quarta-feira, 28 de abril de 2010

O respeito pela Arte de Representar

Uta Hagen


Todos temos opiniões e crenças apaixonadas pela arte de representar. As minhas, só são novas até onde se cristalizaram em mim. Tenho passado grande parte da minha vida no teatro e sei que o processo de aprendizagem nunca acaba. As possibilidades de crescimento são ilimitadas. Eu costumava aceitar opiniões tais como: "você já nasceu para ser um ator"; "os atores não sabem realmente o que fazem quando estão em cena"; "atuar é questão de instinto, não se pode ensinar". Nesse pequeno período, durante o qual também acreditei nesse tipo de conversa, como qualquer outra pessoa que pensa dessa maneira, não tinha qualquer respeito pela arte de representar.

Muitas pessoas, inclusive alguns atores experientes, que expressam tais opiniões, talvez admirem o fato de um ator ter o corpo e a voz treinados, mas realmente acreditam que só se consegue uma experiência mais profunda através do contato com o público. Acho isso parecido com o método "nade ou afunde" usado com crianças em seu primeiro contato com a água. As crianças realmente afundam e não são todos os atores que conseguem evoluir somente com sua mera presença física no palco.

Um jovem pianista talentoso, bem treinado em improvisação, ou que toca de ouvido, poderia ser uma sensação momentânea numa boate ou na televisão, mas é melhor que não se aventure a tocar um concerto de Beethoven para piano. Seus dedos simplesmente não conseguirão. Um cantor pop que tem uma voz pouco trabalhada pode alcançar sucesso semelhante, mas não com uma cantata de Bach. Poderá romper suas cordas vocais. Uma bailarina sem treino não tem qualquer esperança de dançar "Giselle". Poderá distender os tendões. Se tentarem, eles mesmos estragarão o concerto, a cantata e "Giselle", porque se eventualmente estiverem prontos, só lembrarão de seus erros iniciais. Mas um jovem ator mergulhará num Hamlet impensadamente se tiver essa chance. Ele deve aprender que até que esteja pronto, estará prejudicando a si e ao papel da mesma maneira.

Mais do que em qualquer outra forma de arte, a falta de respeito pela arte de interpretar parece brotar do fato de que qualquer leigo se considera um crítico autorizado. Enquanto uma platéia de leigos não discute os movimentos de braço ou o estilo de tocar de um violinista, ou a palheta ou as pinceladas de um pintor, todos eles estarão prontos para dar fórmulas a um ator. Suas tias e os seus parentes vêm ao camarim para oferecer conselhos: "acho que você não chorou bastante"; "acho que sua Camille deveria usar mais rouge"; "você não acha que deveria soluçar mais?". E os atores os ouvem, e criam a noção criminosa de que não é preciso qualquer trabalho, conhecimento ou arte para se atuar.

Uns poucos gênios conseguiram abrir seus espaços nesse mundo do "nade ou afunde", mas eles eram gênios. Intuitivamente acharam uma forma de trabalhar que infelizmente, para eles próprios, seria difícil de definir. Mas mesmo que nem todos possamos ser tão dotados, podemos atingir um nível de interpretação mais desenvolvido do que uma pessoa que tenha vindo do antigo sistema "salve-se quem puder".

Uma da lições mais ricas que tive foi de um ator alemão chamado Albert Basserman. Eu trabalhei com ele como Hilde em "The master builder", de Ibsen. Ele já tinha mais e 80 anos, mas era tão "moderno" na sua concepção do personagem Solness e de suas técnicas quanto qualquer ator com quem eu tenha trabalhado ou assistido. Nos ensaios, adaptava seu jeito ao novo elenco (esse papel já fazia parte do seu repertório há 40 anos). Ele nos assistia, nos ouvia, ajustava-se a nós; entretanto, executava suas ações somente com pequena porção de sua energia cênica.

