar comentários a nosso respeito aqui na plataforma.
__________________________
Artigo extraído do livro "Gênio". Editora Objetiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário