sexta-feira, 19 de março de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Do artista quando jovem"

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Ousada apropriação de Joyce


Lionel Fischer

"'Do artista quando jovem' insere-se na continuidade da pesquisa d'Aquela Companhia de Teatro, que tem como objetivo propor novas interlocuções entre teatro e literatura. Depois de Kafka, Göethe e Hesse, 'Do artista quando jovem' tem como ponto de partida a vida e a obra de James Joyce. Em nosso processo criativo situamos o livro 'Retrato do artista quando jovem' no centro de nossa investigação, para traçar a partir daí diálogos internos com a biografia do autor e suas demais obras, além de diálogos com questões contemporâneas relacionadas ao tempo, a memória e a criação. Tal como nos demais espetáculos, 'Do artista quando jovem' não é a adaptação de um romance para os palcos - o que poderia resultar em simplificações forçosas. O que está em jogo neste espetáculo é antes uma multiplicação: deformar, recriar e ativar a partir de nossa percepção criativa, as questões levantadas por Joyce em sua obra e estilo únicos".

Extraído do programa distribuído ao público, o trecho acima expõe de forma clara e objetiva as premissas fundamentais que nortearam a feitura do presente espetáculo. No entanto, dada a sua natureza, tal clareza e objetividade não me parecem de fácil acesso ao público "normal" (se é que existe um público "normal"), e muito menos para os espectadores que pouco ou nada leram da obra do escritor irlandês James Joyce (1882-1941). Seja como for, estamos diante de uma empreitada séria e que não procura escamotear os enormes desafios que se impôs. Em cartaz no Espaço Sesc, "Do artista quando jovem" leva a assinatura de Pedro Kosovski, com Marco André Nunes respondendo pela direção e estando o elenco formado por Dora Pellegrino (Eve/Prostituta/Mãe), Erika Mader (Enfermeira/Atriz), Igor Angelkorte (Stephen Dedalus), Remo Trajano (Maratonista) e Saulo Rodrigues (Adam/Buck/Sacerdote).

Como o texto do programa afirma que o livro "Retrato do artista quando jovem" estaria no centro do processo de investigação e criativo do grupo, vamos a um rápido resumo do original. Este primeiro romance de Joyce, publicado em 1916, narra as experiências de infância e adolescência de Stephen Dedalus, alter ego do autor, e termina com a recriação de seus ritos de passagem para a idade adulta, que incluiríam deixar para trás a família, os amigos e a Irlanda e ir viver no continente. A obra é considerada um "romance de formação", tipo de romance em que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, geralmente passando por fases de sua vida (infância, adolescência, adulta, maturidade).

Ao mesmo tempo, como já foi dito, outras obras do autor, assim como sua biografia, estão mescladas a este ponto de partida. Neste caso, e excetuando-se possíveis especialistas que assistam ao espetáculo, o mais salutar para cada espectador será tentar fazer sua própria leitura e assim encontrar o que de mais significativo possa haver nas cenas fragmentadas de que é feita a montagem, sem tentar "decifrá-la" como se estivesse diante de uma narrativa linear e apoiada numa estética naturalista.

Se assim agirem, é bem provável que os espectadores, ainda que eventualmente sentindo-se algo perdidos, consigam detectar alguns temas fundamentais do texto escrito por Pedro Kosovski, dentre eles o amor, a religião, a arte como possibilidade de transcender ou justificar a vida, o tempo e as armadilhas da memória. Mesmo valendo-se de uma estrutura narrativa bastante complexa, é inegável a qualidade da maior parte dos diálogos e sempre pertinentes as questões levantadas, defendidas por personagens bem mais atrelados ao inconsciente do que à realidade.

Quanto ao espetáculo, Marco André Nunes impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, priorizando quase sempre a estranheza do que uma aproximação confortável com o que está materializado no palco. E no tocante aos atores, todos exibem um bom rendimento, além de nos darem sempre a sensação de que embarcaram de cabeça numa proposta sujeita a todos os riscos.

Na equipe técnica, são de excelente nível a iluminação de Renato Machado, a cenografia e figurinos de Flávio Graff, a direção musical de Felipe Storino e a direção de movimento de Márcia Rubin - quanto ao vídeo de Felipe Câmara, que abre o espetáculo exibindo depoimentos de artistas sobre vários temas, ele é bastante interessante, ainda que algumas vezes não seja possível entender com clareza tudo que nele se fala.

DO ARTISTA QUANDO JOVEM - Texto de Pedro Kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Igor Angelkorte, Saulo Rodrigues, Dora Pellegrino, Remo Trajano e Erika Mader. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.

Um comentário:

  1. Concordo plenamente com o que foi dito. Me expresso aqui como psicanalista, como leitora e estudiosa de Joyce, mas também como expectadora. O espetáculo é composto de cenas fragmentadas, mas que estão muito bem sobrepostas e o segredo é realmente não tentar decifrá-las, pois se chega muito perto, mas não há como apoderar-se. E esse é o sucesso da peça: uma tentativa contínua de mostrar como tudo escapa desde o tempo até o sentido da vida.
    Sentir-se perdido é natural da escuta que se origina de uma psicose. Diálogos primorosos feitos numa adaptação tão difícil e tão complexa foram o que assisti. O inconsciente ganha um amarrado perfeito que nada tem a ver com o real . A estranheza ronda e incomoda o telespectador. E essa é a função, realizada com primor: sacudir, desconstruir, refazer, repetir,... fazer pensar.
    Maravilhosa e original a entrada com os depoimentos apaixonados de outros artistas, tão jovens ainda no seu caminhar, mas cuja proposta é a mesma e se entrelaça com a garra dos atores em cena e de toda a produção.
    Aproveito aqui solicitar cartazes da peça para que possa expor na instituição psicanalítica a qual participo e para expor meu desejo de participar de alguma forma, da produção de futuros textos ou de ensaios de Joyce ou afins.
    Recebam meus parabéns de pé!!!
    Maria Lucia Gomes
    Psicanalista
    21 8112-8784

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