No primeiro ensaio com figurino, ele começou a atuar plenamente. Tinha uma realidade tão vibrante no ritmo das suas falas e do seu comportamento que eu me senti sumir com aquilo. Ficava esperando que ele chegasse ao final das suas intenções para que pudesse perceber a "minha vez". O resultado foi que, ou eu deixava um grande buraco no diálogo ou eu o cortava desesperadamente para evitar um novo buraco. Eu tinha esperado o trivial "minha vez, depois sua vez". No fim do primeiro ato fui para o seu camarim e disse: "Sr. Basserman, não tenho como me desculpar, mas nunca sei quando o senhor vai acabar!". E ele me olhou espantado e disse: "Eu nunca acabo! Nem você o deveria!"

As influências no meu crescimento, fora os artistas mestres que eu observava e com os quais eu trabalhava, foram muitas. Na casa de meus pais, os instintos criativos e a expressão eram considerados nobres e valiosos. O talento vinha acompanhado por sua devida responsabilidade. Eu fui educada a achar que o trabalho com concentração era uma coisa que trazia a sua própria alegria. Ambos, meus pais, viviam dessa forma e passaram-me esse exemplo. Eles também me mostraram que o amor pelo trabalho não depende do sucesso exterior.

Tive uma transição estranha do teatro amador para o profissional. A palavra "amador" originalmente era o "amante", ou alguém que buscava algo por amor. Agora é sinônimo de diletante; de ator não preparado, ou alguém que busca um hobby ou um passatempo. Quando eu era muito jovem, e mais tarde ainda jovem, era empegada no teatro; era uma amadora no sentido original da palavra. Eu buscava meu trabalho por amor. Depois, o fato de ser paga foi uma consequência desse amor. No mais, ser paga significava que eu estava sendo tratada com seriedade por esse meu amor pelo trabalho. Certamente não estava preparada. Minha força de atriz consistia na minha fé no faz-de-conta. Eu me fazia acreditar nos personagens que me deixavam atuar e nas circunstâncias de suas vidas dentro dos eventos da peça.

Inevitavelmente, no processo de transição e aprendizagem do amador para o profissional, perdi parte do meu amor e encontrei meu caminho adotando as atitudes e os métodos do "teatrão". Aprendi o que agora chamo de "truques", e ficava até orgulhosa de mim mesma. Percebi logo que se fizesse minha última entrada como Nina em "A gaivota" com toda minha atenção voltada para os porquês e finalmente na minha saída, sem dar qualquer atenção para a reação do público, haveria inquietação e lágrimas na platéia. Se, contudo, jogasse minha cabeça para trás bravamente assim que estivesse chegando à porta, receberia uma salva de palmas. Eu escolhi ficar com o truque que me daria os aplausos.

Poderia enumerar páginas de exemplos de como adquirir técnicas de "entradas perfeitas", "lágrimas e risos inventadas", "qualidades" líricas etc., tudo para produzir efeitos exteriores calculados. Achei que era uma genuína profissional que não tinha mais nada para aprender, a não ser fazer eficientemente outros papéis. Comecei a desgostar do teatro. Ir para o trabalho no teatro passou a ser uma obrigação, uma forma rotineira de arrecadar meu dinheiro e minhas críticas. Tinha perdido o amor no faz-de-conta. Tinha perdido a fé no personagem e no mundo no qual o personagem vivia.

Em 1947, trabalhei numa peça sob a direção de Harold Clurman. Ele abriu um mundo novo no teatro profissional para mim. Livrou-me dos truques. Ele não impôs nenhum gesto, nenhuma leitura de texto, nenhuma marcação de atores. No início, ficava completamente desnorteada porque por muitos anos tinha me acostumado a usar marcações exterio-específicas como material para construir a máscara do meu personagem, a máscara na qual eu me esconderia por toda a apresentação. O Sr. Clurman recusava-se a aceitar a máscara. Ele exigiu que eu estivesse no papel. Foi então que o meu amor pelo teatro foi lentamente sendo reaceso, sobretudo a partir do momento em que percebi que deveria renunciar a todas as formas preconcebidas e encontrar em mim mesma a essência do meu trabalho.
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Artigo extraído - e aqui um pouco reduzido - da revista Cadernos de Teatro nº 120/1989. O original foi publicado em "Respect for Acting", McMillan Pub. Co., 1972. Tradução de Gilbran Chalita.

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