sábado, 19 de dezembro de 2009

O jogo dramático
e elementos da psicanálise

Richard Courtney


Se colocássemos a questão: "Por que uma menina brinca com suas bonecas ou por que um menino brinca de mocinho e bandido?, um psicanalista responderia que, de uma forma ou de outra, a criança está expressando seu inconsciente. E completaria dizendo que o como e o de quê a criança brinca são reflexos de impulsos inconscientes que, embora basicamente comuns a todos, variam de acordo com o desenvolvimento do inconsciente do indivíduo. Conquanto não fosse novidade, esse foi o conceito de Freud sobre o inconsciente que mais influenciou o pensamento subseqüente. Admirador de Darwin, Freud concebeu-o como evolutivo e biológico: porém, dinâmico, com sua energia retirada dos impulsos instintivos. Foi este o conceito que tanto revolucionou as formas de o homem observar-se a si próprio.


As teorias fundamentais de Freud

Para a compreensão do jogo da criança, os conceitos básicos de Freud sobre o inconsciente são muito importantes. Em princípio, ele postulou dois instintois: autopreservação e a preservação das espécies (o ego e os instintos sexuais). O primeiro leva o homem a buscar o prazer e evitar o sofrimento - este é o "Princípio do Prazer (ou necessidade de buscar a gratificação dos sentidos). Opõe-se ao "Princípio da Realidade", que prevê as conseqüências da busca do mero prazer. De qualquer modo, a Compulsão de Repetição pode ir além dos dois princípios: uma experiência traumática do passado talvez deva ser reativada (pelos sonhos, pelo jogo, ou abertamente) de modo a ser assimilada. O instinto sexual está baseado na libido (energia sexual). Se esta não é satisfeita, pode conduzir a gratificações substitutivas controladas pelo princípio do prazer (como devaneios); ou se a libido é deslocada de uma área, deve, inevitavelmente, produzir seus efeitos em outro lugar qualquer.

Freud postula três estágios de maturação na infância: oral, anal e genital. No estágio oral, a boca é o órgão primário de prazer, e a criança está mentalmente incorporando ou introjetando: ao colocar coisas na boca, ela incorpora o que ama - desejando ser como outra pessoa, se identifica com elas - dessa forma, Freud mostra a primazia da identificação, o primeiro passo para a personificação. Por volta dos 6 meses, quando do aparecimento dos primeiros dentes, a criança pode ficar frustrada se o seio não estiver disponível; neste caso, procura a gratificação pela agressão (mordendo), diz Abraham. Mas, como ainda se identifica com a mãe, engendra a imagem da mãe agressiva que vai comê-la.

O estágio anal (o desejo de expelir agressivamente) Abrahan também o divide em: anal-expulsivo, quando a criança sente prazer com a expulsão sádica; e anal-retentor (coincidindo com o controle do esfíncter, por volta do primeiro ano de vida), quando a criança se desfaz de suas fezes apenas por amor pela pessoa que a cuida.

A fase genital ocorre por volta do terceiro ano de vida, quando a criança centraliza seu interesse no pênis; então, por volta dos 4 anos de idade, aparece o Complexo de Édipo. Sófocles relata como Édipo involuntariamente mata seu pai, casa-se com sua mãe e a seguir pune-se, perfurando-se os olhos.

Freud diz que a criança é sexualmente atraída por sua mãe e ressente-se de seu pai, temendo, então, a punição por seu desejo (castração simbólica). As conseqüências de anormalidades posteriores poderão ser: passividade, encobrindo ódio e medo do pai (posteriormente, de todos os homens que representam autoridade); superafeição e dependência da mãe (a necessidade de ser amado); ou, em reprimindo os desejos pela mãe, pode desenvolver um desejo passivo pelo pai (homossexualidade).

As meninas desenvolvem o Complexo de Electra: o clítoris é a contraparte "inferior" ao pênis e surge a "inveja do pênis". Conseqüentemente, ela pode: ser hostil à mãe (que lhe "negou" um pênis) e portanto desejar o pênis do pai; identificar-se com a mãe e desejar um bebê (substituto do pênis), desenvolvendo uma sexualidade feminina normal; ou, se insistir em seu desejo pelo pênis, tornar-se dominadora e agressiva (desenvolvendo tendências masculinas). Detendo-se o desenvolvimento da libido no estágio oral, anal ou genital, teremos uma fixação; isto aumenta o perigo de que, ao enfrentar problemas mais tarde, a libido possa sofrer uma regressão a esta fixação.

Freud modificou posteriormente sua teoria do instinto. Em 1914, definiu o narcisismo como sendo o amor por si mesmo: o narcisismo primário é natural no bebê, mas o narcisismo secundário, mórbido, pode desenvolver-se na vida posterior se o amor do indivíduo encontrar obstáculos. Em 1920, postulou os instintos de vida e morte: as tendências de preservar e de destruir.

A primeira teoria da personalidade de Freud distinguia: o consciente, ou a consciência do presente; o inconsciente, do qual não estamos habitualmente cônscios; e o pré-consciente que, embora inconsciente no momento, pode ser facilmente evocado - lapsos de fala estão nesta categoria. Foi em 1922 que fez sua famosa divisão entre ego, superego e id. O id é o primitivo sistema de impulsos da criança recém-nascida: exige satisfação imediata, desconhece precauções para assegurar a sobrevivência, é inconsciente, e governado pelo princípio do prazer, não conhece lógica e armazena toda a energia mental. Uma parte do id se separa para formar o ego ou "eu". Inicialmente narcisista, ele se estabelece ao tornar-se

...consciente dos estímulos vindos de fora, armazenando essas experiências (na memória), evitando estímulos excessivos (através da adaptação), e, finalmente, realizando modificações apropriadas no mundo externo em benefício próprio (através da atividade).

