quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Hamlet
como fracasso artístico

Francis Fergusson


O ensaio de J. M. Robertson sobre Hamlet (Hamlet) juntamente com o ensaio de T. S. Eliot (Hamlet e seus problemas), aparentemente inspirado na leitura do de Robertson, podem ser tomados como típicos das objeções que muitos críticos fazem à obra: não conseguem encontrar qualquer unidade, ou consciência intelectual, na peça como um todo. Robertson, admitindo que ela constitua um soberbo entretenimento, que contenha personagens brilhantemente construídos e passagens de maravilhosa poesia, declara que ela deixa o intelecto crítico insatisfeito. Ele sugere que Shakespeare talvez não tenha pretendido mais do que um entretenimento e nunca tenha se preocupado com a unidade maios profunda ou com o significado mais amplo do conjunto:

"Se Shakespeare fosse ressuscitado e interrogado sobre por que procedera aqui e ali de maneira tão estranha, poderia com atitude irretorquível abrir os olhos de espanto e perguntar o porquê de querermos destruir assim seu mecanismo. 'Vocês querem o absoluto?', poderia ele perguntar, 'como diversão em um palco?'...Mas o intelecto crítico também tem seus direitos: sua preocupação é simplesmente a verdade conceitual".

Robertson e depois Eliot procuram a verdade conceitual em Hamlet e não a encontram. Gostariam de ser capazes de reduzir a peça a termos que a razão pudesse aceitar; e, na tentativa de satisfazer essa exigência, interpretam a peça de um modo que realmente a faz parecer confusa, amorfa: em resumo, um fracasso. "Não há dúvida de que Robertson está certo", escreve Eliot, "ao concluir que a principal emoção da peça é o sentimento de um filho em relação à sua mãe culpada". Mostra a seguir que há vários elementos e cenas inteiras da peça que nada têm a ver com o sentimento de um filho para com a mãe culpada, e que, segundo essa interpretação, o próprio Hamlet é incompreensível. Conclui que Shakespeare falhou em encontrar "objetivos equivalentes" para os sentimentos de Hamlet: "Hamlet (o homem) é dominado por uma emoção inexprimível, porque em excesso em relação aos fatos como eles nos são mostrados. E a suposta identidade de Hamlet com seu autor é genuína até o seguinte ponto: que as dificuldades de Hamlet devido à ausência de objetivos equivalentes aos seus sentimentos é um prolongamento das complicações de seu criador em face do problema artístico".

Nâo estou seguro de compreender a famosa fórmula de Eliot do objetivo equivalente de um sentimento, pelo menos sua aplicação a essa peça. Quer Eliot dizer que os muitos objetivos, fatos e cadeias de acontecimentos que Shakespeare apresenta para nos fazer partilhar e compreender os sentimentos de Hamlet não funcionam? Em outras palavras, que quando lemos ou vemos a peça não podemos compartilhar os sentimentos de Hamlet? Ou que não podemos compreender a psicologia de Hamlet? Hamlet apresenta-se repleto de sentimento - muito mais do que Polônio, por exemplo; mas esse sentimento é "em excesso?". Pode-se arriscar o palpite de que o que perturba Eliot aqui não é que o personagem falhe ao viver dramaticamente - sua vitalidade no palco, seus fascínio por muitos e variados públicos provam o contrário - mas apenas que nem ele nem seu autor expliquem a situação nos termos claros e precisos da razão. Hamlet é apresentado objetivamente, em cenário concreto e múltiplo, dentro da situação complexa de príncipe, filho e amante. Se queremos compreendê-lo, devemos considerá-lo assim, e não tentar simplificar e reduzir o quadro que Shakespeare oferece.

A opinião de que "a emoção essencial da peça é o sentimento de um filho para com a mãe culpada" é uma redução drástica da peça que Shakespeare escreveu. O sentimento de Hamlet para com a mãe culpada é sem dúvida essencial, mas não é mais essencial do que o sofrimento com a perda do pai. Stephen Daedalus em Ulysses constrói uma interpretação da peça nesse sentido, que revela pelo menos tanto quanto a interpretação de Eliot-Robertson. E Dover Wilson oferece uma explicação dos sentimentos de Hamlet que talvez seja ainda mais fértil: o jovem príncipe perdeu um trono, e perde com isso uma persona social e publicamente aceitável: um local de habitação e um nome. É por esse motivo que ele assombra o palco com os usurpados dos dramas clássicos: como uma Electra, que perdeu a vida tradicional que lhe era devida como filha, mulher e mãe - ou mesmo como o fantasma de Polyneikes, que não pode descansar porque a ordem ritual da sociedade, que poderia ter-lhe proporcionado o lugar de descanso, tinha sido destruída. E Wilson garante-nos que o público elisabetano (mais ou menos consciente de implicações deste tipo) terá aceito a perda do trono como explicação suficiente para o sofrimento de Hamlet.

Não é preciso negar a interpretação Eliot-Robertson, ou a joyciana, apenas porque se aceita a de Dover Wilson: ao contrário, os vários críticos devem ser considerados como os "refletores" jamesianos, cada um iluminando uma faceta do todo, desde seu ângulo particular. O "ângulo" de Dover Wilson, entetanto, tem um valor especial: ele possibilita ver, para além do problema de Hamlet como indivíduo, certos valores tradicionais da sociedade que sublinham a peça como um todo. E uma das principais objeções à crítica que Eliot nos traz à consideração é que ele não distingue claramente entre a história do indivíduo Hamlet e a história da peça com um todo. Ele se opõe à crítica de um Hamlet isolado da obra em que aparece; mas seu próprio ensaio trata de "Hamlet sem o príncipe da Dinamarca" - isto é, o caráter sem referência à sociedade onde ele se esforça por realizar-se. Por isso não pode entender a importância dos personagens menores, nem a significação de certas cenas que não contam o destino individual de Hamlet.

"Há cenas sem explicação", escreve ele, "a de Polônio-Laerte e a de Polônio-Reinaldo" - para as quais não vejo desculpas". Não há explicação nem desculpas para elas, se Shakespeare apenas tentava reproduzir o sentimento de um filho para com a mãe culpada. Se ele também estava querendo mostrar a relação de um filho para com seu pai, então toda a sequência Polônio-Laerte-Reinaldo faz sentido como um subenredo cômico-patético, com muitos parelos irônicos às histórias de Hamlet e do fantasma de seu pai. Se a isso acrescentarmos a sugestão de Dover Wilson, vemos que o bem-estar da Dinamarca - a ordem tradicional da sociedade, com seu pai-rei de quem depende "a vida de muitos" - é o assunto da peça como conjunto, em vez do problema individual de Hamlet.

No bem-estar da Dinamarca, Polônio, Laerte e Reinaldo têm uma parte. O postulado sobre o qual se baseia toda a ação (desde a primeira cena da murada, com os soldados espreitando a escuridão para discernir que perigos podem ameaçar a entidade política) é o de que "os tempos estão fora dos eixos". É infortúnio de Hamlet que, como príncipe, e como homem de profunda percepção, tenha, logo ele, "nascido para endireitá-las".

A interpretação Eliot-Robertson deixa claro que nenhum dos personagens, ou qualquer dos enredos ou sequências narrativas, pretende expressar o sentido da peça como um todo. Nem a peça oferece, mesmo nas meditações de Hamlet, o objetivo da verdade conceitual onde a razão pode encontrar satisfação e descanso. A referida interpretação tem o valor de mostrar o que Hamlet não é, em vez de lançar luz sobre sua verdadeira complexidade.

Tem também o valor de resumir um sentido de teatro e de drama que prevaleceu amplamente desde que o teatro elisabetano deixou de existir. As exigências e as críticas que Robertson e Eliot fazem teriam sido aprovadas pelos críticos da Idade da Razão, de Corneille a Voltaire. São em princípio muito semelhantes às que William Archer fez em seu livro sobre o drama elisabetano, O drama antigo e o novo. Archer pedia a psicologia naturalística de um Ibsen, e seus princípios estruturais eram os racionais da peça bem construída. Portanto, ele também não achou o drama do teatro de Shakespeare satisfatório.

É hábito nosso insistir em unidade de sentido e verdade conceitual; o valor da leitura crítica de Eliot-Robertson é que foi feita com tal clareza que mostrou o que vinha sendo feito em geral. Desde que compreendamos isso, o caminho está aberto, e podemos perguntar se Shakespeare não estaria compondo sobre princípios completamente diversos.

Há muito material para tal pesquisa. Existem estudos sobre aquele recurso característico dos elisabetanos, o enredo duplo. E existem muitos trabalhos recentes que mostram o teatro elisabetano, não desde o nosso ponto de vista contemporâneo, mas como o herdeiro da Idade Média e, ainda mais para trás, da antiguidade clássica. Sob a luz deles podemos ver, se não a unidade de Hamlet, pelo menos a espécie de "unidade por analogia" que a obra de Shakespeare tinha como objetivo.
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Artigo extraído do livro Evolução e sentido do teatro. Zahar Editores/1964.

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