Onde o ego está consciente, o superego (aproximadamente equivalente à consciência) está apenas parcialmente consiente. Isto se origina no complexo de Édipo e no medo da punição:

...as atitudes dos pais são adotadas pela personalidade, uma parte da qual (o superego) assume, com relação ao resto, a mesma atitude que os pais tomaram em relação à criança.

O ego desvia as exigência do id e o esforço do superego por mecanismos de defesa:

1) Racionalizando as demandas irracionais do id (acobertando erros).

2) Destruição mágica - a crença de que os feitos irracionais anteriores podem ser "dissipados".

3) Negação - o ego afasta-se de uma realidade muito dolorosa (como em alguma patologia).

4) Introjeção - o ego incorpora o objeto amado e se identifica com ele.

5) Projeção - o ego se desfaz de algo desagradável que pertence ao mundo exterior.

6) Isolamento - separação da emoção e da idéia da experiência (às vezes conduzindo à neurose compulsiva e "dupla personalidade").

7) Formação da reação - fixar uma repressão a um impulso proibido produz tendências opostas, apresentando o ego à sociedade sob uma ótica agradável (como alguém excessivamente puritano).

8) Sublimação - o mecanismo normal e bem-sucedido, canalizando energia para metas substitutivas aceitáveis pela sociedade (a base das artes e trabalho bem-sucedido0).

A criança observa que os atos proibidos levam à punição ou perda do amor materno, e é este relacionamento com a mãe (fundado na identificação) que é a base para as posteriores imitações da criança e suas ligações sócio-emocionais. Embora as ansiedades do adulto sejam decorrentes do ostracismo social e rejeição pela sociedade, estão apoiadas nos resíduos da infância no inconsciente, pois a separação da mãe é o protótipo de todas as ansiedades futuras. O analista procura entender os impulsos do inconsciente e obter a sublimação (com os adultos, através da livre associação e sonhos, e com a criança, através do jogo). Mas, nem os sonhos nem o jogo retratam exatamente as ansiedades: eles operam por meio do simbolismo.

Para Freud, os sonhos são a via principal de acesso para o inconsciente do adulto, uma vez que lidam com os desejos que não podem ser aceitos pelo consciente em estado de vigília. Mas, seu conteúdo manifesto (o que o sonhador percebe) oculta um mais profundo conteúdo latente. Na medida em que o desejo inconsciente foi reprimido, o conteúdo latente não pode ser diretamente captado pelo sonhador; e, assim, o conteúdo manifesto é criado - a realização simbólica do desejo reprimido. Como o jogo serve a um propósito semelhante ao do sonho, também o jogo tem um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. Os métodos de criação de símbolos são:

1) Condensação - a personagem de um sonho pode ser a imagem composta de várias pessoas.

2) Deslocamento - elementos emocionais significantes são tornados insignificantes.

3) Representação plástica - o som de uma palavra pode criar a imagem ("uma vista" estimulada pela palavra "revista").

4) Elaboração secundária - o sonhador tenta impor ordem nas imagens.

5) Símbolos fixos - comuns a toda a humanidade, são normalmente de caráter sexual. Os símbolos fixos são pictóricos, e, nos primeiros anos de vida, são comparáveis a cenários. Uma casa representa um corpo: se plana, um homem; com saliências, uma mulher. Os pais são reis e rainhas, os irmãos são pequenos animais, nascimento é água, morte uma viagem. Objetos côncavos e recipientes são símbolos femininos, assim como caracóis, mexilhões, capelas e igrejas; maçãs, pêssegos e laranjas são seios; uma paisagem rochosa, com bosques e água simboliza os órgãos femininos. Os símbolos masculinos são manto, chapéus, ou qualquer objeto longo e pontiagudo (bastão, torre, pistolas, facas etc.); aeroplanos e balões simbolizam ereção, enquanto que o mágico número 3 representa o pênis e os testítuclos. Uma aranha simboliza a mãe agressiva, mas o medo da aranha é medo de incesto; movimentos rítmicos ou violentos (cavalgar, subir escadas) representa intercurso sexual, enquanto dentes caindo indicam temores de castração.

Os símbolos do sonho são o rsultado da experiência infantil, "da relíquias do período pré-histórico (de um a três anos de idade)". E os símbolos que representam ação recente podem perfeitamente ser similares aos que representam ações passadas. De fato, estamos determinados por todo o nosso passado.

Tanto os sonhos quanto o jogo dramático são tentativas do ego de relacionar o id com a realidade, e assim, também no jogo, há símbolos que disfarçam o conteúdo latente. Diz Freud:

O dito de que, no jogo, podemos conhecer o caráter de uma pessoa pode ser admitido, se pudermos acrescentar: "o caráter reprimido".

Porém, o simbolismo do jogo nunca é simples: o "polissimbolismo" acontece porque o entrelaçamento de tendências, conflitos e repressões dão origem a uma variedade de significados. O símbolo, disse Freud, é, em primeiro lugar, um disfarce. Mais tarde, sob a influência e Adler, Silberer e Jung, diria que é uma linguagem, assim como um disfarce. Mas, evidentemente, a compreensão do simbolismo do jogo e, conseqüentemente, o significado inconsciente, inerente ao jogo dramático, é de importância considerável para a educação.
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Artigo extraído do livro Jogo, teatro & pensamento. Editora Perspectiva.

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